Na sexta-feira, 11, o presidente russo Vladimir Putin aterrissou em Havana, dando início a uma jornada de seis dias em visita aos que Moscou agora considera seus parceiros estratégicos na América Latina: Cuba, Argentina e Brasil. Com sua segunda escala em Buenos Aires, Putin reuniu-se com a presidente Cristina Kirchner, assinando com a Argentina tratados de cooperação nuclear, comunicação e extradição. No Maracanã, Putin recebeu da presidente Dilma a transferência simbólica da Copa do Mundo, que a Rússia sediará em 2018. Como coroação de sua jornada, o presidente russo co-assinará as atas de fundação e dotação, com capital inicial de 100,0 bilhões de dólares, do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), o banco dos BRICS. Integrado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, a 6ª Cúpula do grupo ocorre de 14 a 16 de julho em Fortaleza.
O pit stop em Cuba não visava a dividendos econômicos. Muito pelo contrário, em Havana, Putin assinou um debt relief de 90% dos 35,2 bilhões de dólares devidos há trinta anos a Moscou pela ilha, e sugeriu investir os 10% restantes em projetos de infra-estrutura local – um generoso presente para a administração Raúl Castro.
Enquanto homenageavam com coroas de flores os soldados soviéticos em Havana, e José Martí, o herói nacional cubano, Raúl, vestindo terno escuro como seu par russo, suspirou sob o sol escaldante: “Temos que mudar o protocolo...Não usamos gravata neste país, só guayaberas e chapéus, shorts e sandálias... Este país não é para trabalhar, muito menos para guerrear. É um país para descansar. O que você acha?”.
Ao circunspecto Putin aquela frase deve ter soado como confissão de malandro, esquivo ao esforço, ou mau pagador. Foi uma frase de efeito, uma brincadeira do cubano com os russos abotoados e suando em bicas, mas Putin não estava ali para descansar.
Devolvendo o dedo no nariz
Se a opção por Cuba como primeira escala não tinha qualquer relevância econômica, é porque fora escolhida como cenário para uma demonstração que os ingleses chamam de to thumb one´s nose – enfiar o dedo no nariz de alguém. Se a atitude é própria de pirralhos mal-educados, foi, pois, o que fizeram em fevereiro do ano em curso, o governo Obama e a União Europeia, ao apoiarem descaradamente a derrubada do governo eleito de Viktor Yanukovich da Ucrânia e a instalação de um regime golpista, escoltado por hordas fascistas, nas barbas da vizinha Rússia.
Os rumores, segundo os quais, depois de 1962, Moscou voltaria a instalar uma base militar em Cuba, não passaram do que são: um hoax. Mas Putin deu seu recado: “se vocês chacoalharem a cerca da nossa casa, a gente vai criar encrenca na vizinhança de vocês! - e ostentou em sua comitiva ninguém menos que Igor Sechin, presidente da estatal de petróleo, Rosneft, e um dos executivos russos “castigados” pelo governo Obama com sanções, tais como a cassação de seu visto de entrada aos EUA. A medida seria uma retaliação à suposta ingerência russa na crise ucraniana, sobretudo a anexação da Crimeia. Ex-agente da KGB, como seu amigo e chefe, Vladimir Putin, em menos de quinze anos, Sechin fez da Rosneft a maior trader de petróleo do mundo. Contudo, muito antes da crise ucraniana, o executivo já encabeçava a lista negra de Washington porque, em parte, a expansão da Rosneft se deveu à encampação do império Yukos, fraudulentamente erguido por Mikhail Khodorkovsky, magnata recentemente libertado da prisão na Sibéria, e homem de confiança dos EUA.
“Pivôs do norte ao sul das Américas”
A agenda de Putin é ambiciosa, ele granjeia simpatias mundo afora, mas não chega como o gladiador vitorioso. A co-optação da Crimeia e a oposição russa ao novo governo ucraniano exigiram seu custo. Nos meses de março e abril, o valor as ações de empresas russas chegou a ser depreciado em 10% nas bolsas e as agências notificadoras Fitch e Standard & Poor’s ameaçaram rebaixar a classificação de risco da Rússia. No segundo estágio, os EUA elaboraram uma lista negra com os nomes de 30 executivos e 19 empresas russas, e a União Europeia listou 61 indivíduos e duas empresas, mas o plano de represálias prevê endurecimento, caso a Rússia não “contenha” os rebeldes do leste ucraniano, com os quais tem conversado, mas que na verdade não controla.
