Trago
ainda na alma o mapa dos caminhos...
Meus
versos riscam teu dorso para cantar um tempo único e perfumado.
América,
América,
ali,
entre os ramos e o penhasco, o abismo florescido,
acolá,
o milho semeado e a colheita rumorosa.
Entre
serras e quebradas vai o colla dedilhando sua
flauta,
é
seu hino à pachamama modulando o silêncio do
altiplano.
Canto
meu enredo de viandante,
passo
a passo rumo ao norte e à alvorada.
Quantos
atalhos, meu Deus, quantas fronteiras!
A
travessia ao entardecer no Titicaca,
o
Illimani batido pelo sol,
e
aquela noite sob as estrelas em Macchu Picchu!
Ah!
este aguaceiro vem agora molhar minha saudade,
e
tudo me chega como um recanto do passado...
e
se hoje digo amigos e digo hermanos,
ouço
nossos passos ecoar pelas vielas seculares de Quito e de La Paz.
Ai,
América, ainda não disse de ti quanto quisera,
abre
teu cântaro, ó Poesia, e dá-me o frescor do rocio,
dá-me
a magia e o lirismo...,
que
canção para mim soará mais bela que tuas sílabas de encanto?
América,
América,
Lembro-me
do fulgor do teu rosto renascido da utopia,
tuas
bandeiras de sonhos
feitas
de plumas e veias transparentes.
Os
campos todos semeados
e
o porvir tatuado em cada gesto.
Tudo
era aroma na gleba cultivada,
nos
brotos germinava a esperança
e
nossas pálpebras se abriam para o amanhã.
Canto
a América que vivi,
entre
alegrias e lágrimas, canto o continente ao sul de Anahuác.
Falo
de uma América primeira,
asteca,
quiché, chibcha, quéchua, mapuche e guarani,
essa
América materna,
botânica
e mineral,
sangrada
por Cortez, Pizarro e por Valdivia.
Falo
de uma só pátria,
a
grande pátria de Bolívar,
pilhada
e violentada,
submetida
pelas garras perversas do Império.
Vi
tuas trincheiras abertas
e
depois as densas trevas caírem sobre o sul.
Sobreveio
o chumbo cruel,
os
labirintos da dor e as atrocidades.
Na
penumbra gemiam os cravos, gemiam as rosas,
e
agonizava a vida ainda em botão.
Canto
para denunciar a verdade sufocada,
e
eis que mancho este verso para nomear Garrastazu, Bordaberry, Videla,
Pinochet
e
seus rastros genocidas num tempo silenciado.
Canto
para dizer das valas clandestinas,
das
ossadas do Atacama
e
dos “voos da morte” para o mar,
Meu
réquiem para trinta mil argentinos,
meu
canto para as “crianças da ditadura”,
para
os sobreviventes e suas cicatrizes,
para
a viuvez e a orfandade
para las
Madres de Plaza de Mayo e suas lágrimas perenes.
América,
América,
quarenta
anos se passaram
e
tuas feridas ainda emergem da tragédia!
E
aqui declino a “operação” perversa dos “condores”
e
os seus generais malditos.
Canto
por ti, América,
por
tuas aldeias de bravos e por teus calvários,
por
teu nevado esplendor tantas vezes torturado,
América
de tantos massacres e patíbulos,
ouço-te
ainda na voz melancólica dos
chorando por
la matanza de San Juan, em Potosi.
Uma
América de martírios,
estrangulada
em Cajamarca,
esquartejada
em Cusco,
sacrificada
em La Higuera.
executada
em Trelew e El Frontón,
e
nos rituais da morte em Villa Grimaldi e no Dói-Codi.
Por
tanta dor nessas memórias
eu
vos peço perdão pelo meu canto.
Ele
é também assim: um áspero clarim no entardecer.
Distante,
tão distante,
no
tempo e nos andares,
e
hoje, em busca de mim mesmo,
ainda
abrigo o mesmo combativo coração.
Não
sei o que te espera, América,
os
anos correram inquietantes e velozes
restando
um mundo com seu som intolerável.
Busco
meu íntimo silêncio,
e,
por um momento, digo basta...,
meu
pensamento em prece, e num lampejo, viaja ao sul do Chile.
Lá,
muito além do Bio-Bio, há um golfo deslumbrante.
Vou
em busca de Arauco,
lá
lutaram meus heróis, Caupolicán e Galvarino.
Foi
lá onde viveu Lautaro e onde vive Frederico.
Vou
para rever o cone nevado do Antuco
rever
o vale e a Cordilheira,
o
seu dossel verdejante, onde se gesta a vida.
Vou
para relembrar uma baía de barcos,
para
construir uma paisagem na alma,
uma
tenda de luz para um amigo.
Ilustrações:
Divulgação
Curitiba,
22 de dezembro de 2.013
5 comentários:
Jamais editei um texto no qual fosse eu mesmo o homenageado, é atitude que me constrange. Contudo, na ameríndica joia poética de Manoel de Andrade, sinto-me personagem privilegiado dessa bela e torturada geografia.
Felicitaciones a ambos, Frederico y Manoel, por el sincero sentimiento de América aquí enriquecido por la emocionante composición musical de Calle 13. Y gracias por ponerme en contacto con un sentido de América aún vivo.
Saludos fraternales a Vds.
Olá, Rita, muito obrigado! Na verdade, o mérito todo é do "hermano" Manoel de Andrade. De cujss peregrinações por esses territórios, rumo à alma do continente - suas gentes e suas terras - a meu modo sou apenas um privilegiado continuador. Seja bem -vinda!
Um poema rico em história que ganhou
dimensão com as belas imagens.
Parabéns ao poeta Manoel de Andrade e parabéns a Frederico.
O canto é triste, mas a esperança resiste. Saudações ao Frederico e abraços ao Manoel. Que viva América!
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