03 julho 2012

Frederico Füllgraf - Sibylle Berg, a corrosiva colunista de Der Spiegel



Spiegel Online - http://www.spiegel.de/ - é provavelmente a versão digital de maior sucesso da imprensa escrita alemã, lida por jornalistas, brokers das bolsas e também por incansáveis combatentes ao odiado capitalismo, como Margot Honnecker, a quase nonagenária viúva e ex-Primeira Dama da RDA, outrora anfitriã de perseguidos pela ditadura Pinochet, hoje ironicamente exilada no Chile de Sebastián Piñera.

Site a toda hora do dia atualizado com acribia, e uma das plataformas da mais feroz oposição às desandanças da primeira-ministra, Angela Merkel, de segunda a domingo, em S.P.O.N, a Spiegel Online também disponibiliza as colunas de seis autores, das quais se destaca a de Jacob Augstein - filho adotivo e um dos herdeiros de Rudolf Augstein, fundador do Grupo Der Spiegel, e dono do semanário Der Freitag e da editora Rogner & Bernard, de Berlim.

Im Zweifel, links [“em caso de dúvida, pela esquerda”], a coluna de Augstein é talvez a única voz efetivamente assumida como de esquerda lato sensu, se teimarmos que no SPD - fundado por Karl Marx, transformado no partido das reformas de 1968 por Willy Brandt, mas cuja liderança atual votou a favor das leis neoliberais do governo Angela Merkel, de flexibilização do trabalho, de resto também empurradas goela abaixo da França pelo PS de François Hollande - sobreviva ainda qualquer nesga da revolta, como o fantasma anunciado por Karl Marx no Manifesto do Partido Comunista.

No mais, S.P.O.N. lê-se como muro das lamentações, com choradeira  de um punhado de autores de barriga cheia, pertencentes a uma turma  de carpideiras alemãs que eu chamaria de “me ajude, não sei o que sou!”, e que parecem reencarnar o "Homem sem Qualidades", de Robert Musil: têm vergonha de se sentirem alemães, mobilizam reações paranóicas aos criticos de Israel (caso recente do Nobel de Literatura Günter Grass), são inseguros à direita e à esquerda, mas patrulham colegas e intelectuais, país afora, sempre em busca de alguma “pista” ou estigma do que não se encaixe em sua camisa de força, pobre e imbecil, do “politicamente correto” (em caso de dúvida, islamofóbicos).

E eis que então irrompe em cena, às sextas-feiras, a coluna de Sibylle Berg -http://www.spiegel.de/thema/spon_berg/-, um pé-de-vento impregnado de frescor, vitalidade e ironia corrosiva, sobre tema livre, mas obrigatoriamente derivado do cotidiano do ser humano, seja às margens do lago suíço, onde reside Sibylle, ou da Zona Leste de São Paulo.

Em “Pergunte à Dona Sibylle”, a escritora e dramaturga alemã - nascida em 1962 em Weimar, na ex-RDA, emigrada para a Alemanha Ocidental em 1984, de onde mudou-se para a Suíça - destila seu sarcasmo, por vezes confundido com implacável cinismo. Cinismo, contudo, é atitude prima de uma bronca irreconciliável do indivíduo com o mundo, sentimento de impotência compensado pela arrogância, mas é tudo o que Berg não preconiza, como se depreende de sua coluna mais recente, que lhe ofereci traduzir neste ultimo final de semana.

Autora de intensa produção ficcional, toda inédita em Português - como Ein paar Leute suchen das Glück und lachen sich tot (Algumas pessoas buscam a felicidade e morrem de dar risada, 1997), Sex II (1998) Amerika (1999), Gold. (2000) Das Unerfreuliche zuerst. Herrengeschichten (Primeiro, as más notícias. Estorias de senhores, 2001), Ende gut (Final feliz, 2004), Habe ich dir eigentlich schon erzählt ... – Ein Märchen für alle (A propósito: já te falei? Um conto para todos, 2006), Die Fahrt (A viagem, 2007), Der Mann schläft (O homem dorme, 2009) e Vielen Dank für das Leben (Muito obrigado pela vida, 2012) – com algumas adaptações ao teatro e prêmios literários amealhados na Alemanha, Sibylle Berg encarna a geração etariamente nem tão jovem (ela tem mais de 40 anos) do que foram a vinte anos mais velha Doris Dörrie e seus livros e filmes dos anos 1980 a 1990, com um olhar desconfiado sobre a realidade alemã, e um feminismo perfumado, com uma mão de mulher, ora escondida, ora oferecida com ternura a esse gênero tão inacessível, chamado homem. Porque apesar das perdas, a dois vive-se melhor, é o que sibila seu romance, “ O homem dorme”.

O que reverbera na crônica que traduzi, “A partir de agora governa a Sra. Berg”, poderia ser resumido como “notícias do front” – o front capitalista (este sim, cínico!) da quebradeira dos bancos, da insolvência dos governos, dos cortes orçamentários, do desemprego e do desespero social. Um caleidoscópio que Berg tenta inverter, chacoalhando o visor até os estilhaços do cotidiano obsceno se adaptarem a um cenário depurado dos agentes predadores e despojado de crenças tidas como religiosas – “não precisamos de crescimento, precisamos de tranquilidade”.

