Fotos: divulgação
Tradução: Frederico Füllgraf
Nota: de sua casa, em Nova York , onde se recuperava de um acidente automobilístico, a falecida escritora e ensaísta norte-americana, Susan Sontag, não queria ficar ausente dos debates, da inquietação. Sua admiração e seu respeito por Jorge Luís Borges se traduzem neste texto espirituoso, escrito em homenagem ao já então finado escritor argentino sob forma de carta. Desde 2002, Sontag faz companhia a Borges na “Biblioteca Total Celeste”.
12 de junho de 1996
Querido Borges:
Dado que sempre contemplaram sua literatura sob o signo da eternidade, não parece demasiado estranho enviar-lhe uma carta (Borges, faz dez anos). Se alguma vez algum contemporâneo pareceu destinado à imortalidade literária, este era o senhor. O senhor era em grande medida o produto de seu tempo, de sua cultura e, no entanto, sabia como transcender seu tempo, sua cultura, de uma forma que resulta bastante mágica. Isto tinha algo a ver com a abertura e a generosidade, próprias de sua atenção. Era o menos egocêntrico, o mais transparente dos escritores... e também o mais artístico. Também tinha algo a ver com uma pureza natural de espírito. Ainda que tenha vivido entre nós durante um tempo bastante prolongado, aperfeiçoou as práticas do fastio e da indiferença, que também o converteram num viajante-especialista mental em outras eras. Tinha um sentido do tempo diferente dos demais. As idéias comuns de passado, presente e futuro pareciam banais sob seu olhar. O senhor gostava de dizer que cada momento do tempo contém o passado e o futuro, citando (se bem me lembro) o poeta Browning, que escreveu algo assim como "o presente é o instante no qual o futuro se derruba no passado". Isso, sem dúvida, era expressão de sua modéstia: seu contentamento em encontrar suas idéias nas idéias de outros escritores.
Essa modéstia se inseria na segurança de sua presença. O senhor era um descobridor de novas alegrias. Um pessimismo tão profundo, tão sereno como o seu, não necessitava da indignação. Melhor fosse inventivo... e o senhor era, sobretudo, inventivo. A serenidade e a transcendência do ser que o senhor encontrou, são para mim exemplares. O senhor demonstrou de que maneira a infelicidade não precisa ser uma necessidade, ainda que a perspicácia e o esclarecimento não nos livrem do terror de tudo isso. Em algum momento o senhor disse que um escritor - acrescentando delicadamente: todas as pessoas - deve pensar que qualquer coisa que lhe suceda, será um recurso. (Estava falando da sua própria cegueira).
O senhor foi um grande recurso para outros escritores. Em 1982 – quer dizer, quatro anos antes de morrer (Borges, faz dez anos!) – eu disse numa entrevista: "Hoje não existe nenhum outro escritor vivente que importe mais a outros escritores que Borges. Muitos diriam que é o maior escritor vivente... São muito poucos escritores de hoje que dele não aprenderam ou o não o imitaram". E isso continua sendo assim. Ainda continuamos aprendendo com o senhor. Ainda continuamos a imitá-lo. O senhor ofereceu às pessoas novas maneiras de imaginar, ao mesmo tempo que reiterava, aqui e acolá, nossa dívida com o passado, sobretudo com a literatura. O senhor disse que devemos à literatura praticamente tudo o que somos e o que fomos. Se os livros desaparecerem, desaparecerão a história e também os seres humanos.Estou convencida de que tem razão. Os livros não são apenas a soma arbitrária de nossos sonhos e de nossa memória. Também nos fornecem o modelo da autotranscendência. Alguns pensam que a leitura é somente uma forma de escapismo: um escape do cotidiano "real" a um mundo imaginário, o mundo dos livros. Os livros são muito mais do que isso.
Lamento ter de dizer-lhe que a sorte do livro jamais esteve tão ameaçada por semelhante decadência. São cada vez mais os que alardeiam o grande projeto contemporâneo da destruição das condições que tornam a leitura capaz de repudiar o livro e seus efeitos. Imagine-se aconchegado na cama ou sentado num canto tranqüilo de uma biblioteca, folheando lentamente às páginas de um livro à luz de uma lâmpada, e à queima-roupa lhe dizem que daqui para a frente é nos “livros-tela” que deverá descarregar qualquer "texto" a pedido, e que poderá mudar sua aparência, formular perguntas, "interagir" com esse texto. Quando os livros se convertam em "textos", com os que "interagiremos" segundo os critérios de utilidade, a palavra escrita se terá convertido simplesmente em mais um aspecto de nossas realidades televisivas, regidas pela publicidade. Este é o glorioso futuro que se está criando – e que nos prometem - como algo mais "democrático". Obviamente o senhor e eu sabemos que isso não significa nada menos que a morte da introspecção... e do livro.
Esses tempos sequer exigem uma grande conflagração. Os bárbaros não têm que queimar os livros. O tigre está na biblioteca. Querido Borges, entenda, por favor, que não me dá prazer queixar-me. Mas: a quem melhor poderiam estar dirigidas estas queixas sobre o destino dos livros - da leitura em si – senão ao senhor? (Borges, faz dez anos!) Tudo o que quero dizer é que sentimos sua falta. Sinto saudades do senhor. O senhor continua fazendo a diferença. Estamos ingressando em uma era estranha, o século XXI. Porá à prova a alma de maneiras inusitadas. Contudo, lhe prometo: entre nós alguns não abandonarão a Grande Biblioteca. E o senhor seguirá sendo nosso exemplo e nosso herói.
Um comentário:
Dos de mis escritores favoritos, reunidos en un homenaje de la primera al último, ambos ahora finados, unidos en una muerte diacrónica: Susan Sontag y Jorge Luis Borges...una epístola para no olvidar, pues .la misma muerte la ha elevado al umbral mismo de la eternidad, aun cuando nada ya sea eterno, salvoel rastro mismo de la literatura pergeñada en lo vivido..
Besos y feliz semana.
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