08 dezembro 2016

Frederico Füllgraf - Isabelle Eberhardt, a vagabunda europeia convertida ao Islã (Parte 1)


Ensaio


"Aqui, nestas areias, eu te sepulto, te deixo para trás, menina triste de Genebra!".
Pensa isso e lágrimas lhe escorrem pelo rosto esturrado por vento incandescente e golpeado pela areia.

Sou marcada por um estigma - balbucia: - Jamais estive segura de quem é meu verdadeiro pai – se Vava, ou se... Oh, Nathalie, minha mãe, por que nos lançaste na desonra?

Solilóquios muito prováveis, sobre a corcova de um camelo, de Isabelle Eberhardt, a “amazona enigmática do Saara”.

O camelo trota na cadência preguiçosa do vento, Isabelle faz sua viagem de retorno ao passado.

"Adotei um sobrenome, não por ser teu, mas de tua mãe, minha Oma alemã, amada e distante. Fuga da Rússia, anos de desvario na Suíça e Itália. Deste-me um preceptor que era teu próprio amante. Aprendi latim, francês e alemão, árabe, física e astronomia, mas também o medo. E vontade de fugir daquele monge russo, demente, que nunca me reconheceu como filha sua. E não a sou - não é mesmo, Nathalie? Sei que jamais me responderás, levaste o segredo contigo para a tumba, no cemitério em Bône. Sobre tua lápide escrevi “Fathima-Manubia”, pois eras conversa como eu. Mas encontraste a tua paz, mãe? A minha, roubaste-me: como não varar noites em vigília, movendo-me em becos, escadarias, mansões de Genebra e Gênova, perscrutando alcovas em busca de minha filiação?".

Entre desfiladeiros e dunas, estende-se, infinito, o oceano de areia, incendiado por sol áspero, impiedoso.

São indecorosos estes excessos de luz!

Disfarçada de berbere, vestindo anchasgandouras burnus, brancos, que lhe escondem as inconfundíveis curvas femíneas, e um umara, que oculta seus cabelos loiros, uma mulher, que não é nativa, cavalga, solitária, no deserto. 

A confusão em torno de sua identidade produz desconcerto, levanta suspeitas na fronteira tunisiano-argelina: - Voilá, le monsieur é uma mademoiselle! - zombam de seu travestimento.

Travestimentos

Vestida de beduí, apresenta-se como ”Si Mahmoud Saadi”, que é portador - "Ou devo dizer:´portadora´?", alfineta o legionário do posto de fronteira - de um passaporte russo em nome de “Isabelle von Moerder”. 

Mais difícil que imaginar uma europeia viajando “somente por prazer”, como disse, por esses ermos mortíferos, é aceitar diante de si um hermafrodita em carne e osso – a não ser que ... - Espiã? 

Ora, capitain, o grande segredo deste deserto habita ali! - diz zombeteira, ”Si Mahmoud Saadi”. 

E acompanhando seu indicador, que aponta para as alturas, deixam-na seguir.

Estranhas sonoridades essas, de uma “legião estrangeira” nas fronteiras do Levante, que está apreendendo a odiar – e pensar que Nicola e seu amado Augustin são legionários! 

Observa os altivos tuaregs, em cujos olhos claros, que espreitam da fenda de seus umaras, por instantes parece faiscar a mirada furtiva daqueles Vândalos germânicos, que cruzaram Gibraltar após a queda de Roma, instalando-se em Cartago. 

Repousa sobre eles um olhar de intensa penetração, ainda distraído por algum exotismo, que vai se diluindo, dando lugar a uma compaixão da revolta. 

Não apenas defenderia a causa destes fellahs nativos, árabes e kabyles, contra os colonizadores: sente desejo de unir-se a eles em plano espiritual. 

Seguir aos humilhados e oprimidos é o que gostaria de fazer. Se necessário for, até a morte, na trilha ao encontro de Alá, O Misericordioso. 

E eles seriam os heróis de sua saga.

Roupas de homem! A recordação lhe rouba um sorriso fugidio: por medidas de economia, na infância vestia as roupas de seus irmãos, de preferência as de Nicola e Augustin, com as quais amava desfilar e exibir-se nas ruas de Genebra. 

Androginia? 

Ora, por acaso não fora educada como um menino, não se furtando a partir lenha com o machado, subir em árvores com os garotos? 

Talvez seja esse o motivo dessa mania de vestir-se com prendas masculinas. 

Numa foto de 1895, dois anos antes de embarcar para a Argélia, ela veste um traje de marinheiro. Sua expressão de adolescente ainda não perdera a inocência: mirada severa, de grande beleza, pômulos ligeiramente pronunciados, lábios carnudos. E sob a gorra, o cabelo cortado à escovinha, invadindo a fronte ampla - um golpe de vista rápido, e seu rosto lembraria a beleza ao mesmo tempo deleitosa e efeminada do "poeta ladrão", comentam alguns do fogo". O curioso é que, quando se veste de mulher, parece um jovem disfarçado. Isto a confunde, a faz sofrer. Já com os atavios beduínos é inteiramente ela mesma.

