Fotos: Nego Miranda, Rui Carneiro, Lucília Guimarães, divulgação
"O que não me contam eu escuto atrás das portas."
Dalton Trevisan
Curitiba, que não tem pinheiros, esta Curitiba eu viajo. Curitiba, onde o céu azul não é azul, Curitiba que viajo. Não a Curitiba para inglês ver, Curitiba me viaja. Curitiba cedo chegam as carrocinhas com as polacas de lenço colorido na cabeça - galiii-nha-óóó-vos - não é a protofonia do Guarani? Um aluno de avental discursa para a estátua do Tiradentes.
Viajo
Curitiba dos conquistadores de coco e bengalinha na esquina da Escola Normal;
do Jegue, que é o maior pidão e nada não ganha (a mãe aflita suplica pelo
jornal: Não dê dinheiro ao Gigi); com as filas de ônibus, às seis da tarde, ao
crepúsculo você e eu somos dois rufiões de François Villon. Curitiba, não a da
Academia Paranaense de Letras, com seus trezentos milhões de imortais, mas a
dos bailes no 14, que é a Sociedade Operária Internacional Beneficente O 14 De
Janeiro; das meninas de subúrbio pálidas, pálidas que envelhecem de pé no
balcão, mais gostariam de chupar bala Zequinha e bater palmas ao palhaço
Chic-Chic; dos Chás de Engenharia, onde as donzelas aprendem de tudo, menos a
tomar chá; das normalistas de gravatinha que nos verdes mares bravios são as
naus Santa Maria, Pinta e Nina, viajo que me viaja. Curitiba das ruas de barro
com mil e uma janeleiras e seus gatinhos brancos de fita encarnada no pescoço;
da zona da Estação em que à noite um povo ergue a pedra do túmulo, bebe amor no
prostíbulo e se envenena com dor-de-cotovelo; a Curitiba dos cafetões - com seu
rei Candinho - e da sociedade secreta dos Tulipas Negras eu viajo. Não a do
Museu Paranaense com o esqueleto do Pithecanthropus Erectus, mas do Templo das
Musas, com os versos dourados de Pitágoras, desde o Sócrates II até os Sócrates
III, IV e V; do expresso de Xangai que apita na estação, último trenzinho da
Revolução de 30, Curitiba que me viaja.
Dos bailes
familiares de várzea, o mestre-sala interrompe a marchinha se você dança
aconchegado; do pavilhão Carlos Gomes onde será HOJE! só HOJE! apresentado o
maior drama de todos os tempos - A Ré Misteriosa; dos varredores na madrugada
com longas vassouras de pó que nem os vira-latas da lua.
Curitiba em
passinho floreado de tango que gira nos braços do grande Ney Traple e das
pensões familiares de estudantes, ah! que se incendeie o resto de Curitiba
porque uma pensão é maior que a República de Platão, eu viajo.
Curitiba da
briosa bandinha do Tiro Rio Branco que desfila aos domingos na Rua 15, de volta
da Guerra do Paraguai, esta Curitiba ao som da valsinha Sobre as Ondas do Iapó,
do maestro Mossurunga, eu viajo.
Não viajo
todas as Curitibas, a de Emiliano, onde o pinheiro é uma taça de luz; de
Alberto de Oliveira do céu azulíssimo; a de Romário Martins em que o índio
caraíba puro bate a matraca, barquilhas duas por um tostão; essa Curitiba não é
a que viajo. Eu sou da outra, do relógio na Praça Osório que marca implacável
seis horas em ponto; dos sinos da igreja dos Polacos, lá vem o crepúsculo nas
asas de um morcego; do bebedouro na pracinha da Ordem, onde os cavalos de sonho
dos piás vão beber água.
Viajo
Curitiba das conferências positivistas, eles são onze em Curitiba há treze no
mundo inteiro; do tocador de realejo que não roda a manivela desde que o
macaquinho morreu; dos bravos soldados do fogo que passam chispando no carro
vermelho atrás do incêndio que ninguém não viu, esta Curitiba e a do
cachorro-quente com chope duplo no Buraco do Tatu eu viajo.
Curitiba,
aquela do Burro Brabo, um cidadão misterioso morreu nos braços da Rosicler,
quem foi? quem não foi? foi o reizinho do Sião; da Ponte Preta da estação, a
única ponte da cidade, sem rio por baixo, esta Curitiba viajo.
Curitiba
sem pinheiro ou céu azul pelo que vosmecê é - província, cárcere, lar - esta
Curitiba, e não a outra para inglês ver, com amor eu viajo, viajo, viajo.
In: "Mistérios de Curitiba", Record, 1979.
Um comentário:
Olá Frederico. Uma pequena correção. A última foto é de minha autoria (Washington Cesar Takeuchi do vlog www.circulandoporcuritiba.com.br). Peço que ajuste os créditos.
Obrigado.
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