Com vocês, Sibylle Berg.

S.P.O.N. – Pergunte à Dona Sibila A partir de agora, governa a Sra. Berg
Coluna de Sibylle Berg – DER SPIEGEL ONLINE
Trad. Frederico Füllgraf

Uma nova ordem tem que ser imposta ao mundo, imediatamente. Eis algumas medidas para driblar o egoísmo e a imbecilidade do Homo Sapiens. Por exemplo: fechar as bolsas, estatizar os bancos, perdoar as dívidas. Acha isso ingênuo? Então reflita sobre alguma coisa melhor.

Que os seres humanos são umas coisinhas egoístas, glutonas, que, quando tocadas por alguma iluminação, não dispõe sequer da virtude de mobilizar generosidade e compreensão para com seus semelhantes, isso é do conhecimento público. O que surpreenderá a maioria dos meus seguidores nesta página será saber que fui incumbida da missão de reordenar o mundo. Missão do mais alto nível. Os do andar de cima – Bilderberg, o Clube de Roma, as „loggias“, etc. – chegaram a uma encruzilhada e não sabem quê rumo tomar.

Com muita inquietação, contemplam a desagregação do mundo, tal qual o conhecíamos no Ocidente. Aquele mundinho com as quatro estações do ano, apartamentos aquecidos contra o frio e financiamento da casa própria, está virando alguma coisa que ninguém mais consegue controlar. O jogo se tornou confuso: há por um lado os bilionários obscenos, que sequer, como nos velhos tempos, geram empregos para continuar a explorar as pessoas. Por outro, há alterações climáticas, a extinção de espécies e as guerras religiosas.
A regressão dos indivíduos ao comportamento agressivo, devido à finitude dos recursos naturais, a superpopulação, o barulho, a contaminação dos rios, e à água, que vai se esvaindo... – ora, nem me fale, estou apenas fazendo a minha parte!

A nova regulamentação que me ocorre terá vigência a partir da próxima semana, até lá tenho alguns detalhes para ajustar. Graças ao meu juízo, amplo e abrangente, coloquei no papel algumas mudanças fundamentais sobre o gerenciamento do mundo. É como se diz, mas sabendo que hoje em dia não se usa mais papel algum.

Somos um punhado de pequenos idiotas egoístas

Todas as dívidas, pessoais ou públicas, serão zeradas, será impresso dinheiro novo; com lastro em ouro e prata, como nos velhos bons tempos. E o tal Euro também deixará de existir. As bolsas de valores serão fechadas imediatamente. As ações serão desvalorizadas. Todos os governos serão depostos. Com minha anuência, todos os países formarão novas administrações integradas exclusivamente por peritos: cientistas, artistas, médicos. As funções serão distribuídas entre mulheres, homens, incapacitados, homossexuais, minorias étnicas e religiosas – uma coisa justa.

Não haverá cota especial para mulheres, porque não mais haverá empresas com cotações nas bolsas. 

Cessará toda e qualquer pretensão estrangeira sobre as matérias-primas de um país. Todos os países gozarão de hegemonia sobre seus próprios recursos, e apenas a eles pertencerão suas empresas, terras e edificações. Bancos, empresas produtoras de alimentos, o sistema de transporte, a saúde e as escolas serão estatizadas. Executivos qualificados regozijar-se-ão de seus superempregos na administração pública e por terem escapado ao desemprego, devido ao fechamento das bolsas. Não haverá salário mínimo. O crescimento será proibido- não precisamos de crescimento, mas de tranquilidade.

É do livre arbítrio de cada um, escolher sua religião, por ser coisa do foro íntimo. A igualdade prevalecerá para todas as pessoas. Cada qual poderá casar-se com quem quiser, e filhos poderão ser gerados após o exame, por uma junta médica de amáveis neurologistas, do estado mental dos respectivos interessados na geração. Depois de autorizados, estes filhos poderão ser adotados ou admitidos para criação.

As leis de proteção do inquilinato serão duras, implacáveis, e agressões ao meio ambiente serão penalizadas com a expropriação da respectiva empresa. Todas as drogas serão legalizadas, como também toda sorte de auxílio à morte. Aborto, fumar ou não fumar, praticar, ou não, esportes – pois que cada um faça o que achar melhor.

Eu e as demais pessoas não passamos de míseros idiotas egoístas, mas seria triste abrir mão de nossa espécie, despedir-se do mundo. Este mundo que nos aninha em seus poucos crepúsculos cálidos, quando contemplamos, sentados sob o poente, como o sol teima em romper essas brumas à la Blade Runner, e ainda sentimos cheiro de grama. É provável que minha declaração de princípios suscite muitas objeções, e os Srs. tenham ideias muito melhores – mas digam lá, quais?

Nenhum comentário: