01 julho 2012

Frederico Füllgraf - Chegar não é preciso: "O Barco da Selva" de Richard A. Bermann



Duas semanas após zarpar de Liverpool, com destino a Manaus, o navio de carga escocês, "Hildebrand", que também leva 150 passageiros a bordo, penetra na foz do Amazonas, mas é desviado de sua rota para o porto de Belém do Pará. O jornalista e escritor, Richard A. Bermann, que investira pequena fortuna naquela viagem, cujo destino são as profundezas da Amazônia de além-Manaus, vive a maior decepção de sua vida: com o nome de “Comuna de Manaus”, um movimento tenentista sublevou-se, suspendendo a navegação sobre o rio-mar. O barco fica retido em Belém e então se inverte o tal dito popular do “ficar a ver navios” - desta vez é o navio e seus passageiros que ficam a ver o rio. “Fiquei louco da vida. Que, depois de viajar para tão longe, chegar até o umbral da fantástica selva sul-americana, não me restasse mais do que vegetar no ´Grand Hotel´ e, no máximo, dar um passeio pelo parque da cidade, isso me deixou desvairado”, confessou Bermann.

Com vinte dias de penosa espera pelo fim da rebelião, o capitão dá meia-volta e retorna à Europa, sem que seus passageiros, entre eles alguns nobres e ingleses, endinheirados, tivessem sentido uma nesga de sabor da Amazônia profunda.

O hilariante episódio é real, aconteceu em 1924.

Três anos depois, Bermann surpreende o público com o romance Das Urwaldschiff
(O barco da selva) - estrondoso sucesso no mercado livreiro de 1927 (300 mil exemplares vendidos nos dois primeiros meses da publicação) e, oitenta anos após seu lançamento na Alemanha, ainda inédito no Brasil. Mas por pouco tempo: tive o imenso prazer de recomendar sua tradução e finalmente receber o convite para traduzi-lo.

A dialética do viajar

O barco da selva narra a estória do professor ginasial, Dr. Bernhard Schwarz, morador dos Sudetos alemães (atual República Tcheca), que após ler “800 milhas sobre o Amazonas”, de Jules Verne, sente-se consumido por imensa “saudade” da Amazônia, e embarca num cruzeiro, rumo à terra da promissão da literatura. Mas então ocorre a revolta tenentista e a retenção do „Hildebrand“ em Belém, que mergulham Schwarz na mais profunda depressão, porque o impedem de realizar o sonho de sua vida.                                         

Debruçado sobre um mapa, no salão do navio, enlouquece com aquela profusão de “manchas brancas” – unexplored! – da cartografia, e é como espécie de consolo ou ironia, quando Hillary, um dos passageiros ingleses, metido a escritor-viajante, começa a narrar a uma pequena platéia de passageiros entediados com o navio paralisado em Belém, a insana odisséia do insensato fidalgo, Francisco Orellana, que em 1541 se juntara à expedição de Gonzalo Pizarro, em busca do mitológico El Dorado.

Febril de gana pelo ouro, a tropa dos espanhóis ensandecidos se despeja dos altiplanos andinos para os baixios da bacia amazônica. Já atacado por outra febre, a da maleita, e encalhado na selva, Pizarro manda construir um barco e ordena a Orellana avançar com pequeno destacamento, com o objetivo de vasculhar saídas do mortífero abraço da floresta. Porém, ao invés de retornar ao acampamento-base, de Pizarro, Orellana sucumbe aos cochichos de seu intérprete Inca, Miguelito, trai Pizarro e embrenha-se cada vez mais na jungla profunda. Na verdade, a traição não foi intencional, pois Orellana manda lavrar em ata solene sua nomeação para Adelantado, justificando a medida a Carlos V com a inviabilidade de sua volta, corredeiras acima, até o acampamento-base de Pizarro - tudo muito correto!