Jean-Nicholas Arthur

No tremeluz do horizonte em chamas, aproxima-se uma caravana, depois um comboio militar. 

Os homens saúdam Si Mahmoud, ela responde, jovial. Depois volta às contas: segundo sabe, desiludido com a Comuna, em maio de 1875, Jean-Nicholas chega a Milão, onde uma dama apiedada o teria acolhido – quem foi? No verão, Jean-Nicholas tenta visitar um amigo nas ilhas Cícladas, lá sofre uma insolação e é repatriado para a França pelo cônsul francês de Ligurno. Conta nos dedos: chegando de Hamburgo, em 1876, Jean-Nicholas esteve às margens do lago Léman, de onde, via Gênova, partira para Alexandria - Al-Eqsandría, soletra, brincalhona, em árabe. 

Nasci em ´77, então poderia ter acontecido em ´76. Mas: e Verlaine, eles não...?

Deserto - o céu varrido de nuvens, seus olhos tentam evitar as torrentes de luz cegante. 

É muito digno, mas também assustador esse Magreb, voz moura que significa “lugar onde se põe o sol”, a parte mais ocidental do Mundo Árabe, onde o Levante se chama Mashreq

Pensando em voz alta, surpreende-se, ditando apontamentos para seu diário: - Aqui, o Saara, adverso e silencioso, com sua melancolia eternal, seus rompantes e seus encantamentos, conservou com ciúme a raça sonhadora e fanática, que partiu de longínquos desertos de sua pátria asiática. E feitos assim, são muito grandes e belos os nômades assim vestidos, e de atitudes bíblicas, que querem devotar-se ao Deus único...

O Saara é o destino de uma fuga. E de exílio. Isabelle chegara em busca do equilíbrio. 

Parece paisagem feita na medida de uma religião, ou vice-versa. 

Evocando a revelação, a transfiguração, a terra se apresenta esbraseada pelo impacto de uma crença religiosa: ”como se os afloramentos rochosos e o ressequimento da paisagem resultassem não dos rigores do clima, da erosão, mas de um gigantesco incêndio movido por uma fé em chamas”, diz Ernest Renan, historiador e filólogo francês em "Histoire générale des langues sémitiques". 

Esta imensidão ondulada não poderia ser um oceano de águas, panteão de muitos deuses e mitos, como na Grécia. “O deserto é monoteísta”, diz Renan, “sublime em sua imensa uniformidade, ele não se poupa em revelar ao homem a ideia do infinito...”. 

É também por isso que a bandeira do Islã é verde: o paraíso só pode estar localizado onde brotam os mananciais e onde farfalham as tamareiras; de oásis em oásis chega-se ao grande mar.

Contudo, em sua vastidão incontida, o deserto é também libertação, desnudamento, afloração de desejo. E é preciso que se diga: uma romantização tão insistentemente figurada por ocidentais. 

Fatas morganas dançando sobre as dunas, é quando assaltam-na os fantasmas de Túnis. 

Tentando mimetizar-se com a gente e a paisagem, ela o tem feito de modo literal. Enquanto à luz do sol, no fervor religioso desvanece sua condição feminina, à noite traveste-se, transmuta-se, submerge no labirinto dos cafés e prostíbulos da casbah: amparada em seu disfarce masculino, e ébria de cânhamo do kif, de licor ou palavras, primeiro observa os homens, depois os seduz, até a revelação de sua androginia.

Cavalgadas noturnas

Fêmea sempre ardente, ela arrasta-os até o leito, abrindo-se feita concha aos trancos da maré. 

Nesses momentos um estranho gotejar religioso reverbera nas próprias torrentes de seu corpo – acaso sir Richard Francis Burton, o embruxado viajante de Torquay on Devon, não se acasalara com uma prostituta do templo indiano, nas ruelas cloacinas e repugnantes de Baroda, até a embriaguez dos sentidos?




Arrepiada pela posse de suas ancas de alabastro, sente-se duna partida em duas pelo açoite do vento... E sobe e desce, enraizando-se na corcova de um camelo imaginário. Montaria dócil, mas fogosa, re-aninha-se, submete-se ao macho de duras falas, turcas ou árabes, cavalga e deixa trepar-se, noite adentro, até a derradeira, extática sacudidura de seu músculo famélico, que rejeita a mera brisa, que necessita de tempestades e rebentação, até alcançar a praia na pequena morte, inundada de maresia e estrelas. 

- Ah, Flaubert, Burton, e seus Orientes como território imaginário da erotização ilimitada!

Mas então estremece com a lembrança. 

