04 novembro 2011

Frederico Füllgraf- As más companhias de Indiana Jones


Fotos: divulgação


Indy, o arqueólogo rufião, estava de volta: coroa, poeira branca sobre as pálpebras, ainda arrancava suspiros da platéia feminina e surfava virtuosamente na maionese de Steven Spielberg. Mas para a maioria dos mortais sua cepa continuava obscura. Spielberg, seu alter-ego, se fingiu de morto, nunca revelando suas fontes, e quase trinta anos após sua estréia nas telas, o público ignora que o Indiana Jones da vida real se chamava Hiram Bingham: nascido no Havaí, em 1875, e morto em Washington DC, em 1956, foi político nos EUA e “descobridor” das ruínas de Machu Picchu, em julho de 1911.

Chapéu de aba murcha ao vento, sorriso debochado, Bingham emprestou ao personagem de Harrison Ford sua estampa de “canastrão, mas bom moço”. Contrariando o zelo arqueológico, em Machu Picchu violou 130 sepulcros incas, metendo a pá onde estava a História. Sob o pretexto de “análise científica”, o aventureiro levou para os EUA 5 mil (as autoridades peruanas falam em 40 mil) peças arqueológicas de inestimável valor, com a promessa de “empréstimo” por doze meses. Quebrou o contrato: entregou o butim ao Museu Yale Peabody, em Boston, e há 97 anos o Peru luta pela devolução de seu patrimônio histórico.  

Da guerra-fria ao império

Dublê de arqueólogo e agente secreto, truculento, Indy tem uma faible por mistérios, câmaras ocultas, rituais demoníacos: em “Os caçadores da arca perdida” (1981), disputa a tábua mítica dos Dez Mandamentos; em “O templo da morte” (1984) corre atrás de um gigantesco diamante; na “Última cruzada” (1989) tenta apossar-se daquele cálice com o sangue do Cristo crucificado; o Santo Gral.

E dê-lhe “nazistas” e “comunistas”: como “vingador do Ocidente”, o herói não recusa um flerte com o FBI e a CIA.

Inventado por Spielberg e George Lucas, durante uma reunião no Havaí de Bingham, Indiana Jones é fenômeno da transição da Guerra Fria para o império, unipolar. Sustentada por plágios descarados, em vinte e cinco anos a trilogia amealhou a alucinante bilheteria global de 1,3 bilhões de dólares, provavelmente a maior bilheteria do Cinema de todos os tempos – um engendramento sutil da lei da oferta e da procura e chocante termômetro da irrefreável imbecilização da humanidade.

Spielberg não tem tempo de ler livros. Mal lê suas orelhas, e freqüenta catacumbas onde, colher de pau na mão, mexe o caldeirão de sua indigesta gororoba, trocando fatos por fábulas.

A última bola da vez foi a Amazônia. Quer dizer, mais ou menos: História e Geografia reais são incômodas. Indiana Jones e a Caveira de Cristal(2007) foi mais uma versão de samba of the foolish gringo, com figurações, sotaques e referências ao México, quando o enredo “mostra” o Peru (ou seria o Acre, no Brasil?). Lá o herói tenta reencontrar um ex-colega desaparecido. Escreve-se o ano de 1957, auge das disputas com a URSS, e não é que um comando da KGB, travestido de marines e encabeçado por uma “vidente”, primeiro invade uma base de testes nucleares no Nevada, e depois reaparece na “selva amazônica” (filmada no Havaí...), atrás do mesmo obscuro objeto do desejo: o crânio de cristal caçado por Indy.

Mais fake que mito

Tais crânios de cristal são tão verdadeiros como o “santo Gral”, o “triângulo das Bermudas” ou os “diários de Hitler”: tudo fake, mas funciona brilhantemente como realimento para esotéricos delirantes e a comunidade dos teóricos da conspiração.

Uma dúzia destas recriações do crânio humano, esculpidas em cristal de quartzo, encontra-se espalhada pelo mundo, do British Museum ao museu Smithsonian, em Washington. Nenhum deles é original, todos são réplicas. Sua verdadeira origem, incaica ou asteca, continua mistério, provavelmente simbolizam rituais de sepultamento e de “passagem”. Já na Internet e em livros esotéricos circula a versão de que os crânios têm 100 mil anos de idade, emanam super-poderes, e que foram deixados na Terra por ETs – “trip” na qual embarcou Spielberg, que, mais “modesto”, afirma serem relíquias de Atlântida, o mitológico continente “desaparecido”.

