Crônica
Era 5 de setembro de
1993, ensolarado, como soem ser quase sempre os dias na Micronésia. Teste
número 124: a terra treme no Taiti. No
subsolo, o ventre do vulcão se contorce, acima dele o mar se agita, deita espuma branca
pela boca. Jovens ensandecidos lançam coquetéis-molotov e bradam:
"Franceses, go home !". Atravesso a madrugada navegando por controle
remoto entre CNN, DW-TV, TV5, TV-E... à procura de imagens, de novidades de
Mururoa. Dá-me vontade de ligar para Charlie, em Papeete, mas a agenda com seu número de telefone está em alguma
caixa da mudança, ainda não desembalada.
Conheci Charlie Ching, um taitiano de
descendência chinesa, em 1987, em Nova York. Ele tinha acabado de sair da
prisão em Papeete, por motivos semelhantes aos de Gauguin, em 1901:
"conspiração contra a ordem colonial" - a do chicote e da escopeta de
1890, e a da bomba atômica do final do séc. 20.
O que segue são apenas devaneios, imagino-os como nota de rodapé subversiva dos
manuais de História da Arte, ou talvez da arte de contar a História de reverso: a crescente identificação do homem Gauguin com o modo de vida natural dos nativos, sua solidariedade com os direitos naturais dos taitianos, pelos quais, quase cem anos depois, Charlie Ching continua a lutar. Durante seus últimos dois anos de vida Gauguin encoraja-os a boicotarem a Igreja (a imposição da moral branca, colonialista) e a administração colonial francesa, que começara exigir o pagamento de impostos. Em 1901, Gauguin choca-se frontalmente com as autoridades francesas, é preso e condenado a pagar uma pesada multa.
O que segue são apenas devaneios, imagino-os como nota de rodapé subversiva dos
manuais de História da Arte, ou talvez da arte de contar a História de reverso: a crescente identificação do homem Gauguin com o modo de vida natural dos nativos, sua solidariedade com os direitos naturais dos taitianos, pelos quais, quase cem anos depois, Charlie Ching continua a lutar. Durante seus últimos dois anos de vida Gauguin encoraja-os a boicotarem a Igreja (a imposição da moral branca, colonialista) e a administração colonial francesa, que começara exigir o pagamento de impostos. Em 1901, Gauguin choca-se frontalmente com as autoridades francesas, é preso e condenado a pagar uma pesada multa.
Trama paralela: Em
1987, Charlie Ching atravessa o Pacífico e os EUA, de costa a costa, para dar
seu testemunho sobre trinta anos de testes nucleares franceses em Mururoa, na 1a. Conferencia Global das Vítimas da Radiação, realizada nos salões do nobre
e decadente Hotel Roosevelt, do Big Apple. O depoimento de Charlie com mais de 45 minutos de duração, inaugura as
filmagens de "Burning Sand" (Areia de Fogo) - uma co-produção entre
Fundação do Cinema Brasileiro, Filmoffice Hamburg e minha produtora. O filme, interrompido e reescrito várias vezes e por vários anos, não tem
prazo para estréia.
A Mururoa de Charlie é como a Pounaouia de Gauguin: uma praia
idílica, onde estão sentadas suas "Duas Mulheres ... ", pintadas em 1891. Não me canso de olhar para elas...
- Parto
com dois anos a mais, mas vinte anos mais jovem... mais bárbaro... Sim, os
selvagens ensinaram muitas coisas ao velho civilizado, muita coisa sobre a
ciência de viver e a arte de ser feliz ! - escreve Gauguin a um marchand de Paris, ao deixar o Taiti pela primeira vez.
Mas no cais do porto de Papete, Tehura, uma bela
vahiné (nativa) e amante abandonada por Gauguin, chora noites sem parar.
Na praia, as "Duas Mulheres"...
