20 maio 2021

Frederico Füllgraf - Peregrinações pelas ruínas de W.G. Sebald


Ensaio


Ao invés de sair caminhando, como de costume, para um de seus passeios (muitas vezes tornados demoradas peregrinações) pelas paisagens ermas e entroviscadas da Anglia Oriental, junto ao golfo de Norfolk, neste 14 de dezembro, Max subiu ao seu carro para buscar sua filha em Norwich e não mais retornou: disseram tê-lo visto mergulhar no trânsito em sentido contrário... Sofrera um ataque cardíaco ao volante, bateu de frente, desapareceu entre as ferragens, morte instantânea.  Hospitalizada em estado grave, sua filha sobreviveu. Max morreu justamente quando tinha alcançado o topo. Ia receber o importante prêmio literário National Book Critics Circle por Austerlitz, seu último livro.

A morte de Max, apelido para os mais íntimos, do escritor alemão W.G. (de Winfried Georg Maximilian) Sebald, naquele dezembro de 2001, enredou no luto os entes mais queridos mas também os leitores, do mundo todo. Dos apenas iniciados em sua densa e impenetrável obra, até a crítica, todos  entenderam-se órfãos. Ao ler a notícia do acidente de Sebald, Rui Tavares, crítico português, sentiu "que o mundo físico se comprimira e afunilara momentaneamente, talvez como sinal da aridez que sempre se acrescenta quando desaparece alguém que, como Sebald, consegue pensar e enriquecer o mundo".

"Será possível, ainda, a grandeza literária? Ante a decadência implacável da ambição literária, a convergente ascensão de desengano, a verborreia e a crueldade insensível como assuntos normativos da ficção, o que seria na atualidade um projeto literário centrado na nobreza? A obra de W. G. Sebald é uma das poucas respostas disponíveis aos leitores do idioma inglês", desabafou Susan Sontag, antes de despedir-se, ela também, e fazer-lhe companhia no silente além.

Nascido em 18 de maio de 1944 em Wertach, distrito do Allgäu, região alpina alemã, Sebald levou a vida viandante e perscrutativa do personagem central, o alter-ego que conduz a narrativa em todos os seus livros. Filho de um ex-combatente alemão nas fileiras da Wehrmacht de Hitler, deixa a terra natal para estudar Literatura em Freiburg/Breisgau, curso que abandona após o segundo ano, transferindo-se para a Suíça francesa, onde se habilita com uma licenciatura em 1966. Da Suíça migra para Manchester, onde atua como docente até 1969, quando retorna à Suíça. Depois de um ano como professor em escola secundária em St. Gallen, volta à Inglaterra, para tornar-se professor-assistente de literatura comparada na Universidade de East Anglia, em Norwich; desde 1984 como professor - titular.

Autor de refinada prosa ensaística que dialoga virtuosamente com a literatura universal (O mito da destruição na obra de Döblin, 1980; Descrição do acidente – sobre a literatura austríaca de Stifter a Handke, 1985; Pátria Mal-Assombrada, 1991; Hóspedes em uma casa de campo – perfis autorais de Gottfried Keller, Johann Peter Hebel, Robert Walser ee.oo, 1998; Guerra aérea e Literatura, 1999 – todos inéditos em Português), é no Romance, contudo, onde irrompe seu inerrante e melancólico olhar sobre a História e o desgarramento humano na geografia dos sonhos e dos acidentes de percurso individuais.

Sebald começa a escrever tarde, aos 47 anos. Em menos de dez anos, porém, consegue construir uma obra tão consistente e de esmeradas traduções para o Inglês (inspecionadas pelo autor), que seus livros repercutem primeiramente no universo cultural anglófono antes de seu reconhecimento na própria Alemanha. A revista The New Yorker o aclama como o mais importante escritor europeu da virada do milênio e a crítica norte-americana arrisca propô-lo ao Nobel de Literatura.

