São
raras as cantoras, cuja voz é capaz de encantar-nos em
três idiomas simultaneamente. A joia rara chama-se Ute Lemper.
Em
seu mais recente trabalho, Ute
Lemper Forever. The love poems of Pablo Neruda, a
alemã residente em Nova York trafega do francês com sotaque nativo,
pelo inglês, que é obrigada a falar em família, ao espanhol.
Espanhol cantado de ouvido, escreve-me, porque falá-lo
espontaneamente não tem coragem ainda.
Começamos
a escrever-nos após a apresentação de seu novo repertório
nerudiano na Sala São Paulo, em outubro último, com fundos
destinados à pesquisa de combate ao câncer, de onde decolou para
uma apresentação especial na 41ª edição do Festival
Internacional Cervantino,
no México, e de lá para Nova York, onde reside há quase vinte
anos.
Naquelas
semanas, na pátria de Pablo Neruda eram lembrados os 40 anos do
golpe militar, que matou Salvador Allende, torturou e assassinou
milhares de democratas chilenos, e que vitimou o próprio Prêmio
Nobel de 1971, autor dos elégicos “Versos del Capitán” e de
“Residencias en la Tierra”, que Lemper explorou para seu novo
repertório, deles selecionando doze poemas para o CD divulgado mundo
afora com um trailer, guiado pela própria cantora e compositora.
Lembrei-me
do domingo ensolarado de abril, em Isla Negra, quando os ossos do
poeta eram sacudidos pela terceira vez desde sua morte, em 23 de
setembro de 1973. Depois de sepultados no Cemitério Geral de
Santiago, lá transladados de uma sepultura emprestada para outra,
própria, e de lá para Isla Negra, na década de 1990, em abril de
2013 foram novamente exumados por determinação judicial, para
submeter a exame forense suas mais recônditas fibras e tecituras, em
busca de alguma pista que ateste sua morte por interferência de
terceiros, leia-se: um assassinato.
Por
isso, disparei a queima-roupa: - E o Chile, Ute, não vai se
apresentar aqui?
Juntei
algumas fotos minhas, da praia acidentada por rochas negras, nos
fundos da casa de Neruda, enviei-as para Ute e provoquei-a com a
sugestão de ali montar um palco a céu aberto e interpretar os
poemas do Prêmio Nobel, homenageando seu mar e proporcionando-lhe a
paz merecida. Porque antes de escrever Os Versos do Capitão, em 1939
Neruda adquirira do capitão espanhol aposentado, Dom Eladio Sobrino,
a velha casa da então Playa de las Gaviotas. Nas redondezas coletara
proas, escombros de cascos, mastros, escotilhas e toda sorte de
animais marinhos, até dar à nova casa aspecto de barco e rebatizar
a enseada de “Isla Negra”, da qual seria o “capitão”. Com
privilegiada “gávea”, seu escritório, poderia então deitar seu
olhar sobre o vasto Pacífico, pois como observou Francisco Rivas,
escritor chileno, “para Neruda, o mar é aquilo, onde tudo nasce e
tudo se dissolve”.
Ute
Lemper recebeu com entusiasmo a proposta de um ciclo de shows no país
onde já se apresentou, mas do qual apenas se aproximou
emocionalmente com a obra de Neruda.
Recusei,
lisonjeado, o convite para atuar como seu “delegado” de
pré-produção para suas apresentações no Chile, porque não tenho
traquejo de “agente”, não conheço as manhas do “mercado” e,
sobretudo, não sou titular de portifolio pecuniário para negociar
com teatros e intermediários que se pautam unicamente no vil metal,
por isso sugerindo à cantora um papel com menos exposição, “atando
cabos soltos” nos bastidores.
Em
tempo: “te manterei informado sobre o que penso fazer”,
escreve-me pouco antes do Natal, em 2014 está mesmo decidida a
apresentar-se na patría de Neruda, que era cidadão do mundo.
Trinta
anos de carreira
Ute
Gertrud Lemper foi criada em uma família de classe média na
histórica cidade de Münster, cuja tradução é “mosteiro”. O
nome rebatizou uma fundação da Antiguidade, usurpada a ferro, fogo
e torrentes de sangue aos valentes Saxões, que desde o Mar do Norte
colonizavam o delta do Reno, no séc. VIII massacrados por Carlos
Magno, o brutal cristianizador germânico, fundador do Sacro Império
Romano de Nação Alemã.
Criança
ainda, Lemper aprende piano e balé, frequentando o Instituto de
Dança Clássica na vizinha Colônia, de onde se transferiu para o
seleto Seminário Max Reinhardt de formação de atores, em Viena.