À semelhança do equatoriano, Leopoldo Benítez Vinueza, autor do fantástico Argonautas de la selva (1945), também Bermann conduz seus leitores através das errâncias de Orellana, guiado pelos relatos do Frei Gaspar de Carvajal (Relación del nuevo descubrimiento del famoso río grande… - Quito, 1942), companheiro de viagem de Orellana em sua primeira expedição amazônica, a quem o rio deve seu nome, pois foram guerreiras, “amazonas”, que o cura temente a Deus e letrado em mitos gregos, avistara na margem do rio, antes que uma das flechas delas cravara e vazara um de seus olhos.

Estória(s) dentro da estória, em sua ânsia narrativa, Hillary, que deseja escrever o livro definitivo sobre a Amazônia, intercala a aventura de Orellana com outras crônicas desatinadas, tais como o desgraçado extravio de Isabel Casa-Mayor, mais conhecida por Godin des Odonais, que, separada há mais de quinze anos do marido francês, que partira para Caiena, em 1769 resolve ir ao seu encontro, abandonando Quito e precipitando-se mata adentro com quatro familiares, dos quais apenas ela sobrevive, graças ao seu resgate por um casal indígena.

Contrariando a História real, no romance de Bermann, Orellana finalmente alcança seu destino – o El Dorado. Rastejando de fome e delirando de febre, então se pergunta: só isso? Era isso, apenas, o que eu procurava? Provavelmente, foi também o que se perguntou Isabel Godin, ao reencontrar o marido, Jean Godin des Odonais, ex-integrante da expedição geodésica de monsieur de La Condamine, que já dilapidara o patrimônio do sogro e da esposa, agora acomodado em Caiena; e talvez fosse mesmo essa a razão dele para sua fuga do Equador.

Mas voltando ao eixo da narrativa, o “Hildebrand”.
Na véspera do retorno a Liverpool, todos os passageiros já a bordo – melhor: quase todos – alguém encontra o chapéu de explorador e o binóculo do Dr. Schwarz, pendurados na parede de bombordo. Procuram, vasculham o navio da proa à popa, da casa de máquinas ao convés, durante um dia inteiro mandam mergulhadores realizar buscas nas águas turvas do Amazonas, e nenhuma pista do professor alemão – ele havia desaparecido, ou nas profundezas do rio-mar, ou na mata cerrada, onde jamais seria encontrado.

O barco da selva é uma ironia que se insurge contra o ato de viajar, melhor dizendo: contra a chegada. Quando a aventura de Orellana se completa com sua morte, o romance de Bermann revela a moral de sua estória: navigare necesse, chegar não é preciso!


O Autor

Richard Arnold Bermann, que também escreveu sob o pseudônimo, Arnold Höllriegel, nasceu em Viena, em 1883, e faleceu em Saratoga Springs (EUA), em 1939, durante seu exílio como refugiado do nazismo. Jornalista e contista, Bermann iniciara sua carreira durante a Primeira Guerra Mundial como correspondente em Viena do jornal "Berliner Tageblatt" e colaborador de diversos diários locais. Com a anexação da Áustria pelo regime nazista, Berman deixou o país, estabelecendo-se nos EUA, somando-se ao American Guild for German Cultural Freedomà colônia de artistas exilados, conhecida como Yaddo.

Fora da Alemanha, Bermann ganhou fama como autor de narrativas sobre Hollywood e os bastidores da indústria cinematográfica, e cronista de viagens. Porém, nenhum de seus textos escritos nos EUA, jamais atingiu a marca d´ O barco da selva. Em 1921, a editora S. Fischer Verlag reeditou o Barco..desta vez sob o pseudônimo Arnold Höllriegel; sobrenome hilário que traduzido ao português significa “tranca do inferno”. Curiosidade à parte: Bermann foi o primeiro tradutor alemão das obras de Eça de Queiroz. 

 Contra o tédio a bordo, baile à fantasia e a errância de Orellana...

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