Durante a leitura de seus textos, duas inevitáveis associações impõem-se: o parentesco espiritual, fatalista, de seu olhar sobre a História, com a fatalidade histórica codificada na metáfora do Angelus Novus de Walter Benjamin – História como tragédia, amontoado de ruínas, que insiste em ser decifrado pelo contemplador, e uma Humanidade incorrigível que insiste em ser devorada. À obsessão pelo esquecimento, Sebald opõe o imperativo da memória; lembrança como didática da tomada de consciência. História como corpo enterrado vivo, sedimentado em camadas de esquecimento, não-resolvido. E História como tempo derretido, simbolizado pelos relógios moles de Dali, lava que abre feridas na paisagem, que não cicatriza; a dor que persevera.

Primeiro livro de Sebald, Nach der Natur (Do natural, 1988) é um tríptico sobre o amor e o temor à Natureza, na forma de "poema elementar", como o legendou o autor. Pérola de linguagem, nela Sebald discorre sobre a vida de três homens que experimentaram dolorosamente o conflito com a Natureza.


No primeiro painel desfila Matthias Grünewald, pintor de santos, crucificações, eclipses e catástrofes, que viveu os horrores de um tempo em que já se perseguia aos judeus e nas guerras se arrancava os olhos aos vencidos. O segundo traça o perfil do botânico W. Steller, que se une à malfadada expedição russa de Vitus Behring em busca do Alaska. No último, Sebald empreende uma viagem à Pinacoteca de Munique, com o único objetivo da contemplação  do quadro "A batalha de Alexandre", de Altdorfer. A intenção de Sebald é induzir uma reflexão sobre a condição humana e a História – fábula que nos encara através do olhar desconcertante de alquimistas convertidos ao cartesianismo e de suas criaturas quiméricas em corpos de peixes-coelhos, unicórnios e ornitorrincos.

Mas é comovido que o alter-ego narrador se aproxima de seus anti-heróis, desgarrados, todos, e desmemoriados como Austerlitz; a maioria constitui-se de judeus que não se sabem... Em Schwindel Gefühle (Vertigem, 1990, inédito em Português), o narrador na primeira pessoa deambula pela Áustria, Itália e pelo Sul da Alemanha "na tentativa de preencher o vazio que de mim se apodera, toda vez que chego ao final de uma grande jornada de trabalho". Perde e recupera o juízo,  reflete sobre o amor, garimpa vestígios da passagem de Kafka pela Itália e tenta resgatar e dar sentido à sua própria infância no seio de uma família pós-nazi, quando o manto do silêncio dos anos 50 cobriu a memória da negra noite da guerra e do holocausto – matéria-prima do ensaio Die Unfähigkeit zum Trauern (A inaptidão para o luto) do psicanalista Alexander Mitscherlich; obra epistolar da Escola de Frankfurt sobre a sublimação coletiva do 3º. Reich.

No intrigante Os Anéis de Saturno (Record, 2004), o narrador caminha pelo litoral inglês, entre Norfolk e Suffolk, numa pausada meditação intercalada por breves ensaios tão dessemelhantes quanto impagáveis sobre Rembrandt, o caráter das guerras, o ciclo de vida dos arenques, a melancolia e a destruição das grandes florestas do mundo – numa tradução rasa de Lya Luft, desprovida de enlevo e uso criativo da palavra, que o autor muitas vezes vai buscar em densos e melodiosos arcaísmos germânicos, e que têm sua correspondência no riquíssimo léxico luso-brasileiro de Camões por Machado a Guimarães Rosa; incompreensivelmente desprezado pela autora e tradutora gaúcha.