Na
década de 1980, ela fixa residência em Berlim, onde se dedica ao
estudo do gênero cabaré.
Em
1972, Bob Fosse levara às telas o já clássico “Cabaret”, com
Lisa Minelli interpretando Sally Bowles em um palco decadente de
Berlim, no início dos anos 1930. Em 1986, com adaptação para os
palcos europeus do mesmo enredo da Broadway, Lemper, 23 anos apenas,
revive Sally Bowles em uma turnê retumbante Alemanha afora. Nos anos
1990, ela volta à cena com “In search of cabaret” montado no Theater des Westens, em Berlim, que homenageia duas
vertentes do gênero e suas grandes divas, Marlene Dietrich e Edith
Piaf.
Com
este resgate, o grande mérito intelectual de Ute Lemper foi escrever
a memória do mais importante gênero musical alemão do preríodo
pré-nazista.
A
época coincide com a presença na cidade intra-muros do comediante
off
norte-americano, de origem judaica, David Tabatsky, que formava
atores para espetáculos de variedades e se apresentava em endereços
como o “Scheinbar” (Bar aparente) e o “Bar jeder Vernunft”
(trocadilho para Bar sem Juízo), os musts
no
cenário fringe. Conseguiu divertir suas platéias com uma trilogia
hilariante: The
Man with Three Balls
(O
homem com três testículos),
How I Survived My Jewish Mother (Como
sobrevivi Minha Mãe Judia) e
Help! I Married a German (Socorro,
casei com uma alemã!).
A
alemã do título era Ute Lemper.
Nem
tudo foi brilho na Cidade Luz
Em
1994, Lemper mudou-se a Paris, onde nasce seu segundo filho. Enquanto
Tabatsky tentava sobreviver com suas comédias off,
ela
aferrava-se às pegadas do chanson,
que
marcaria sua obra com
duas referências indeléveis: Edith Piaf e Jacques Brel. É
em Paris que ela estreia no cinema, com uma ponta em
“Prêt-à-porter”
(1994) de Robert Altman, no qual desfila ao natural, grávida e nua
em pêlo.
Contudo,
da Cidade-Luz não guarda boas recordações apenas: aos 23 anos de
idade, sentia-se
ao mesmo tempo deslumbrada e despreparada. A truculência, a
veemência com que era explorada por agentes, manchetes de jornais e
pela TV a assustou. Impossível ter dito tudo aquilo que era
publicado a seu respeito. Confiar
não podia em quase ninguém, seu melhor amigo – infelizmente, diz
ela - era também seu agente e ainda por cima seu amante; tipo
desprezível, que somente a explorara. Por
outro lado, a
França desejava que ela encarnasse a “nova Fräulein da Alemanha”,
uma alusão à imorredoura fama de Marlene Dietrich.
Em
1997, por um breve período a família mudou-se para a Londres e de
lá para Nova York, onde Lemper finalmente alcança sua consagração
como bailarina nos musicais Cats,
Peter Pan e The Blue Angel, em
Chicago, e ainda em Cabaret
e
Starlight
Express.
Solteira
por alguns anos, após separar-se de Tabatsky, no início do novo
milênio casou-se com o baterista Todd Turkischer, com quem aos 48
anos de idade topou ter um quarto filho.
Volta
e meia retornando ao seu país de origem e apresentações na Europa,
Lemper é protagonista de extensa cinematografia, que vai de seriados
na TV Alemã (A
herança dos Guldenburgs, Três contra Três,
ee.oo.), a primeiros papéis em produções como
Moscou Parade,
Coupable
d'innocence, Combat des fauves,
Appetite
e A
River Made to Drown In.
Ute
Lemper é detentora do Prêmio Moliére (Cabaret), já foi nominada
para o Prêmio Laurence Olivier e em 1999 foi agraciada com o Theatre
World Award por sua estreia nos palcos americanos. É ainda autora da
autobiografia inédita no Brasil, Ute
Lemper. Unzensiert
[Ute Lemper sem Censura, Ed. Henschel, Berlim 1995) e protagonista do
documentário There
is no Paradise (2002),
de Christoph
Rüter.
Neruda,
poeta do amor
Em
The
love poems of Pablo Neruda, Lemper
repete um recorte de obra já realizado no resgate do gênero cabaré,
optando
pelo romantismo que precedera as evocações ideológicas mais e mais
presentes na obra do poeta, anterior à década de 1940, selecionando
onze poemas dos ciclos Os
Versos do Capitão e
Residência
na Terra.
