Às vezes, como agora, o deputado alcançava arfante seu gabinete instalado num dos corredores do Congresso. Assim terminava suas tardes desde sua indicação para relator sobre a pretendida reforma do Código Florestal. Mal adentrava a antessala de seus assessores e baixava ordens para não receber chamadas telefônicas, desaparecendo em seu escritório atrás da porta trancada. Ali se deixava derrubar na poltrona, cujo espaldar ostentava uma manta com motivos folcóricos da Albânia; recordação de uma visita ao glorioso berço dos operários e camponeses do Camarada Enver Hoxha. De tanto roçar cabeças, a manta começara a puxar fios e suas cores estavam esmaecendo – que tempos aqueles!
Filhos da mãe! – reincopora-se o parlamentar, sorvendo golfadas de água mineral gelada. O gás arranha-lhe a laringe, ele afrouxa o nó da gravata. Que filhos da mãe, esses ambientalistas, alfacinhas! Ainda vai desvendar os meandros da conspiração deles com o imperialismo ianque – ora se vai! Traidores da pátria, querem internacionalizar a Amazônia, já fizeram a cabeça dos índios, inocentes úteis, mas ele – parlamentar do Congresso Brasileiro, comunista e patriota - vai impedir isso, vai abortar essa trama!
O telefone sobre a escrivaninha toca, mas ele deixa tocar até emudecer, e esvazia a garrafa de água mineral. O telefone toca novamente, insistentemente, mas ele está alheado em pensamentos. Araguaia, 1972. A porta para a antessala abre-se, um dos assessores enfia a cabeça na fresta, pede desculpas, mas adverte que “o Aguiar” já ligou duas vezes e pede retorno. Ah, o Aguiar deve estar uma fera... Tem 250 mil alqueires de soja no Mato Grosso, ganhando dinheiro a rodo com a exportação para a China. Quer ganhar mais: pretende avançar sobre uma área de proteção, mas o Ibama não deixa. Ele quer saber se não dá para apressar a tramitação do projeto da bancada ruralista, informa o assessor com expressão marota, e encosta a porta novamente.
China... Onde é que eu estava mesmo? O deputado tenta reincorporar-se. Ah, Araguaia... Bem, mas tudo começou na China. Com aquela maldita teoria do “cerco das cidades pelo campo” e da “guerra prolongada”. Isso lá funcionava no Império do Meio, mas aqui era ridículo – imagine, um bando de sertanejos da Amazônia, maltrapilhos, mal alimentados e mal armados, ameaçarem tomar São Paulo, irrompendo pela Marginal do Tietê! Mas nós embarcamos naquela canoa furada do Grande Timoneiro, e até hoje estamos procurando os cadáveres dos nossos combatentes caçados e esquartejados na Amazônia profunda. “Estamos”, não, porque faz tempo que eu desisti, e acho uma grande palhaçada essa tal Comissão da Verdade – estão cutucando onça com vara curta, é encrenca certa!
O deputado-relator ergue-se, cansado, caminha até o toalete, tira água do joelho, lava as mãos com o sabonete líquido e mira-se no espelho - onça? Ora, sua expressão está mais para jaguatirica dismilinguida – um tigrinho caboclo, velho e desdentado, um tigre de papel, como dizia o Camarada Mao Tsé Tung...
E agora eles, os chineses, vorazes, estão importando soja plantada em vastas áreas desmatadas onde quarenta anos atrás morreram os nossos – vá entender! “Nossos” é uma apropriação de história e patrimônio que não é lá muito honesta, vaticina o deputado, que à época não passava de um fedelho simpatizante e futuro líder da UNE. Mas deixa pra lá... Voltando ao assunto: quem lucra com o negócio agrícola não é uma cooperativa socialista, como sonhávamos, mas o agrobusiness, um bando de latifundiários conectados via internet à Bolsa de Cereais de Chicago – onde é que eu fui me meter?
É a torturante pergunta na expressão sempre estressada do deputado Aldo Rebelo, recém-nomeado para Ministro dos Esportes, após a queda de seu colega do PCdoB, o Orlandão Pagodeiro.
Onde é que Aldo Rebelo se meteu?
O deputado Aldo Rebelo se meteu no mato sem cachorro, e se perdeu. Essa é a razão de sua fisionomia estressada. Comunista ou burguês? Em favor dos camponeses ou pró-ruralista? Republicano austero ou também atacado pela faible por uma maleta com dinheiro vivo? – eis o excruciante dilema ideológico e ético do deputado comunista.