Os danos sofridos pela Rússia podem ser definidos como colaterais, entre retaliações à meia boca e apoio chinês, que promete absorver parte das exportações de petróleo e gás sustadas por países do ocidente.
Porém, como já advertia o hexagrama wei-ji do milenar oráculo I Ching , uma crise pode abrir o caminho para novas oportunidades, e Vladimir Putin desembarca na América Latina para amealhar aliados, promover seu projeto de uma nova ordem mundial multi-polar e com ele inaugurar um redesenho da geopolítica ditada por Washington.
“A jornada tem por objetivo construir uma rede de pivôs, do norte ao sul das Américas”, prega Vladimir Orlov, diretor do PIR, um think-tank do governo em Moscou. Colocada à margem das políticas globais, agora “estamos nos voltando com mais atenção e deferência aos nossos parceiros naturais, que não aderiram às retaliações”. E segundo Orlov, apesar de sua avançada idade, Fidel Castro é “o último dos moicanos” cuja análise sobre a atual e a futura ordem global Putin sabe apreciar.
E por falar em BRICS, diz Orlov, a etapa final da jornada do presidente: “Representamos cinco civilizações-chave, que contam 43% da população mundial”.
Fundos abutres e sanções, Crimeia e Malvinas
Dois pleitos dramáticos na agenda russa e argentina, gerados por fontes ocidentais de interesses compartilhados, sinalizaram a Putin a conveniência de aterrissar em Buenos Aires antes de sua chegada ao Brasil: o ataque dos fundos abutres às reservas cambias argentinas e a luta do país sul-americano pela reintegração de posse soberana do arquipélago das Malvinas, usurpado pela Inglaterra em 1833, que encontram sua correspondência nas sanções impostas à Rússia e no questionamento de seu direito legítimo de reincorporação da península da Crimeia, apoiada pela esmagadora maioria de sua população russófona.
Durante o jantar de sábado, 12 de junho, em Buenos Aires, em homenagem a Putin, ao qual Kirchner teve a gentileza de convidar o presidente uruguaio, José Mujica, os três presidentes afinaram os instrumentos de navegação de suas diplomacias contra o que Cristina Kirchner denuncia como a “dupla moral” dos países centrais com relação aos princípios da Carta da ONU, em especial sobre o suposto plebiscito realizado nas Malvinas, mediante o qual os residentes trazidos da Inglaterra votaram a favor da soberania inglesa sobre as ilhas; procedimento viciado, mas apoiado pelos países centrais.
A Rússia apoia o pleito argentino sobre as ilhas e veio agradecer a abstenção argentina – idêntica à brasileira – durante votação na ONU contra a incorporação da Crimeia.
Durante a reunião foram assinados três acordos estratégicos entre Rússia e Argentina. O primeiro deles sobre cooperação nuclear, que prevê a construção de um terceiro bloco na usina de Atucha. Um interessante convênio, não detalhado, entre o Ministério das Comunicações argentino e “meios de comunicação” russos, indica formas de intercâmbio e retransmissão de conteúdos em ambos os países. Finalmente, o acordo sobre extradição deixa entrever forte interesse russo pela cooperação judicial na caça a magnatas e mafiosos foragidos.
Acordos comerciais e investimentos russos
Obviamente, Putin veio para encorajar a intensificação do comércio bi- e multilateral com os países do Mercosul, para compensar pelo menos parte das operações com a Europa colocadas no limbo. Entre as ofertas russas estão armamento, indústria aeronáutica, engenharia de grandes projetos e logística.
Mujica sugeriu que o Mercosul assine já acordos comerciais com a Rússia, pois o Uruguai busca investidores para seu mega-projeto de porto de águas profunda, mas também para a retomada e ampliação de sua malha ferroviária. Em contrapartida, Mujica oferece alimentos, gado em pé, da melhor qualidade. Putin acha interessante a proposta, mas o Uruguai terá que parar de vacinar seu gado exportado contra a febre aftosa, proibida pelas autoridades sanitárias da Rússia.
Com o voto de Cristina Kirchner, Putin chega à reunião dos BRICS para agilizar a agenda sobre a reforma do sistema financeiro global. Agenda da qual o governo Dilma Rousseff é credor.
Publicado originalmente em:
http://www.jornalggn.com.br/blog/frederico-fuellgraf/vladimir-putin-na-america-latina-com-a-bola-no-pe#.U8PfNDvzL-w.facebook