Em
seu prefácio ao CD, o jornalista Adam Feinstein, que assina seu
Twitter como “especialista em autismo e Pablo Neruda”, justifica
a escolha, afirmando que “amantes em todo o mundo continuam
cortejando um ao outro com versos de Vinte Poemas de Amor e Uma
Canção Desesperada”, e que “a poesia amorosa de Neruda, seu
humanismo e, sobretudo, sua contagiante paixão pela vida continuam
tão relevantes e vitais como o foram desde sempre”.
Neruda
foi isso: o bardo incitador da libertação do jugo capitalista, e o
poeta do intimismo amoroso. Em sua obra, cada um escolhe o que sua
alma pede. A luta contra a opressão e o amor são pulsões perenes
da alma humana, já Lemper escolheu seu lado mais doce, nem por isso
menos áspero: o amor. E explica por que, no vídeoclip de divulgação
do CD (vide vídeo).
Os
“Versos do Capitão” - breve crônica de uma traição
Desfrutar
The
love poems of Pablo Neruda não
é para qualquer ouvido: é uma obra para audição paciente e
perspicaz, escolada pelo bom gosto. O desafio é colocado logo por La
Noche en la Isla,
primeiro título do CD, interpretado em francês e com arranjos de
tango.
Não
será exagero afirmar que, desde que se apresentou em Buenos Aires
pela primeira vez, em 2000, Ute Lemper sofre obsessivo fascínio pelo
tango, e muito particularmente pela dolor,
essa
angústia cadenciada que habita as composições de Astor Piazzola.
Com Neruda, Lemper faz sua segunda aproximação às vibrações da
alma latino-americana.
A
noite na ilha
é na verdade um dos reptos mais espetaculares na vida e obra do
poeta. e merece breve intermezzo.
A
ilha é uma alusão a Capri, onde Neruda e uma amante secreta se
esconderam em 1952 da então esposa e patrocinadora do poeta, a
artista plástica argentina, Delia del Carriel.
O
poeta e Delia encerravam um nervoso ciclo de exílio, iniciado em
1948, depois que o então senador pelo Partido Comunista, Pablo
Neruda, foi perseguido pelo governo de Gabriel
González Videla, no Chile, escapando para a Argentina com identidade
falsa, em lombo de cavalo. Alcançando o México - no qual dez anos
antes se desempenhara como cônsul chileno, e de onde ajudara a fugir
em sentido oposto o pintor estalinista David Siqueiros, líder do
primeiro atentado contra Leon Trotzky – Neruda adoecera de uma
flebite e quis a “coincidência” que uma amiga de encontros
furtivos em Santiago, naquele momento cantora em botecos da Cidade do
México, chamada Matilde Urrutia, o atendera como enfermeira – tudo
sob o ingênuo olhar de Delia del Carriel, vinte anos mais velha que
o marido.
Ali,
Neruda inaugura o primeiro de seus contumazes triângulos amorosos,
pois parte à Europa em companhia de Delia, mas seguido de perto por
Matilde: o casal hospedado em um hotel, Matilde em outro, a poucas
quadras do seu; o casal viajando de trem, Matilde embarcada no mesmo
comboio, poucos vagões atrás. Até que o poeta convence sua mulher
para retornar sozinha ao Chile.
Ato
contínuo, em companhia de Matilde inicia um périplo político pela
Europa, que os conduzirá à RDA e à União Soviética, onde,
envergonhado por assumir seu concubinato, o chileno apresenta Matilde
como amante do poeta cubano Nicolás Guillén.
Segundo
Hernán Loyola, biógrafo de Neruda, foi tal a preocupação em
blindar a traição de Delia del Carril por Neruda, que entraram em
cena agentes da Stasi, o tristemente famoso serviço secreto da
antiga RDA.
Neruda,
que jurava com a mão direita sobre o Manifesto Comunista, era também
um bon
vivant que
cultivava amizades burguesas e barrocas. Uma delas o unia ao
arquiteto, engenheiro naval e paisagista italiano Erwin Cerio, editor
da revista Tra
il riso e il pianto,
que publicava poemas do chileno.
Ciente
do affaire de Neruda, Cerio lhe oferece sua casa como esconderijo em
Capri, onde o poeta e Matilde Urrutia chegam na primavera de 1952.
Deslumbrada
com o Mediterrâneo a seus pés, em suas memórias (Mi Vida Junto
a Pablo Neruda, Seix Barral, 1987) Matilde recorda a casa de
Cerio: "Nuestra primera comida en ella, nuestra primera noche en
ella. Sería tonto describirla, jamás llegaría a encontrar las
palabras para dar la mínima idea de lo que fue. Solamente diré de
aquella y de aquella noche: ¡qué fiesta!".