O Indiana Jones de 2007 é um coquetel de “Lost City of the Incas”, livro de Hiram publicado em 1948, e de uma farsa urdida nos anos 1970, que culmina em 1984, com o assassinato de seu autor, na saída de um restaurante do Leblon: “A Crônica de Akakor “ (Bertram, 1977) de Karl Brugger, então correspondente da rede de Rádio e TV Pública da Alemanha, no Rio de Janeiro.

Contudo, crônica making of de um filme virtual, o compromisso da presente é surpreender o leitor, aqui convidado, como fazia o bruxo Machado, a acompanhar o autor escada abaixo, porque a caverna escura de Indiana Jones (não citada por Spielberg nem por Brugger) é assaz surpreendente e escabrosa.

Spielberg & Herr Himmler

O círculo do delírio de Spielberg fecha-se numa insuspeitável geografia e companhia: Heinrich Himmler, fundador da SS, a tropa de elite nazista.

Desde a tenra juventude, o ideólogo tinha um notável pendão para o esoterismo, numa versão impregnada de patriotismo racista e antijudaísmo. Acreditava, por exemplo, numa “civilização de Atlântida“, que supunha ter existido na orla da Groenlândia, cujos descendentes presumiu, transmutados, no Tibet e na América do Sul.

Na origem do esoterismo de Himmler estão “ariósofos” sombrios, como o austríaco, Karl Maria Wiligut, aliás Weisthor . Willigut foge de um manicômio, o que não o impede de alcançar a patente de chefe de Brigada da SS, protegido por Himmler, e de atuar como mentor do jovem mitologista, Otto Rahn, PhD na saga de Parsifal e nos mitos do Santo Gral. Em 1929, Rahn peregrina à fortaleza medieval de Montségur, na França, convencido de lá encontrar o maldito cálice (que presume ser um monólito). Não o encontra, mas publica uma pesquisa avassaladora sobre a “Cruzada contra o Gral“ (fonte na qual bebe, sem citá-la, outro profissional do plagiato: Dan Brown, autor d´ ”O código da Vinci”).

Reciclando o Gral como mistério pagão para a SS, Himmler inaugura uma série de expedições para os recônditos do planeta. A primeira delas, realizou-se sob liderança do zoólogo e montanhista, Ernst Schäfer, em 1934, ao Tibet, onde o supremo sacerdote da SS imagina sobreviventes da “raça ariana”, e Schäfer se curva respeitosamente à aura do jovem Dalai Lama. Indício, rude, dessa teoria “pan-ariana“, seria a cruz gamada ou swastika (termo de raiz indo-germânica), que desde tempos imemoriais é símbolo da boa sorte dos tibetanos.  Outra expedição teria como destino a Amazônia.

Cronista assassinado no Leblon

De volta à tela: transcorrida mais da metade da ação de Indiana Jones e a Caveira de Cristal, a perseguição atinge a apoteose em Akator, uma “cidade perdida”, em cuja grafia Spielberg trocou apenas o ”k” da Akakor de Brugger pelo “t” de seu plágio.

Alimentada por uma bizarra teoria da conspiração, a inspirada “Crônica de Akakor” de Brugger conta-nos que certa “elite nazista”, acompanhada de 2 mil (!) soldados e (para delírio da tribo dos UFOlogistas) uma versão primitiva de discos-voadores, teria se refugiado numa “cidade perdida”, também conhecida como “o castelo do Gral dos Incas”, na Amazônia.

Já na versão de Spielberg não cabiam os “nazistas” de Brugger porque, segundo a crônica, uma guerra entre os nativos e os primeiros, teria virtualmente exterminado os povos de Akakor.  Em seu lugar, entraram os soviéticos, tão órfãos de materialismo dialético, quando catatônicos os gringos, face à horripilância da “cidade perdida” - úmida morada de múmias, morcegos, escorpiões e caranguejeiras. E então a seqüência final: aqui o auto-referido Spielberg faz desabar a montanha do “gral andino” e de seu interior decolar (“ET is back”!) um gigantesco disco-voador – numa semelhança mais do que suspeita com “Eram os deuses astronautas”, do lunático Von Däniken, e com a crônica Babylõniaká (História da Caldéia) de Bérose, sacerdote de Bel-Marduk (330 a.C.), vagamente referida por Platão, segundo a qual o homem primitivo foi visitado pelos akpalos, extraterrestres pisciformes, que lhe transferiram o conhecimento para o despertar da Humanidade nas terras do atual Iraque.

