Fotos: divulgação
Indy, o arqueólogo rufião, estava de volta: coroa, poeira branca sobre as pálpebras, ainda arrancava suspiros da platéia feminina e surfava virtuosamente na maionese de Steven Spielberg. Mas para a maioria dos mortais sua cepa continuava obscura. Spielberg, seu alter-ego, se fingiu de morto, nunca revelando suas fontes, e quase trinta anos após sua estréia nas telas, o público ignora que o Indiana Jones da vida real se chamava Hiram Bingham: nascido no Havaí, em 1875, e morto em Washington DC, em 1956, foi político nos EUA e “descobridor” das ruínas de Machu Picchu, em julho de 1911.
Chapéu de aba murcha ao vento, sorriso debochado, Bingham emprestou ao personagem de Harrison Ford sua estampa de “canastrão, mas bom moço”. Contrariando o zelo arqueológico, em Machu Picchu violou 130 sepulcros incas, metendo a pá onde estava a História. Sob o pretexto de “análise científica”, o aventureiro levou para os EUA 5 mil (as autoridades peruanas falam em 40 mil) peças arqueológicas de inestimável valor, com a promessa de “empréstimo” por doze meses. Quebrou o contrato: entregou o butim ao Museu Yale Peabody, em Boston, e há 97 anos o Peru luta pela devolução de seu patrimônio histórico.
Da guerra-fria ao império
Dublê de arqueólogo e agente secreto, truculento, Indy tem uma faible por mistérios, câmaras ocultas, rituais demoníacos: em “Os caçadores da arca perdida” (1981), disputa a tábua mítica dos Dez Mandamentos; em “O templo da morte” (1984) corre atrás de um gigantesco diamante; na “Última cruzada” (1989) tenta apossar-se daquele cálice com o sangue do Cristo crucificado; o Santo Gral.
E dê-lhe “nazistas” e “comunistas”: como “vingador do Ocidente”, o herói não recusa um flerte com o FBI e a CIA.
Inventado por Spielberg e George Lucas, durante uma reunião no Havaí de Bingham, Indiana Jones é fenômeno da transição da Guerra Fria para o império, unipolar. Sustentada por plágios descarados, em vinte e cinco anos a trilogia amealhou a alucinante bilheteria global de 1,3 bilhões de dólares, provavelmente a maior bilheteria do Cinema de todos os tempos – um engendramento sutil da lei da oferta e da procura e chocante termômetro da irrefreável imbecilização da humanidade.
Spielberg não tem tempo de ler livros. Mal lê suas orelhas, e freqüenta catacumbas onde, colher de pau na mão, mexe o caldeirão de sua indigesta gororoba, trocando fatos por fábulas.
A última bola da vez foi a Amazônia. Quer dizer, mais ou menos: História e Geografia reais são incômodas. “Indiana Jones e a Caveira de Cristal” (2007) foi mais uma versão de samba of the foolish gringo, com figurações, sotaques e referências ao México, quando o enredo “mostra” o Peru (ou seria o Acre, no Brasil?). Lá o herói tenta reencontrar um ex-colega desaparecido. Escreve-se o ano de 1957, auge das disputas com a URSS, e não é que um comando da KGB, travestido de marines e encabeçado por uma “vidente”, primeiro invade uma base de testes nucleares no Nevada, e depois reaparece na “selva amazônica” (filmada no Havaí...), atrás do mesmo obscuro objeto do desejo: o crânio de cristal caçado por Indy.
Mais fake que mito
Tais crânios de cristal são tão verdadeiros como o “santo Gral”, o “triângulo das Bermudas” ou os “diários de Hitler”: tudo fake, mas funciona brilhantemente como realimento para esotéricos delirantes e a comunidade dos teóricos da conspiração.
Uma dúzia destas recriações do crânio humano, esculpidas em cristal de quartzo, encontra-se espalhada pelo mundo, do British Museum ao museu Smithsonian, em Washington. Nenhum deles é original, todos são réplicas. Sua verdadeira origem, incaica ou asteca, continua mistério, provavelmente simbolizam rituais de sepultamento e de “passagem”. Já na Internet e em livros esotéricos circula a versão de que os crânios têm 100 mil anos de idade, emanam super-poderes, e que foram deixados na Terra por ETs – “trip” na qual embarcou Spielberg, que, mais “modesto”, afirma serem relíquias de Atlântida, o mitológico continente “desaparecido”.
O Indiana Jones de 2007 é um coquetel de “Lost City of the Incas”, livro de Hiram publicado em 1948, e de uma farsa urdida nos anos 1970, que culmina em 1984, com o assassinato de seu autor, na saída de um restaurante do Leblon: “A Crônica de Akakor “ (Bertram, 1977) de Karl Brugger, então correspondente da rede de Rádio e TV Pública da Alemanha, no Rio de Janeiro.
Contudo, crônica making of de um filme virtual, o compromisso da presente é surpreender o leitor, aqui convidado, como fazia o bruxo Machado, a acompanhar o autor escada abaixo, porque a caverna escura de Indiana Jones (não citada por Spielberg nem por Brugger) é assaz surpreendente e escabrosa.
Spielberg & Herr Himmler
O círculo do delírio de Spielberg fecha-se numa insuspeitável geografia e companhia: Heinrich Himmler, fundador da SS, a tropa de elite nazista.
Desde a tenra juventude, o ideólogo tinha um notável pendão para o esoterismo, numa versão impregnada de patriotismo racista e antijudaísmo. Acreditava, por exemplo, numa “civilização de Atlântida“, que supunha ter existido na orla da Groenlândia, cujos descendentes presumiu, transmutados, no Tibet e na América do Sul.
Na origem do esoterismo de Himmler estão “ariósofos” sombrios, como o austríaco, Karl Maria Wiligut, aliás Weisthor . Willigut foge de um manicômio, o que não o impede de alcançar a patente de chefe de Brigada da SS, protegido por Himmler, e de atuar como mentor do jovem mitologista, Otto Rahn, PhD na saga de Parsifal e nos mitos do Santo Gral. Em 1929, Rahn peregrina à fortaleza medieval de Montségur, na França, convencido de lá encontrar o maldito cálice (que presume ser um monólito). Não o encontra, mas publica uma pesquisa avassaladora sobre a “Cruzada contra o Gral“ (fonte na qual bebe, sem citá-la, outro profissional do plagiato: Dan Brown, autor d´ ”O código da Vinci”).
Reciclando o Gral como mistério pagão para a SS, Himmler inaugura uma série de expedições para os recônditos do planeta. A primeira delas, realizou-se sob liderança do zoólogo e montanhista, Ernst Schäfer, em 1934, ao Tibet, onde o supremo sacerdote da SS imagina sobreviventes da “raça ariana”, e Schäfer se curva respeitosamente à aura do jovem Dalai Lama. Indício, rude, dessa teoria “pan-ariana“, seria a cruz gamada ou swastika (termo de raiz indo-germânica), que desde tempos imemoriais é símbolo da boa sorte dos tibetanos. Outra expedição teria como destino a Amazônia.
Cronista assassinado no Leblon
De volta à tela: transcorrida mais da metade da ação de “Indiana Jones e a Caveira de Cristal”, a perseguição atinge a apoteose em Akator, uma “cidade perdida”, em cuja grafia Spielberg trocou apenas o ”k” da Akakor de Brugger pelo “t” de seu plágio.
Alimentada por uma bizarra teoria da conspiração, a inspirada “Crônica de Akakor” de Brugger conta-nos que certa “elite nazista”, acompanhada de 2 mil (!) soldados e (para delírio da tribo dos UFOlogistas) uma versão primitiva de discos-voadores, teria se refugiado numa “cidade perdida”, também conhecida como “o castelo do Gral dos Incas”, na Amazônia.
Já na versão de Spielberg não cabiam os “nazistas” de Brugger porque, segundo a crônica, uma guerra entre os nativos e os primeiros, teria virtualmente exterminado os povos de Akakor. Em seu lugar, entraram os soviéticos, tão órfãos de materialismo dialético, quando catatônicos os gringos, face à horripilância da “cidade perdida” - úmida morada de múmias, morcegos, escorpiões e caranguejeiras. E então a seqüência final: aqui o auto-referido Spielberg faz desabar a montanha do “gral andino” e de seu interior decolar (“ET is back”!) um gigantesco disco-voador – numa semelhança mais do que suspeita com “Eram os deuses astronautas”, do lunático Von Däniken, e com a crônica Babylõniaká (História da Caldéia) de Bérose, sacerdote de Bel-Marduk (330 a.C.), vagamente referida por Platão, segundo a qual o homem primitivo foi visitado pelos akpalos, extraterrestres pisciformes, que lhe transferiram o conhecimento para o despertar da Humanidade nas terras do atual Iraque.
Infelizmente, para a teoria da conspiração, o informante de Brugger foi um tal de “Tatunca Nara”, que em 1972 se apresenta como filho de um chefe indígena e de mãe alemã, “refugiada nazista”. Mas “Tatunca Nara”, que falava alemão sem sotaque, estava mal parado na foto: no final dos anos 1980, a BKA, Polícia Federal alemã, reconhece o cidadão Günther Hauck com bronzeado de urucum, na roupagem do falso índio - alemão, nascido em 1941, em Coburg, Baviera, procurado por dívidas de pensão alimentícia e por isso escondido, desde a década dos anos 60, em Barcelos, no Amazonas. Mediante declaração cartorial, emitida em 2003, “Tatunca Nara”, que já se naturalizara brasileiro, assume sua condição de “doente mental” – foi a segunda morte de Karl Brugger
Impassível, a inconfidência esotérica insiste que a “expedição amazônica nazista” teria ocorrido entre 1942 e 1943, e que em 1984 Brugger foi liquidado como “queima de arquivo”. Mais plausível é a hipótese de que Brugger tenha sofrido um assalto banal: levou um tiro quando esticou a mão ao bolso traseiro da calça. Certamente queria apanhar a carteira de dinheiro, mas o pivete fez outra leitura, pensou que seria uma arma – gesto fatal, mas não improvável, para quem já vivia há mais de dez anos no Rio de Janeiro.
E desde então “os nazistas” povoam a “cidade perdida dos Incas”, esculpida no subsolo da Amazônia, à qual Spielberg se mudou, sem pagar aluguel.