A da direita, mais à frente, cruza as pernas na posição de Lotus. Aperta um lenço de seda cor-de-rosa entre as mãos cruzadas, como se fosse o único elo que a mantém amarrada ao mundo material; o olhar ligeiramente desviado para o buraco negro no infinito. Ou para a perda infinita? A cabeça da mulher da esquerda está ligeiramente inclinada, os lábios apertados um contra o outro. Os olhos, semi-cerrados, fitam a areia; eles parecem medir o tamanho da perda. Adivinho sua pergunta, silenciosa: - O que é que eles trazem, que nos faz sentir tão tristes ? E por que nos sentimos tão vazios, de repente?
Na praia, as "Duas Mulheres"...
A da direita, mais à frente, cruza as pernas na posição de Lotus. Aperta um lenço de seda cor-de-rosa entre as mãos cruzadas, como se fosse o único elo que a mantém amarrada ao mundo material; o olhar ligeiramente desviado para o buraco negro no infinito. Ou para a perda infinita? A cabeça da mulher da esquerda está ligeiramente inclinada, os lábios apertados um contra o outro. Os olhos, semi-cerrados, fitam a areia; eles parecem medir o tamanho da perda. Adivinho sua pergunta, silenciosa: - O que é que eles trazem, que nos faz sentir tão tristes ? E por que nos sentimos tão vazios, de repente?
Mururoa
está chegando ao fim, afirmava Roger
Clark, geólogo da Universidade de Leeds/Inglaterra. Enquanto isso, em Tóquio,
Jacques Custeau fazia coro com Chirac e a´escroquerie nucleaire", passeando "fatos" numa coletiva de imprensa: - O fato é que os
testes subterrâneos não contaminam absolutamente nada !
Fato...
Le grand seigneur perde uma rara oportunidade para ficar calado. Repete a dose de 1992, quando navegou pela Amazônia, onde afirmou ter visto "a floresta intacta", enquanto Rondônia ardia em chamas...
Fato...
Le grand seigneur perde uma rara oportunidade para ficar calado. Repete a dose de 1992, quando navegou pela Amazônia, onde afirmou ter visto "a floresta intacta", enquanto Rondônia ardia em chamas...
C'est la vie: le vieux ecologiste, fatigué de la guerre... - ou já teria mudado de lado?
Aliás,
a França sempre teve um olhar esquizóide para a realidade. Lembro-me bem, era
um sábado ensolarado, em abril de 1986. Estava em turnê pela Alemanha, com outro
filme, quando ocorreu o acidente nuclear em Chernobyl (ironicamente, o título
do meu filme era "Dose Diária Aceitável"...). Freiburg, na margem
oriental do Reno, parecia uma cidade deserta. As pessoas não abandonaram suas
casas devido à perigosa nuvem que despejava
césio, estrôncio e outros elementos radioativos sobre a natureza. As
vacas estavam presas nos estábulos, estava proibido beber leite fresco, e na
fronteira com a França batalhões de guardas, que pareciam ter saltado de um set
futurista, barravam os carros sem falar palavra e scannerizavam pessoas e
animais de corpo inteiro com seus contadores Geiger, dos quais pipocava um
estranho ruído. Seleção darwiniana na era nuclear: "liberar os sadios, os
contaminados para o camburão!" (ordem de um oficial do exército, durante exercício de simulação de acidente na usina nuclear em Angra dos Reis, 1990).
O
"Day After" nos apanhara de
surpresa, muitos anos antes do que tínhamos imaginado. Mas do outro lado
do Reno, em Colmar, a festa continuava, uma estranha festa:
feiras de hortigranjeiros, queijos e vinhos,
a população flanando ao ar livre... Então o prefeito rosnou para uma câmera de TV: -
Radioatividade ?! Onde ? Eu não vi, cést l'hysterie des allemands,
monsieur...
Minha última lembrança de Colmar foi um beco, um acordeão e uma canção, acho que era do Jacques Dutronc, cuja letra dizia assim: "Les temps sont flous, les gens sont fous // Ils sont la comme des toutous de Paris a Tombouctou // Quand il s'agit de faire joujou avec des v-new(?)
Minha última lembrança de Colmar foi um beco, um acordeão e uma canção, acho que era do Jacques Dutronc, cuja letra dizia assim: "Les temps sont flous, les gens sont fous // Ils sont la comme des toutous de Paris a Tombouctou // Quand il s'agit de faire joujou avec des v-new(?)
Segunda trama paralela: os usos ditos pacíficos da energia nuclear... Bielorussia. Estatísticas oficiais admitem pelo menos 200 mil pessoas contaminadas, seis anos após o acidente de Chernobyl.
Agora, nos habituaremos a conviver com um novo quadro mental, o retrato das crianças de Chernobyl com a moldura da pós-modernidade: pele coberta por eczemas, pruridos, cabeças sem cabelos, feridas pelo corpo todo, escondidas, é claro, que ninguém gosta de exibir a lepra, radioativa. E este terror ambulante fez Chirac empreender a fuga, atacando os críticos e adversários de testes nucleares: - Estas reações contra a França são histéricas, a verdade ... é que os testes nucleares não oferecem perigo!...
Agora, nos habituaremos a conviver com um novo quadro mental, o retrato das crianças de Chernobyl com a moldura da pós-modernidade: pele coberta por eczemas, pruridos, cabeças sem cabelos, feridas pelo corpo todo, escondidas, é claro, que ninguém gosta de exibir a lepra, radioativa. E este terror ambulante fez Chirac empreender a fuga, atacando os críticos e adversários de testes nucleares: - Estas reações contra a França são histéricas, a verdade ... é que os testes nucleares não oferecem perigo!...
A verdade...
Charlie
Ching em Nova York, 1987: - Temos indicadores, de que no Taiti há milhares de
pessoas contaminadas pela radioatividade. Papete, setembro de 1995: líder do
movimento separatista confirma a morte de 1.200 taitianos por câncer linfático.
Pounaouia,
1899.
Da mata exuberante que dá para a praia, vêm caminhando duas jovens, formosas, daquelas que habitam o imaginário exótico masculino e que atraíram Marlon Brando para uma ilha vizinha. São de uma beleza selvagem, bárbara. Talvez tenham inspirado Gauguin a pendurar aquela plaqueta no pequeno estúdio da Rue Vergintorix, em Paris, onde expôs, em 1894, suas primeiras cinqüenta telas sobre o Taiti: "Te Faruru" (= Aqui se faz amor!). Mas o rosto delas expressa aquela melancolia de todas as nativas: os olhos desviados ligeiramente para algum lado, fitando um ponto no infinito, os pensamentos "descolados" do presente... Oferecem seus "Seios com flores vermelhas" (tela de 1899) com desprendimento, espécie de última dádiva ao invasor, antes que...
Então Gauguin decide colocar na vitrine seu quadro definitivo, o daquela mulher estendida sobre um divã à imagem da gata, felina, de pele eriçada, ardendo, esperando o toque, mas em vão: "Nevermore O. Tahiti", Gauguin fica em Paris, para nunca mais voltar.
Da mata exuberante que dá para a praia, vêm caminhando duas jovens, formosas, daquelas que habitam o imaginário exótico masculino e que atraíram Marlon Brando para uma ilha vizinha. São de uma beleza selvagem, bárbara. Talvez tenham inspirado Gauguin a pendurar aquela plaqueta no pequeno estúdio da Rue Vergintorix, em Paris, onde expôs, em 1894, suas primeiras cinqüenta telas sobre o Taiti: "Te Faruru" (= Aqui se faz amor!). Mas o rosto delas expressa aquela melancolia de todas as nativas: os olhos desviados ligeiramente para algum lado, fitando um ponto no infinito, os pensamentos "descolados" do presente... Oferecem seus "Seios com flores vermelhas" (tela de 1899) com desprendimento, espécie de última dádiva ao invasor, antes que...
Então Gauguin decide colocar na vitrine seu quadro definitivo, o daquela mulher estendida sobre um divã à imagem da gata, felina, de pele eriçada, ardendo, esperando o toque, mas em vão: "Nevermore O. Tahiti", Gauguin fica em Paris, para nunca mais voltar.
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