Fotos: divulgação
Entre divertido e fossento (melancolia resultante da intuição de jamais retornar à sua Argentina e da aproximação do último, irreversível inverno de sua vida) Julio Cortázar começa a escrever (escrever é recordar!) no final dos anos 70 em Nairobi / Quênia, onde exercia funções de tradutor e editor da UNESCO, seu último livro, Salvo el Crepúsculo; várias vezes reeditado na Argentina, mas ainda inédito no Brasil.
Virtuoso painel bric-à-brac, feito de “remendos” (poemas, breves prosas, epígrafes e comentários jocosos) que Cortázar parece colher em empoeiradas caixas de sapatos e agendas rabiscadas, Salve el Crepúsculo revela-se caixinha de jóias, ostentando experimentalismos que vão da ode magistral CE GRE CIA 59 ECE, escrita alternadamente em francês, inglês e espanhol ao contristado repertório CON TANGOS, de letras todas “imusicáveis”, como se auto-ironiza.
Sobre o gênero diz Cortázar:
“Não sei em que medida as letras do Jazz influenciam os poetas norte-americanos, mas sei, sim, que a nós os tangos devolvem certa recorrência sardônica; cada vez que escrevemos tristeza, que estamos chuvisco, que nos entope a bombilha na metade do chimarrão”.
(…)“Um pouco isso, claro, tangos como re-contos de amores humilhados e recapitulações da desgraça, povo de larvas na memória, mostrando no perfil das melodias e nas quase sempre sórdidas crônicas das letras, as moedas usadas e repetidas, a obstinada numismática da lembrança (…)
Mais adiante irrompe então o contexto histórico: como no longa-metragem Exílios de Gardel (1984), de Pino Solanas, o Tango vibra como esperança e exercício de resistência à sangrenta ditadura militar de 1976, que Cortázar sobreviveria por apenas um ano, ao falecer em 1984, em Paris:
“E chegando nunca desacompanhados: madalenas de Gardel ou de Laurenz, jogando na cara os cheiros e as luzes do bairro (o meu, Banfield, com ruas de terra, na minha infância, com paredões que escondiam os motivos possíveis do medo). Nunca chegando a sós, e nesses últimos anos tão colados ao nosso exílio, que não é o do Lejano Buenos Aires de uma clássica, portenha boemia, mas sim do desterro em massa, furacão do ódio, e o medo. Escutar hoje, aqui, os velhos tangos, já não é uma cerimônia da nostalgia; esse tempo, esta história carregaram-nos de horror e de pranto, foram transformados em máquinas mnemônicas, emblema de tudo o que se vinha preparando desde lá atrás e tão entranhado na Argentina. E então, claro.”
Eis, pois, aqui traduzidos, alguns Tangos de Cortázar, exercício poético que pede melodias. É recomendável ouvi-los.
O truque? Um bandoneão imaginário marcando o compasso...
O truque? Um bandoneão imaginário marcando o compasso...
Ar do sul
Ar do sul, flagelação que leva areia
Com pedaços de pássaros e formigas,
Dente do furacão estendido sobre a planície:
Onde homens cara ao chão sentem passar a morte.
Máquina da pampa, quê engrenagem de cardos
Contra a pele da pálpebra, ó tranças de alhos ébrios,
De ásperas chicórias trituradas.
A debandada furtiva cessa o vento
E o perfil do moinho
Abre entre dois olvidos do horizonte
Uma risada de enforcado. Empina o álamo
Sua coluna dourada, mas o salgueiro
Sabe mais do país, seus cinerários verdes
Retornam silenciosos a beijar as margens da sombra.
Aqui o homem agachado sobre o oco do dia
Bebe seu mate de profundas serpentes e atribui
Os presságios do dia à escondida sorte.
Sua parda residência está no latejar
Que abre ao potro os charcos da baba e a cólera;
Vai retalhando os signos com um facão de prontidão
E sabe da estrela pelo reflexo na poça.
Malevolência 76
Como um câncer que avança
Abrindo caminho entre as flores
Do sangue, seccionando os nervos do desejo,
A relojoaria azul das veias,
Granizo de sutil mal-entendido
Avalanche de choros a des-tempo.
Para quê desandar a inútil rota
Que nos levou a esta cega
Contemplação de um cenário oco:
Não me deixaste
Nem o pito atrás da orelha
Já mais não sirvo que
Para escutar Carole Baker
Entre dois tragos de genebra,
,
E ver cair o tempo
como uma chuva de traças
sobre estas calças enrugadas.
Nairobi, 1976
Quiçá a mais querida
Deste-me a intempérie,
A leve sombra da tua mão
Passando por meu rosto.
Deste-me o frio, a distância,
O amargo café da meia-noite
Entre mesas vazias.
Sempre começou a chover
Na metade do filme,
A flor que para ti levei tinha
Uma aranha esperando entre as pétalas
Creio que sabias
E que favoreceste a desgraça.
Sempre esqueci o guarda-chuva
Antes de ir buscar-te,
O restaurante estava lotado
E vozeavam a guerra nas esquinas.
Foi uma letra de tango
Para tua indiferente melodia.
Milonga
Faz-me falta a Cruz do Sul
Quando a sede me força para cima a cabeça
Para beber teu vinho negro à meia-noite.
E sinto falta das esquinas com armazéns
dorminhocos
Onde treme o perfume do mate na
Pele do ar.
Compreender que isto está sempre lá
Como um bolso onde a cada tanto
A mão busca uma moeda o pente
o canivete
A mão incansável de uma obscura memória
Que reconta os seus mortos.
Cruzeiro do sul mate amargo
E as vozes de amigos
Usando-se com outros.
Bolero
Que vaidade imaginar
Que posso dar-te tudo, o amor e a sorte
Caminhos, música e brinquedo.
É verdade que é assim:
É certo que tudo o que é meu te dou,
É certo,
Mas não te basta todo meu
Como não me basta que me dês
Todo teu.
Por isso não seremos nunca
O casal perfeito, cartão postal,
Se somos incapazes de aceitar
Que só na aritmética
O dois nasce do um mais um.
Extraviado (por aí) diz um bilhetinho:
Foste sempre meu espelho
Quero dizer que para me enxergar,
tinha que te olhar.
₢ Copyright das versões em português: F.Füllgraf