Spiegel Online - http://www.spiegel.de/ - é
provavelmente a versão digital de maior sucesso da imprensa escrita alemã, lida
por jornalistas, brokers das bolsas e também por incansáveis combatentes ao
odiado capitalismo, como Margot Honnecker, a quase nonagenária viúva e
ex-Primeira Dama da RDA, outrora anfitriã de perseguidos pela ditadura Pinochet, hoje ironicamente exilada no Chile de Sebastián Piñera.
Site a toda hora do dia atualizado
com acribia, e uma das plataformas da mais feroz oposição às desandanças da
primeira-ministra, Angela Merkel, de segunda a domingo, em S.P.O.N, a Spiegel Online também disponibiliza as colunas de seis
autores, das quais se destaca a de Jacob Augstein - filho adotivo e um dos herdeiros
de Rudolf Augstein, fundador do Grupo Der Spiegel, e dono do semanário Der
Freitag e da editora Rogner & Bernard, de Berlim.
Im Zweifel, links [“em caso de
dúvida, pela esquerda”], a coluna de Augstein é talvez a única voz efetivamente
assumida como de esquerda lato sensu, se teimarmos que no SPD - fundado por Karl
Marx, transformado no partido das reformas de 1968 por Willy Brandt, mas cuja
liderança atual votou a favor das leis neoliberais do governo Angela Merkel, de flexibilização do
trabalho, de resto também empurradas goela abaixo da
França pelo PS de François Hollande - sobreviva ainda qualquer nesga da
revolta, como o fantasma anunciado por Karl Marx no Manifesto do Partido Comunista.
No mais, S.P.O.N. lê-se como muro
das lamentações, com choradeira de um punhado de autores de barriga cheia, pertencentes a uma turma de carpideiras alemãs que eu chamaria de “me ajude, não sei o que sou!”, e que parecem reencarnar o "Homem sem Qualidades", de Robert Musil: têm vergonha de se sentirem alemães, mobilizam reações
paranóicas aos criticos de Israel (caso recente do Nobel de Literatura Günter
Grass), são inseguros à direita e à esquerda, mas patrulham colegas e intelectuais,
país afora, sempre em busca de alguma “pista” ou estigma do que não se encaixe
em sua camisa de força, pobre e imbecil, do “politicamente correto” (em caso de
dúvida, islamofóbicos).
E eis que então irrompe em cena,
às sextas-feiras, a coluna de Sibylle Berg -http://www.spiegel.de/thema/spon_berg/-, um pé-de-vento impregnado de
frescor, vitalidade e ironia corrosiva, sobre tema livre, mas obrigatoriamente
derivado do cotidiano do ser humano, seja às margens do lago suíço, onde reside
Sibylle, ou da Zona Leste de São Paulo.
Em “Pergunte à Dona Sibylle”, a
escritora e dramaturga alemã - nascida em 1962 em Weimar, na ex-RDA, emigrada
para a Alemanha Ocidental em 1984, de onde mudou-se para a Suíça - destila seu
sarcasmo, por vezes confundido com implacável cinismo. Cinismo, contudo, é
atitude prima de uma bronca irreconciliável do indivíduo com o mundo, sentimento de impotência
compensado pela arrogância, mas é tudo o que Berg não preconiza, como se
depreende de sua coluna mais recente, que lhe ofereci traduzir neste ultimo
final de semana.
Autora de intensa
produção ficcional, toda inédita em Português - como Ein paar Leute suchen
das Glück und lachen sich tot (Algumas
pessoas buscam a felicidade e morrem de dar risada, 1997), Sex
II (1998) Amerika (1999), Gold. (2000) Das
Unerfreuliche zuerst. Herrengeschichten (Primeiro, as más notícias. Estorias
de senhores, 2001), Ende gut (Final feliz, 2004), Habe ich dir
eigentlich schon erzählt ... – Ein Märchen für alle (A propósito: já te
falei? Um conto para todos, 2006), Die Fahrt (A
viagem, 2007), Der Mann schläft (O homem dorme, 2009) e Vielen Dank
für das Leben (Muito obrigado pela vida, 2012) – com algumas adaptações ao
teatro e prêmios literários amealhados na Alemanha, Sibylle Berg encarna a
geração etariamente nem tão jovem (ela tem mais de 40 anos) do que foram a
vinte anos mais velha Doris Dörrie e seus livros e filmes dos anos 1980 a 1990,
com um olhar desconfiado sobre a realidade alemã, e um feminismo perfumado, com
uma mão de mulher, ora escondida, ora oferecida com ternura a esse gênero tão
inacessível, chamado homem. Porque apesar das perdas, a dois vive-se melhor, é
o que sibila seu romance, “ O homem dorme”.
O que reverbera na
crônica que traduzi, “A partir de agora governa a Sra. Berg”, poderia ser
resumido como “notícias do front” – o front capitalista (este sim, cínico!) da
quebradeira dos bancos, da insolvência dos governos, dos cortes orçamentários,
do desemprego e do desespero social. Um caleidoscópio que Berg tenta inverter,
chacoalhando o visor até os estilhaços do cotidiano obsceno se adaptarem a um
cenário depurado dos agentes predadores e despojado de crenças tidas como
religiosas – “não precisamos de crescimento, precisamos de tranquilidade”.