Em Os Emigrantes (Record, 2002), Sebald sai no encalço de parentes emigrados no pós-guerra dos Alpes para os EUA, de um professor primário para a Suíça e de um artista plástico para Manchester. É com desmedida compaixão, que o narrador tenta reanudar a saga negativa de sua família, alfinetando com sarcasmo, que a toda genealogia adere a fantasia e o mito dos seus contadores. Sebald garimpa na subjetividade de seus personagens e nas razões da História, o ímpeto irrefreável da imigração, da partida para territórios desconhecidos – cujo pano de fundo é aquela "pátria mal-assombrada" descrita em seu ensaio, e mãe de todo os medos, que fez do próprio autor um viandante, saltador de cancelas. São exílios do corpo, pois a alma, mortificada, carrega seu sofrimento para além-fronteiras, em evocações magistrais e copiosas que transportam e arrebatam. E sobre os exilados soe pairar o espectro da perda irreparável; das posses materiais, do juízo e da vida. Para alguns a colônia psiquiátrica é estação terminal, para outros, o suicídio.

Ao mesmo tempo noir e luminoso é o conto que encerra o volume d´Os Emigrantes - a estória do artista plástico Max Aurach, que desembarca em Londres em 1908, para estudar arte, passando a morar na mesma casa antes ocupada pelo filósofo austríaco Wittgenstein, e que mais tarde se refugia, anônimo, em Manchester. Magistral é o imbricamento de dois grandes temas, construído pela imaginação de Sebald: para falar da "solução final" de Hitler, ficciona um diário escrito pela mãe do já famoso pintor e, simultaneamente, infiltra a história de Manchester que,  de grande centro do comércio mundial, agora jaz em escombros; História como escavadeira e moto-niveladora, galera ciclópica afundada pelo tsunami das tecnologias e do desperdício.

Enquanto nossas narinas inspiram o odor fétido e aziago das águas do decadente porto, que penetra pelas frestas das docas onde o pintor instalou seu ateliê (toda boa literatura é olfativa!), Sebald, cauteloso, vai ao encontro de Aurach como uma zoom de aproximação, até trazê-lo ao primeiro plano e apresentar-se. Enquanto conversam, Aurach trava dilacerante luta com sua obra, aplicando formas e cores, logo raspadas rudemente com a espátula, ao ponto de ferir a tela que lhe serve de sustentação. O olhar do narrador recai sobre o monte de tinta raspada que vai se acumulando, da manhã até o entardecer, ao pé do cavalete – metáfora de Sísifo, o herói trágico do mito sobre a eterna repetição do esforço vão, e alegoria da busca obsessiva de Aurach pela "imagem ideal", descartada, de sua própria identidade ainda não aceita; a de um judeu, mas sobretudo alemão, cuja memória continua grudada à terra natal.

O mundo sem Max ficou mais pobre e desolado, mas W.G. Sebald, o alter-ego, "ou ainda um homem sem nome, um molde de gesso vazio, mas pensante, um fantasma solitário e sensitivo, que caminha quase sem rumo e que é o eixo que une o leitor ao mundo" (R. Tavares), sobrevive nas nossas próprias peregrinações às praias dos nossos próprios naufrágios, às  ruínas das nossas genealogias, aos territórios da ancestralidade onírica, onde mora a melancolia.

A obra

1) Nach der Natur. Ein Elementargedicht (Sobre a Natureza, um poema elementar, 1988, inédito em Português);
2) Schwindel.Gefühle (Vertigens,1990, inédito);
3) Die Ausgewanderten (Os Emigrantes, 1993, Record, 2003)
4) Die Ringe des Saturn (Os Anéis de Saturno, 1995, Record, 2004)
5) Austerlitz, 2001 (inédito)
6) Unerzählt 33 Texte, 2003, inédito)
7) Campo Santo, Prosa, Essays, 2003, inédito).
Premiações
- Prêmio de Literatura de Berlim, 1994,
- Medalha Johannes Bobrowski, 1997,
- Prêmio Möricke da cidade de Feldbach, 1997,
- Prêmio Joseph Breitbach, 2000,
- Prêmio Heinrich Heine, 2000 (Gov. Federal),
- National Book Critics Circle Award, 2002
- e Prêmio de Literatur da Prefeitura de Bremen, 2002.