Infelizmente, para a teoria da conspiração, o informante de Brugger foi um tal de “Tatunca Nara”, que em 1972 se apresenta como filho de um chefe indígena e de mãe alemã, “refugiada nazista”. Mas Tatunca Nara”, que falava alemão sem sotaque, estava mal parado na foto: no final dos anos 1980, a BKA, Polícia Federal alemã, reconhece o cidadão Günther Hauck com bronzeado de urucum, na roupagem do falso índio - alemão, nascido em 1941, em Coburg, Baviera, procurado por dívidas de pensão alimentícia e por isso escondido, desde a década dos anos 60, em Barcelos, no Amazonas. Mediante declaração cartorial, emitida em 2003, Tatunca Nara”, que já se naturalizara brasileiro, assume sua condição de “doente mental” – foi a segunda morte de Karl Brugger

Impassível, a inconfidência esotérica insiste que a “expedição amazônica nazista” teria ocorrido entre 1942 e 1943, e que em 1984 Brugger foi liquidado como “queima de arquivo”. Mais plausível é a hipótese de que Brugger tenha sofrido um assalto banal: levou um tiro quando esticou a mão ao bolso traseiro da calça. Certamente queria apanhar a carteira de dinheiro, mas o pivete fez outra leitura, pensou que seria uma arma – gesto fatal, mas não improvável, para quem já vivia há mais de dez anos no Rio de Janeiro.

E desde então “os nazistas” povoam a “cidade perdida dos Incas”, esculpida no subsolo da Amazônia, à qual Spielberg se mudou, sem pagar aluguel.

02 novembro 2011

Frederico Füllgraf - Burton e as reinvenções de nós mesmos

F
  Fotos: divulgação.


Frederico Füllgraf

Quando Kundamini, a prostituta do templo, morreu e foi cremada, Burton Saheb, doente de amor, ordena a Nukaram, seu pajem indiano, que arranje alguns símios para lhe fazer companhia.

Macacos, sire?!

Surpreso e na dúvida, o indiano belisca as próprias orelhas, mas já percebe a resposta na crispação do rosto e no olhar fulminante do patrão. Sem mais comentário abaixa o bestunto e sai à cata dos bichos.

Passam horas.

Mas então, junto com seis lubambeiros trazidos das capoeiras por Nukaram, o britânico toma assento à mesa farta e, em inglês e hindustani, incita seus comensais à conversação, observando-lhes as reações, pesquisando sua linguagem.

Inicialmente apreensiva, a macacada logo mostra a que veio, pouco se lixando para a etiqueta. E de babel o dinner degenera em motim, pandemônio, uma zona infernal. Já escabreada, a turba inicia o troca-troca de cadeiras. Enfezado, um macaco feio como o cão-tinhoso, salta sobre a mesa, enrabicha a garrafa de vinho com sua cola e emborca o precioso Chateu Neuf du Pape sobre a toalha de linho branco. Lívida de excitação a patuléia põe-se a lamber e chupar o vermelho-escuro. Há dois que metem as patas no caldo de cordeiro assado, e num átimo a choldra se submete ao bombardeio com os quitutes do menu - já estarão borrachos? Em seguida, mordem, despedaçam e mijam nos legumes, lambuzam de carne de manga, páprica vermelha, açafrão e suas próprias fezes, as paredes da sala, que restam ali como tela inacabada de um hilariante quadro expressionista, pegajoso e fedorento. Depois, emporcalhados de lavagem e seus próprios desarranjos, sujeitam o anfitrião, abobalhado, à malhação com os bolinhos de arroz, temperados no gengibre.

Mas uma estranha cumplicidade faz desta barafunda um ritual no qual está obliterada a fronteira entre o bem e o mal: um macaco-prego, com fuça de belzebu, provocativamente encara Burton, que responde ao desafio com uma carranca ainda mais luciferina: preta de azul cintilante, de tão maligna. Rendido, o pongo desvia o olhar, abaixa a crista, recua de costas, e desde uma cadeira afastada, observa, melindroso, o Grande Satã.  