Na sela do cavalo escreve: ”O que mais dano me causa, é a prodigiosa mobilidade da minha natureza e a instabilidade realmente desoladora de meus estados de ânimo, que se sucedem uns aos outros com rapidez jamais vista. Isso me faz sofrer e não conheço remédio melhor que a muda contemplação da natureza, longe dos homens, cara a cara com o grande Inconcebível, único refúgio das almas desamparadas […]”

Quer muito, mas não consegue esquecer Genebra, onde nasceu sob o signo nefando da ilegitimidade, da falta de chão. É filha de mãe aristocrática, alemã e luterana, há séculos arraigada no Báltico, que se casara com um general viúvo, com importantes cargos imperiais na Rússia czarista, a quem, antes dela, dera dois filhos e uma filha.

O monge anarquista

E o infortúnio instalara-se em suas vidas naquele dia infausto em que Pavel Karlovitch, o marido de sua mãe, introduzira em seu palácio Alexander Vava Trofimowsky como preceptor da esposa e dos filhos. 

Ex-monge ortodoxo armênio, convertido ao islamismo, mal-temperado com algum anarquismo, Vava não demorou em "socializar" a esposa do patrão.

Dissimulando doença, Nathalie precipita-se para Genebra, onde recém-chegada, dá à luz a Augustin; o quarto filho a criar além dos três trazidos de São Petersburgo com seu tutor. 

Pavel Karlovitch morre quatro meses depois, fulminado por um ataque cardíaco; mas não sem antes receber a generosa anuência de Vava, adepto do amor livre, para um “coito misericordioso” com sua esposa infiel. 

Sentindo-se desonrada, a traidora nunca mais retorna à Rússia. Quatro anos mais tarde, dá novamente à luz: Isabelle-Wilhelmine-Marie, registrada como filha "ilegítima". Mas por que? Por acaso para proteger a identidade do pai anônimo – o anarco-muçulmano?

Os Rimbaud na Argélia

Era o que Nathalie, sua mãe, insinuava, torturada pela dúvida: coabitando com Vava, jamais poderia admitir sua aventura com aquele jovem belo e selvagem de apenas vinte e dois anos, que lhe fora apresentado em julho de ´76 – “outro errante, de corpo e alma ambiláteros”, tentava justificar-se. 

Seu pai, um capitão de infantaria francês, participara entusiasmado da conquista da Argélia, sendo recompensado como oficial de administração em Sebdu, região de Orã. Espírito erudito, legara várias obras (que se perderam), entre elas uma tradução do Alcorão. Profissional da guerra, também abandonara a família. Fora tanta a dor, que Vitalie, sua esposa, o proibira de ver os filhos; frutos, todos, de fugazes obrigações durante as licenças do capitão. Vitalie, a primogênita, fenecera precocemente aos dezessete anos. Em 1854, viria ao mundo Jean-Nicholas, seis anos mais tarde, sua irmã Isabelle, sua grande confidente, que o assistirá em seus derradeiros dias. 

Trofimovsky, o cura ortodoxo, dublê de alcoranista e anarquista, costumava demorar-se em viagens à Rússia, e quando fora tratar da herança deixada pelo general Karlovitch, Nathalie dera à luz a Isabelle. O que ela não lembra, é se Vava já se ausentara quando ela se entregara a Jean-Nicholas... Outra coincidência perturbadora: Jean-Nicholas e sua irmã Isabelle, também eram furiosamente apaixonados um pelo outro.

Durante a cavalgada penosa e solitária a caminho de El Oued, surpreende-a uma pequena caravana tunisiana, em missão de sindicâncias e arrecadação do medjaba, o imposto cobrado aos homens. Seu chefe é Si Elarhby, jovem califa de Monastir, acompanhado de dois velhos tabeliães árabes e um destacamento de soldados espahís, nativos. Espontaneamente, como é de sua têmpera, Isabelle une-se a eles como "escrivã": “ele o faz por dever, eu [viajo] por curiosidade”, anota em sua crônica, encomendada por um jornal.

O claustro de valores islâmicos que contracena com sua desordem afetiva, sentimental e estética, ameaçam explodi-la. O mundo exterior a atrai feito fruto selvagem. 

Como maneira de exorcizar seus demônios, começara a escrever, traduzindo para o francês os versos do poeta russo, Nadson, encorajada por intelectuais árabes, como Abou Nadara, que dirige uma revista em Paris. 

Numa carta enviada de Annada a um amigo, anos depois, Isabelle desvela sua motivação para a escrita, ingênua como suas crenças: "Escrevo porque gosto do processo de criação literária. Escrevo do jeito que amo, provavelmente porque esse seja meu destino. E é meu verdadeiro consolo". 

Um grande projeto literário vai assomando em seu horizonte, na verdade uma novela autobiográfica, provisoriamente intitulada ”Trimardeur” – vagabundo. Antes dele, porém, quer publicar “Escritos no Deserto”, mas faltam-lhe mais impressões de viagem.



Ilustrações: Divulgação

Leia mais: Parte 2: http://fuellgrafianas.blogspot.com/2015/01/frederico-fullgraf-isabelle-eberhardt.html