Cientistas renomados, vinculados à Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), advertem para os inevitáveis impactos ambientais que resultarão do projeto ruralista, mas também para a pressa na tramitação, que impede a população brasileira tomar conhecimento e manifestar-se sobre a matéria que legislará sobre seus interesses.
Se o Senado Federal aprovar sem alterações o projeto da bancada ruralista, à qual o comunista Rebelo emprestou sua consciência e estampa, o Governo vai...
● anistiar os desmatamentos ilegais, perpetrados até 2008, em áreas de preservação permanente, como as margens de rios e encostas de morro;
● legalizar ocupações urbanas e agrícolas em áreas de risco, como as mesmas encostas e matas ciliares;
● enfraquecer a proteção aos rios, reduzindo a faixa de matas ciliares para até ¼ da largura atual e permitir a ocupação das áreas de aluvião;
● acabar com a proteção de áreas frágeis como restingas, várzeas e topos de morro, comprometendo a estabilidade de solo e a qualidade da água;
● reduzir drasticamente as áreas de reserva de floresta, obrigatórias em propriedades rurais, cuja funcão é preservar o que resta da biodiversidade, fixar veios de água e servir como humilde regular do microclima;
● permitir a “compensação” da Reserva Florestal Legal fora e longe da propriedade rural, liberada então para transformar-se em imensa área desmatada e paulatino deserto de monoculturas de commodities, e,
finalmente,
● obrigar os Municípios a autorizar desmatamentos e ocupações de áreas frágeis, usurpadas para interesses políticos, em detrimento dos da cidadania e do bem comum.
A bancada ruralista, que no Congresso Nacional se articula como poderosa frente classista interpartidária dos senhores da terra no Brasil, quer mudar o Código Florestal para perpetuar a impunidade, não pagando multas por crimes ambientais cometidos, e receber carta branca para o avanço do grande negócio agrário sobre as florestas e áreas verdes do país.
Então, milhões de hectares, em áreas de proteção, cairão nas mãos dos desmatadores, e as imensas áreas já desmatadas não precisarão ser reflorestadas. Eis o cinismo, a aposta na impunidade e o literal tiro no pé da classe ruralista: o descalabro ambiental é tão certo como 2+2 são 4... – mas e eles com “isso”?
Comunismo...
Roger Garaudy, dissidente do PC francês, e seu projeto de um socialismo democrático e humanista, André Gorz - marxista da mais fina cepa e pensador pioneiro do socialismo com face ecológica – e Mikhail Gorbachev, que caminha pelos escombros da União Soviética, mapeando bolsões de radiação nuclear da frota submarina sucatada, a devastação da tundra e das florestas exaltadas pela literatura nativista russa, e só tropeça com aquíferos e rios contaminados pelos combinados da agressiva indústria química do período totalitário – esses nomes, eventos e apelos, essas releituras do marxismo, a rejeição da industrialização a qualquer custo e da “competição entre dois sistemas opostos”, ao preço da mais grave crise ambiental de todos os tempos, com suas alterações do clima global, passaram em brancas nuvens na carreira do deputado Rebelo. Ou, o que é mais provável, ao enxergá-las, o deputado desviou para a calçada do outro lado da rua.
Rebelo...
Nomen est omen – o nome é a sina, zombava um poeta romano. Por isso, no fundo da metade de sua alma vendida ao diabo, o deputado Aldo gostaria de mudar o sobrenome, porque chega de “me rebelo” – o Brasil, aqui e agora, precisa de subordinação à lei da mais-valia. É o que os camaradas chineses, mais espertos depois da Revolução Cultural, entenderam rapidamente. E é por isso que você paga 1,99 por um cabo de extensão “made in China”, cujo equivalente nacional não sai por menos de cinco Reais. Porque lá não tem sindicato pra encher o saco, nem vigilância sanitária ou fiscalização ambiental – por que é que o Steve Jobs mandou montar seus Iphones, e a Nike colar seus tênis por lá – hem? Tem sabor de capitalismo selvagem à la Manchester, mas dá—se um jeito, é o preço a pagar por um Brasil global player.
No canto de seu despacho, a bandeira vermelha do partido é um trapo esmaecido pelo sol e o pó da história; a foice e o martelo, duas ferramentas obsoletas de uma luta de classes que o comunista agora esgrime a soldo dos ruralistas. Porque o Ministro Rebelo e seu partido acreditam piamente no imperativo histórico de uma aliança com a dita “burguesia nacional”, definida como “sujeito revolucionário”. O que fazer com ela depois da tomada do poder? Bem, desde Prestes os tempos mudaram, talvez fosse mais prudente repensar a estratégia e comer na mão dela...
Eis a triste e decadente dialética.