E no meio do angu-de-caroço, desse deus-nos-acuda, o coisa-ruim e impassível Saheb consegue catalogar 60 expressões, através das quais os rufiões se comunicam.

Cenas como essa, tecem com cores e odores a narrativa de “Der Weltensammler” [O colecionador de mundos, 2007] do búlgaro de língua alemã, Ilija Trojanow. A  narrativa de Trojanow literalmente gira ao redor de uma das personalidades mais excêntricas e ousadas da vida real e da literatura do séc. XIX, em movimento concêntrico aos giros daquela ao redor dos meridianos terrestres: Richard Francis Burton - militar, diplomata e espião do Império Britânico, viajante obsessivo dublê de místico sufi, etnólogo autodidata e libertino.
“O colecionador de mundos” é um romance biográfico sobre as andanças e os travestimentos de Burton, e para senti-los na pele Trojanow não teve dúvidas: retomou as sendas do personagem e também peregrinou até Meca, depois do que, ainda imitando o inglês, também se converteu ao islamismo.

Eis um fenômeno insólito: aquelas conversões enchiam de horror o British Empire, porque enviava seus melhores homens para espionar e subjugar o inimigo e os povos colonizados, e eles retornavam convertidos às suas doutrinas exóticas e subversivas!

Por essa e outras razões Richard Francis Burton era insultado por seus contemporâneos britânicos como o “white nigger”, insulto obviamente expressado com a impoluta elegância de luvas brancas nas mãos, mas agravado pela tez morena de sua pele matizada desde a nascença por generosa dose de melanina.

Impávido, sobejamente se lixando à imagem de si na cabeça dos outros, Burton não desiste de caminhar pelas vielas lamacentas de Baroda, até alcançar o casebre onde se instalou em companhia de Kundamini. Obviamente, o nome da personagem é uma licença poética emprestada das virtudes carnais da prostituta do templo. Ela encarnava uma dessas entidades que desde os dias das guardiãs dos Templos de Apolo no imaginário religioso e popular transitam entre o sacro e o profano. E Burton a toma como amante por sua carência espiritual, pois intui que ela o iniciará no Kundalini, a fruição do sexo em suas mais elevadas libações. Kundamini não se faz de rogada, entre uma “borboleta”, um “dragão” ou uma poderosa cavalgada do amado, narrando-lhe parábolas orientais. Das cortesãs, por exemplo, que a cada tanto ingeriam doses mais potentes de certo veneno indiano para, poção após poção, imunizar o próprio corpo. Naturalmente, explica-lhe Kundamini, o intercurso com elas tornava-se um empreendimento peçonhento para seus inimigos. Mas só para eles... Debaixo dela, Burton sacode-se, derruba-a da sela – “empreendimento peçonhento”?

Essa estória nos é contada aos tropeços e com elipses de Sidy Mubarak Bombay, que tenta salvá-la, narrado-a aos escrivinhadores de cartas dos bazares, mas não tem o dinheiro para pagá-los.

A infiltração nos santuários proibidos

Nascido em Elstree, Hertfordshire, em 1821, aos vinte e um anos decide prestar serviço militar à Companhia das Índias, vivendo, pesquisando e escrevendo sobre o Subcontinente Indiano durante cinco anos. Acobertado pela Real Sociedade Geográfica, em Londres, em 1853, Burton traveste-se de peregrino muçulmano e penetra nos mais sagrados sítios do Islã. De regresso a Londres escreve a “Narração Pessoal de Uma Peregrinação a Medina e a Meca”, que o lança à fama, mas o torna maldito aos olhos dos muçulmanos, pois sua presença clandestina fora um sacrilégio e insulto às leis de Mahoma. O Empire dá de ombros, mas naquela andança até o Haj alguma coisa tinha mexido com a alma do conspurcador, Burton.
Em 1854, o inglês é um dos primeiros europeus a infiltrar-se e investigar os costumes na cidade proibida de Harar, na Etiópia, de onde nenhum estrangeiro voltaria com vida. O pretexto era inconfessado, mas acobertado pelo império, pois sua missão consistia em estudar o comércio da zona. Ao descrever os Somalis em seu “First Steps in Africa”, o ainda jovem Burton é capaz de destilar opiniões deveras extravagantes sobre os nativos, que dizem da Eugenia ou do mais deslavado racismo como Doutrina de Estado do Empire: “The Somali have all the levity and instability of the Negro character; light-minded as the Abyssinians,--described by Gobat as constant in nothing but inconstancy,--soft, merry, and affectionate souls, they pass without any apparent transition into a state of fury, when they are capable of terrible atrocities. […].

