Ilustração: Theodor de Bry
O prisioneiro branco, longa barba, ruiva, inteiramente nu, está imobilizado com cordas de cipó a um tronco no centro da aldeia. Ao seu lado um xamã balbucia sons ininteligíveis, agressivos. Sua litania atiça homens, mulheres e crianças, que saltitam em lamento monocórdio ao redor de outro prisioneiro; este, indígena, já prostrado diante de um inimigo forte, que ergue a pedra da morte, rachando em duas a cabeça do caçado. Sangue, fragmentos cranianos, cérebro indagante, grudados a mechas de cabelo, saltam para os lados, incitando a caterva ao ataque.
Rasgam-no em pedaços: cabeça, tronco e membros secionados, arrancados das articulações. Cheiro adocicado de exótico assado desprende-se da fogueira, deita-se sobre a aldeia e invade as narinas do homem branco, barbudo e nu, inteiramente banhado em seu próprio suor; a transpiração do horror à morte iminente. Homens e mulheres disputam histericamente o butim de carne humana, que sacia a fome das crianças com nacos ainda malpassados. O branco barbudo, desvelado e fragilizado, ergue a cabeça em atitude de devoção, pede proteção ao seu Deus.
Cenas como esta se repetem ao longo de dez meses e constituem o eixo da narrativa de a “Historia Verdadeira e Descrição de uma Paisagem dos Selvagens/Desnudos/ Ferozes e Devoradores de Gente no Novo Mundo da América”.
De autoria do arcabuzeiro, mercenário alemão, Hans Staden, este misto de diário e crônica do espanto é, depois da carta de Caminha, o primeiro ensaio etnográfico sobre o Brasil quinhentista. Aprisionado pelos índios Tupinambá diante de um forte português em Bertioga, litoral de São Paulo, é ameaçado de morte e devoração. Como por encanto, Staden é poupado e consegue fugir. Seu calvário, porém, dura mais de ano, com uma peregrinação que vai de Bertioga à Ilha Grande, litoral sul do Rio de Janeiro.
Seios flácidos como as “bruxas” da Inquisição...
Retornando à Europa a bordo de um barco francês, decide publicar um livro em 1557, cuja primeira edição é ricamente ilustrada pelo gravurista Theodor de Bry, que nunca havia estado no Brasil e que por isso desenhou “de ouvido”. Mas é de Bry quem imprimirá ao olhar quinhentista sua mirada eurocêntrica e certo maneirismo estético, sintomaticamente “fora da ordem” tropical. É o caso da xilogravura que mostra Staden nu, cercado de sedutoras mulheres índias. Igualmente nuas, dançam ao seu redor, podam-lhe a barba e os cílios. Com suas bocas roçando-lhe as orelhas, parecem sussurrar-lhe sacanagens ao ouvido casto, devorando-lhe os lóbulos com seus lábios carnudos, temperando-os com seu bafejo de libidinosa maresia.
O que chama atenção nas demais xilogravuras de De Bry é que apenas as índias sensuais são retratadas em primeiro plano. Em segundo plano predominam as mulheres de carnes flácidas e peitos caídos – o que pode ser uma sutil alegoria do imaginário cristão, que na Europa necessitava de uma justificativa estética, uma mensagem na garrafa para a condenação das “bruxas” às fogueiras da Inquisição.
Borrascas e naufrágios
Após seis meses de navegação errante pelo Atlântico Sul, as caravelas de Juan de Salazar - que partira da Espanha durante a Páscoa de 1550, com a missão de iniciar a ocupação da Bacia do Prata - castigadas por tormentas e borrascas e desviadas de seu curso, foram atiradas contra a costa do sudeste brasileiro. Era o dia 24 de novembro de 1550, com sol de rachar pedra, e quis o mau humor de Netuno que um mercenário ruivo, oriundo de Wolfhagen, recôndita província alemã, fosse o primeiro europeu a pisar o solo do Paraná, vindo do mar, vomitando água e sal.
Além de um mapa-de-ouvido confeccionado por de Bry, o episódio não mereceu comentários na narrativa de Staden. É a este hiato da memória que me reporto com alguma licença poética.
Supõe-se que o barco foi abastecido de víveres e concedido descanso à sua tripulação no Superagüi, depois zarpando rumo a São Vicente. Lá não chegou porque naufragou mais ao sul, estima-se que nas praias de Cananéia. Uma vez salvos, Staden e os espanhóis procuraram a amizade dos portugueses ali estabelecidos. Parte do grupo espanhol partiu rumo ao Prata, enquanto Staden foi incumbido de guarnecer o forte de Bertioga.
Neste forte começa a aventura hilariante e dilacerante do jovem aventureiro que na esteira do furor re-descobrimentista em 2000 teve reeditada no Brasil sua obra e saltou do arquivamento histórico para a imortalidade cinematográfica. O que confere dinâmica a uma boa estória é uma pitada de conflito e, não fosse o seqüestro de Staden pelos Tupinambá (cujo mitológico cacique Cunhambebe, Antonio Torres resgatou em seu romance “Meu querido canibal”), jamais teríamos sabido da intimidade destes índios. Digo: de seu apurado paladar na degustação de orelhas, bíceps, coxas e glúteos humanos...
Mas é de lingüística que quero falar, do picante desencontro entre o bárbaro tropical, devorador de corpos humanos, e o cristão temente às tentações da carne: a origem do termo “comer”, por exemplo, para designar a cópula, a interpenetração dos corpos. Recordemos: Staden era obrigado a saudar os selvagens com a frase tupi-guarani, “Ajune che peê remiurãama - aqui venho eu para vossa comida!”.
Etimologia da palavra “comer”
Chula e por isso excitante, fato é que ao longo de quinhentos anos de ilusão des-cobrimentista, a verdadeira voragem dos corpos acontece nas camas brasileiras, onde (sempre na contramão de abalizada verdade anatômica) machos iludem-se em “comer” suas fêmeas e estas iludem-se em ser “comidas”, quando na verdade são elas as devoradoras.
Refletindo estes equívocos tropicais, Darcy Ribeiro sempre suspirava, resignado, uma bela frase de efeito: “No Brasil o mundo ‘tá de ponta-cabeça. É preciso reinventar tudo!” E eu sempre me perguntava: mas com os pés no chão, não perderia a graça? A segunda hipótese é a de que nem Cunhambebe e muito menos Staden tenham sido lembrados pelos patronos da Semana de 22 como os pais legítimos e incontestes do Antropofagismo - Cunhambebe como seu mentor e Staden como Macunaíma-Cara-Pálida , o assimilador e deglutidor da grande comilança tropical, mas autor do grande equívoco canibal.
Freqüentemente deixado (testado?) a sós com as mulheres, Staden escreve:
- Algumas caminharam à minha frente, outras atrás, dançando e cantando uma canção que, segundo seu costume, entoavam aos prisioneiros que tencionavam devorar.
Os historiadores creditam sua sobrevivência à inabalável fé cristã, mas eu imagino que Staden foi poupado por outro, um motivo forte - qual indiazinha, enxuta e perfumada por óleos essenciais da flora atlântica e sais marinhos, teria de livre e espontâneo desejo realizado o intercurso multirracial com um bárbaro branco, encardido e mal cheiroso?
Si non e vero e ben trovato: o “descobrimento” do Superagüi foi na verdade um desencontro de libidos.
Imaginei a seguinte cena: no meio das tratativas protocolares, uma indiazinha afoita consegue saltar para o convés do barco dos espanhóis e, esgueirando-se entre couraças, barbas e corpos suados, tenta apoderar-se do espelho que vira da canoa, e que, pendurado num dos mastros da caravela, reproduzia toda a cena do encontro insólito, agora multiplicado por dois.
Uma señora, do grupo de respeitosas damas espanholas, que se mantinha a distância segura, solta um grito de advertência, mas quando os bucaneiros correm para agarrar a indiazinha... é tarde demais! Esta dá um salto tríplice de bombordo, diretamente para a canoa dos seus companheiros. Interrogam-na irritados sobre sua incursão em território inimigo e sua resposta, o polegar e o indicador da mão direita espremendo as narinas em sinal de fedor, é o primeiro signo compartilhado naquela conversa de surdos-mudos, entre descobridores e descobertos - alguma coisa cheirava muito mal no Reino de Castela!