Com vocês, Sibylle
Berg.
S.P.O.N.
– Pergunte à Dona Sibila A partir de agora, governa a Sra. Berg
Uma nova ordem tem que ser
imposta ao mundo, imediatamente. Eis algumas medidas para driblar o egoísmo e a
imbecilidade do Homo Sapiens. Por exemplo: fechar as bolsas, estatizar os
bancos, perdoar as dívidas. Acha isso ingênuo? Então reflita sobre alguma coisa
melhor.
Que os seres humanos são umas coisinhas egoístas, glutonas, que, quando
tocadas por alguma iluminação, não dispõe sequer da virtude de mobilizar
generosidade e compreensão para com seus semelhantes, isso é do conhecimento
público. O que surpreenderá a maioria dos meus seguidores nesta página será
saber que fui incumbida da missão de reordenar o mundo. Missão do mais alto
nível. Os do andar de cima – Bilderberg, o Clube de Roma, as „loggias“, etc. – chegaram
a uma encruzilhada e não sabem quê rumo tomar.
Com muita inquietação, contemplam a desagregação do mundo, tal qual o
conhecíamos no Ocidente. Aquele mundinho com as quatro estações do ano, apartamentos
aquecidos contra o frio e financiamento da casa própria, está virando alguma
coisa que ninguém mais consegue controlar. O jogo se tornou confuso: há por um
lado os bilionários obscenos, que sequer, como nos velhos tempos, geram empregos
para continuar a explorar as pessoas. Por outro, há alterações climáticas, a
extinção de espécies e as guerras religiosas.
A regressão dos indivíduos ao comportamento agressivo, devido à finitude
dos recursos naturais, a superpopulação, o barulho, a contaminação dos rios, e
à água, que vai se esvaindo... – ora, nem me fale, estou apenas fazendo a minha
parte!
A nova regulamentação que me ocorre terá vigência a partir da próxima
semana, até lá tenho alguns detalhes para ajustar. Graças ao meu juízo, amplo e
abrangente, coloquei no papel algumas
mudanças fundamentais sobre o gerenciamento do mundo. É como se diz, mas sabendo
que hoje em dia não se usa mais papel algum.
Somos um punhado de pequenos
idiotas egoístas
Todas as dívidas, pessoais ou públicas,
serão zeradas, será impresso dinheiro novo; com lastro em ouro e prata, como
nos velhos bons tempos. E o tal Euro também deixará de existir. As bolsas de
valores serão fechadas imediatamente. As ações serão desvalorizadas. Todos os
governos serão depostos. Com minha anuência, todos os países formarão novas
administrações integradas exclusivamente por peritos: cientistas, artistas,
médicos. As funções serão distribuídas entre mulheres, homens, incapacitados,
homossexuais, minorias étnicas e religiosas – uma coisa justa.
Não
haverá cota especial para mulheres, porque não mais haverá empresas com
cotações nas bolsas.
Cessará toda e qualquer pretensão estrangeira sobre as
matérias-primas de um país. Todos os países gozarão de hegemonia sobre seus
próprios recursos, e apenas a eles pertencerão suas empresas, terras e
edificações. Bancos, empresas produtoras de alimentos, o sistema de transporte,
a saúde e as escolas serão estatizadas. Executivos qualificados regozijar-se-ão
de seus superempregos na administração pública e por terem escapado ao
desemprego, devido ao fechamento das bolsas. Não haverá salário mínimo. O
crescimento será proibido- não precisamos de crescimento, mas de tranquilidade.
É
do livre arbítrio de cada um, escolher sua religião, por ser coisa do foro
íntimo. A igualdade prevalecerá para todas as pessoas. Cada qual poderá
casar-se com quem quiser, e filhos poderão ser gerados após o exame, por uma
junta médica de amáveis neurologistas, do estado mental dos respectivos
interessados na geração. Depois de autorizados, estes filhos poderão ser
adotados ou admitidos para criação.
As leis de proteção do inquilinato serão
duras, implacáveis, e agressões ao meio ambiente serão penalizadas com a
expropriação da respectiva empresa. Todas as drogas serão legalizadas, como
também toda sorte de auxílio à morte. Aborto, fumar ou não fumar, praticar, ou
não, esportes – pois que cada um faça o que achar melhor.
Eu e as demais pessoas não passamos de míseros
idiotas egoístas, mas seria triste abrir mão de nossa espécie, despedir-se do
mundo. Este mundo que nos aninha em seus poucos crepúsculos cálidos, quando
contemplamos, sentados sob o poente, como o sol teima em romper essas brumas à
la Blade Runner, e ainda sentimos cheiro de grama. É provável que minha
declaração de princípios suscite muitas objeções, e os Srs. tenham ideias muito
melhores – mas digam lá, quais?
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