A desastrada expedição às fontes do Nilo

Dois anos mais tarde, parte em busca das fontes do Nilo. Foi uma de suas mais conturbadas expedições, interrompida por uma disputa com o tenente John H. Speke pela autoria da descoberta do Lago Vitória, e agravada pelo incidente insólito da morte do tenente após o retorno à Inglaterra que, segundo o laudo pericial da época, teria disparado uma arma de caça, matando-se sem querer. “Sem querer” é um desses cacoetes de linguagem empregados com sobeja irresponsabilidade pela tal alma popular, e por isso um prato cheio ou “discurso” para dar trela no divã dos psicanalistas, que à época do acidente infelizmente ainda pensavam em voz baixa (que tal a pulsão de suicídio de Speke?), agravando o status de Burton, suspeito de ter assassinado o tenente rival, que notoriamente lhe usurpara o direito da descoberta do Lago Vitória.

Maldição em cima de maldição: como se não bastasse o opróbrio, a execrável expedição lhe brindara uma cicatriz medonha e inapagável, produto de uma insuspeitada trombada com um javali, que com suas presas lhe atravessara as bochechas, de face a face, como uma espada com lâmina de polegada e meia; estigma da maldição que para o resto de seus dias acentuaria ainda mais sua expressão demoníaca.

A carranca não impediu que Isabel Arundell, donzela de família católica e aristocrática, com vinte e nove anos de idade, caísse de amores pelo aventureiro, que conhecera em 1851, e que de tempos em tempos desaparecia em mais uma de suas misteriosas incursões, mundo adentro. Burton a deixara esperando cinco anos até encetar o namoro secreto com a bela, e outros cinco se passaram até a bela criar coragem, enfrentar seus pais, veementes adversários do affaire, e debandar-se a Londres, para juntar-se a Richard Francis. Foram os amores de suas vidas, um para o outro, o que não impediu que Isabel intuísse a devassidão do marido, nem que este colocasse freios à sua insopitável pulsão por um bordel.  


Nos papéis de Camões e Ovídio


Em 1861, Burton é nomeado cônsul britânico em Fernando Pó. Nessa época, peregrinara a Goa para exultar Luís de Camões. O que fez mais uma vez reinventando-se, devendo-se apostar que vestiu aquelas bombachas esdrúxulas do lusitano. Arrebatado, e não pouco, traduz-lhe “Os Lusíadas” e dedica uma apaixonada biografia ao poeta caolho. Na verdade, sua transferência para Fernando Pó equivalia ao desterro: tinham-no enxotado para lá com a finalidade de tirá-lo de circulação, enquanto a Justiça e a opinião pública regurgitavam as circunstâncias da morte de Speke.

Visivelmente aborrecido, em 1864 assume o cargo de cônsul britânico em Santos, no Brasil, onde protagoniza pequenas expedições a Minas Gerais e ao Rio São Francisco. Em 1869, final de sua gestão, percorre os cursos superiores dos rios Paraguai e Paraná. Naturalmente, o que para o público externo poderia sinalizar tédio e enfastio, era na verdade mais um plano urdido pelo Empire: admirada desde seus dias na Índia, alguns nacionalistas suspeitaram que Burton viera estudar a experiência portuguesa da colonização nos trópicos. O que nunca explicaram é o que aquela colonização tivera de tão admirável.

Destacado como cônsul para Damasco, depois Burton penetra no deserto da Síria e visita Palmira. Em seguida, recebe do paxá do Egito o mandato para estudar as minas de ouro de Madian (“As Minas de Ouro de Midian e as Cidades Medianitas em Ruínas”), e em 1882 visita a Costa do Ouro com o comandante Cameron (“À Costa do Ouro em busca de Ouro”). Sua última missão oficial foi a nomeação para cônsul-geral em Trieste, onde morre em 1890, agraciado com a comenda de Cavaleiro, mas não sem antes reviver o exílio do poeta Ovídio na costa do Adriático. Com louros nos cachos, tocando cítara? Disso jamais saberemos... Após a morte do marido, Isabel Arundell chamou o jardineiro, Massimo Gotti, e ordenou-lhe um auto-de-fé dos textos e traduções lúbricos de Burton, para tornar mais apetecível à sociedade vitoriana a versão da vida em companhia de Sir Richard Francis que então se pôs a escrever.
É que poucos anos antes, entre 1883 y 1888, Burton publicara suas traduções das “Mil e uma noites”, de “O Jardim das delícias” e do “Kama Sutra” (o “Tratado do prazer”). Dizia-se que chegara a comunicar-se em trinta e cinco idiomas e cinco línguas orientais. Estudava-as, brincava com elas, mas seu maior divertimento, como disse, encontrara nas salas de esgrima - touché! Mas estampar no rosto uma cicatriz das presas de um estúpido javali, ao invés do fio de um florete... – oh shit, que enorme constrangimento!

O Islã como reinvenção de si mesmo

"Meu corpo está no Ocidente
E minha alma está no Oriente;
Meu corpo está nos países infiéis,
Meu coração está em Istambul
E meu coração está em Orã!”

Estes versos algo primários não foram escritos por Burton, eles são de autoria de Isabelle Eberhardt, a russa germânica, “noiva do deserto” – lasciva, depravada e mortificada como o inglês, que na corcova de um camelo sai em busca do sentido da vida nas escaldantes areias do Maghreb.

Foi o que Burton fez meio século antes de Eberhardt, mediante a constante busca do ausente, não raras vezes com a ajuda do ópio, do haxixe, ou jogando cabala, incursionando na alquimia e toda sorte de manifestações místicas e esotéricas, até converter-se ao Sufismo, vertente gnóstica do lslamismo que, como la Eberhardt, praticou devoto até o fim de seus dias.                     

Sua obsessão em reinventar-se continuamente incomodou seus biógrafos. Não há dúvida que o Oriente foi sua melhor encarnação; se preferirmos, seu melhor papel.

Mas afinal, qual impulso foi o mais marcante na construção dos personagens de Burton: o espião a serviço do imperialismo britânico, ou a alma aflita do aventureiro europeu que em sua busca espiritual viu-se obrigado ao disfarce nas duas direções, do Oriente e do Ocidente? Em “The Devil Drives: A Life of Sir Richard Burton”, sua biógrafa, Fawn M. Brodie, adverte que Richard Francis foi “a man perpetually at war with himself, a man of action opposed to a man of letters, a man of the sword and a poet, a bawdy swashbuckler, a libertine a seeker tormented by the secrets of sexual vigour”.  Michel Le Bris, prefaciador da edição francesa da biografia, adverte para “o talento latente como nenhum outro, de disfarçar-se, assumindo diferentes personalidades, assimilando outras culturas, penetrando estruturas sociais alheias”.

Em sua angústia existencial, Richard Francis Burton valeu-se de seu talento para a interpretação, a reinvenção de si mesmo, seus personagens na vida real. Desse talento aproveitou-se o Império Britânico. Contudo, a ironia pungente dos travestimentos de Burton, iniciados na condição de espião, é que resultam quase sempre em tiro pela culatra para o Império: como explorador autocrata ele odiava a escravidão, como herói da hipocrisia vitoriana acreditava nos benefícios da poligamia e, pelas vias do erotismo tântrico, emerge o Burton sufista. Mas sem jamais deixar de admitir que a idéia de um Deus – essa entidade severa e monoteísta, urdida na solidão dos desertos – fosse mesmo uma idéia fora de ordem.

Por isso, em Revelações, o último capítulo de “O colecionador de mundos”, o vigário italiano resiste em dar a extrema unção e os óleos ao moribundo e, antes de autorizar seu sepultamento no cemitério cristão, assedia o jardineiro com intermináveis interrogatórios sobre a conduta espiritual daquele que abraçara o mundo e tinha a expressão do demônio. Não o demônio da luxúria, mas o temível satã simbolizado pela meia lua flutuando sobre o Levante, ruminava o vigário.

Charada: por que as bandeiras do Islã são de cor verde? Talvez porque o verde seja a cor da ausência. Ele simboliza o vasto oásis, o frágil e fértil Ocidente a conquistar – mas nisto o orientalista Burton não tinha pensado. Nem Muhamar Gadhafi.