Em
uma noite de lua cheia, Neruda lhe presenteia um anel com a seguinte
dedicatória: “Capri, 3 de maio de 1952, Seu Capitão" e lhe
dedica estes versos: "Toda la noche he dormido contigo / junto
al mar, en la isla./ Salvaje y dulce eras entre el placer y el sueño,
/entre el fuego y el agua".
Ali
nasciam Los Versos del Capitán, que Urrutia guarda em uma
caixa de madeira acabada em madrepérola.
Paolo
Ricci, artista plástico, sugere publicar Los
Versos..., empreendimento
financiado pelo Partido
Comunista italiano, com uma dedicatória “ao companheiro, exiliado
e poeta", e a menção dos distintos incentivadores na última
página do poemário: Luchino Visconti, Giulio Eunaudi, Carlo Levi,
Renato Gattuso, Salvatore Quasimodo, Elsa Morante e Jorge Amado, que
dividia com Neruda o mesmo infortúnio, após a proscroção do PCB e
sua expulsão do Brasil. A ironia: Neruda vivia tórrida
paixão por uma Matilde, já Amado se separara de outra - Matilde
Garcia Rosa. A
primeira edição com 44
exemplares de
Os
Versos do Capitão
foi publicada em julho de 1952, a capa decorada com a cabeça de uma
medusa e ilustrações de Ricci. Assinados por “autor anônimo”,
os versos foram falsamente divulgados como “apócrifos”. O ardil
visava apenas um objetivo: não revelar a autoria de Neruda à sua
ainda esposa Delia del Carril. Ler
Neruda em chanson
Em
Madrigal
escrito en invierno,segunda
faixa do disco sobre poema do ciclo Residencias
en la tierra, Lemper
incursiona pela primeira vez no idioma do poeta com uma sentida
balada, retocada por acordes do sensacional instrumentista chileno,
Freddy Torrealba, tido como a máxima expressão do charango
andino,
que
merece ser apreciado em um solo executado no Chile. De
Si tú me olvidas (jazz
virtuoso e rasgado, interpretado em inglês), por Tus
Manos
(poema de Los
versos del Capitán,
musicado como
tango e cantado em espanhol), El
viento en la isla (tango
raivoso), Alianza.Sonata
(sofrido
chanson interpretado em inglês), Siempre
(improvização de voz de Lemper com declamação de Freddy
Torrealba, repetido em inglês com Always),Ausencia
(tango cantado em espanhol),
El Sueño (maravilhoso
arranjo de cordas árabe), até Oda
com un lamento (poema
de Residencias en la Tierra, transformado em tango)
e, finalmente o desolador Poema
20
(jazz executado em inglês), a alemã amalgama com maestría e beleza
ímpares as grandes vertentes do gênero chanson
que
impregnaram seu estilo: Jacques Brel, Edith Piaf, Léo Ferré, Kurt
Weill, Astor Piazzola, Johnny Mitchell, para citar os principais. Acompanhada
por instrumentistas de primeira linha - Juan Antonio Sánchez (Chile,
arranjos de cordas), Tito Castro e Victor Villena, do Sexteto
Piazzola (bandoneon), John Benthal (violão), Steve Millhouse
(baixo), Vana Gierig (piano), Todd Turkisher (percussão), Wolfram
Koessel (violoncelo), Dov Scheindlin (viola), Jesse Mills (violino) e
Freddy Torrealba (charango) como artista convidado - Ute
Lemper Forever.The love poems of Pablo Neruda é obra
sem igual, desde já um clássico. Mas
é também isso: fiel às noções de Neruda, é uma apaixonada e
enfática evocação do amor e da vida, em
tempos da teimosa destituição de seu sentido. O que Ute Lemper
conseguiu é literalmente revestir de sangue, sêmen, suor e lágrimas
os poemas do chileno, em atos de expressão amorosa com total entrega
de seu corpo e alma.
Em
dado momento de nossas conversas por correio eletrônico, observei a
Ute: - Com tanta disputa territorial e ameaça de guerra, que no
passado envenenou os ânimos dos chilenos contra os criativos
argentinos – que lhe presentearam a independência com San Martín,
e com Leopoldo Marechal, Jorge Luis Borges e Julio Cortázar
inspiraram um dos maiores romancistas chilenos da atualidade, como
admite o próprio Hernán Letelier – você não teme que, com tanto
Neruda vertido em Tango a plateia chilena se sinta “acossada”?
Ao
que Ute Lemper respondeu: - Me sugira então alguma canção de
Violeta Parra para abrirmos o show. Publicado originalmente em: