02 novembro 2011

Frederico Füllgraf - Burton e as reinvenções de nós mesmos

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  Fotos: divulgação.


Frederico Füllgraf

Quando Kundamini, a prostituta do templo, morreu e foi cremada, Burton Saheb, doente de amor, ordena a Nukaram, seu pajem indiano, que arranje alguns símios para lhe fazer companhia.

Macacos, sire?!

Surpreso e na dúvida, o indiano belisca as próprias orelhas, mas já percebe a resposta na crispação do rosto e no olhar fulminante do patrão. Sem mais comentário abaixa o bestunto e sai à cata dos bichos.

Passam horas.

Mas então, junto com seis lubambeiros trazidos das capoeiras por Nukaram, o britânico toma assento à mesa farta e, em inglês e hindustani, incita seus comensais à conversação, observando-lhes as reações, pesquisando sua linguagem.

Inicialmente apreensiva, a macacada logo mostra a que veio, pouco se lixando para a etiqueta. E de babel o dinner degenera em motim, pandemônio, uma zona infernal. Já escabreada, a turba inicia o troca-troca de cadeiras. Enfezado, um macaco feio como o cão-tinhoso, salta sobre a mesa, enrabicha a garrafa de vinho com sua cola e emborca o precioso Chateu Neuf du Pape sobre a toalha de linho branco. Lívida de excitação a patuléia põe-se a lamber e chupar o vermelho-escuro. Há dois que metem as patas no caldo de cordeiro assado, e num átimo a choldra se submete ao bombardeio com os quitutes do menu - já estarão borrachos? Em seguida, mordem, despedaçam e mijam nos legumes, lambuzam de carne de manga, páprica vermelha, açafrão e suas próprias fezes, as paredes da sala, que restam ali como tela inacabada de um hilariante quadro expressionista, pegajoso e fedorento. Depois, emporcalhados de lavagem e seus próprios desarranjos, sujeitam o anfitrião, abobalhado, à malhação com os bolinhos de arroz, temperados no gengibre.

Mas uma estranha cumplicidade faz desta barafunda um ritual no qual está obliterada a fronteira entre o bem e o mal: um macaco-prego, com fuça de belzebu, provocativamente encara Burton, que responde ao desafio com uma carranca ainda mais luciferina: preta de azul cintilante, de tão maligna. Rendido, o pongo desvia o olhar, abaixa a crista, recua de costas, e desde uma cadeira afastada, observa, melindroso, o Grande Satã.  

E no meio do angu-de-caroço, desse deus-nos-acuda, o coisa-ruim e impassível Saheb consegue catalogar 60 expressões, através das quais os rufiões se comunicam.

Cenas como essa, tecem com cores e odores a narrativa de “Der Weltensammler” [O colecionador de mundos, 2007] do búlgaro de língua alemã, Ilija Trojanow. A  narrativa de Trojanow literalmente gira ao redor de uma das personalidades mais excêntricas e ousadas da vida real e da literatura do séc. XIX, em movimento concêntrico aos giros daquela ao redor dos meridianos terrestres: Richard Francis Burton - militar, diplomata e espião do Império Britânico, viajante obsessivo dublê de místico sufi, etnólogo autodidata e libertino.
“O colecionador de mundos” é um romance biográfico sobre as andanças e os travestimentos de Burton, e para senti-los na pele Trojanow não teve dúvidas: retomou as sendas do personagem e também peregrinou até Meca, depois do que, ainda imitando o inglês, também se converteu ao islamismo.

Eis um fenômeno insólito: aquelas conversões enchiam de horror o British Empire, porque enviava seus melhores homens para espionar e subjugar o inimigo e os povos colonizados, e eles retornavam convertidos às suas doutrinas exóticas e subversivas!

Por essa e outras razões Richard Francis Burton era insultado por seus contemporâneos britânicos como o “white nigger”, insulto obviamente expressado com a impoluta elegância de luvas brancas nas mãos, mas agravado pela tez morena de sua pele matizada desde a nascença por generosa dose de melanina.

Impávido, sobejamente se lixando à imagem de si na cabeça dos outros, Burton não desiste de caminhar pelas vielas lamacentas de Baroda, até alcançar o casebre onde se instalou em companhia de Kundamini. Obviamente, o nome da personagem é uma licença poética emprestada das virtudes carnais da prostituta do templo. Ela encarnava uma dessas entidades que desde os dias das guardiãs dos Templos de Apolo no imaginário religioso e popular transitam entre o sacro e o profano. E Burton a toma como amante por sua carência espiritual, pois intui que ela o iniciará no Kundalini, a fruição do sexo em suas mais elevadas libações. Kundamini não se faz de rogada, entre uma “borboleta”, um “dragão” ou uma poderosa cavalgada do amado, narrando-lhe parábolas orientais. Das cortesãs, por exemplo, que a cada tanto ingeriam doses mais potentes de certo veneno indiano para, poção após poção, imunizar o próprio corpo. Naturalmente, explica-lhe Kundamini, o intercurso com elas tornava-se um empreendimento peçonhento para seus inimigos. Mas só para eles... Debaixo dela, Burton sacode-se, derruba-a da sela – “empreendimento peçonhento”?

Essa estória nos é contada aos tropeços e com elipses de Sidy Mubarak Bombay, que tenta salvá-la, narrado-a aos escrivinhadores de cartas dos bazares, mas não tem o dinheiro para pagá-los.

A infiltração nos santuários proibidos

Nascido em Elstree, Hertfordshire, em 1821, aos vinte e um anos decide prestar serviço militar à Companhia das Índias, vivendo, pesquisando e escrevendo sobre o Subcontinente Indiano durante cinco anos. Acobertado pela Real Sociedade Geográfica, em Londres, em 1853, Burton traveste-se de peregrino muçulmano e penetra nos mais sagrados sítios do Islã. De regresso a Londres escreve a “Narração Pessoal de Uma Peregrinação a Medina e a Meca”, que o lança à fama, mas o torna maldito aos olhos dos muçulmanos, pois sua presença clandestina fora um sacrilégio e insulto às leis de Mahoma. O Empire dá de ombros, mas naquela andança até o Haj alguma coisa tinha mexido com a alma do conspurcador, Burton.
Em 1854, o inglês é um dos primeiros europeus a infiltrar-se e investigar os costumes na cidade proibida de Harar, na Etiópia, de onde nenhum estrangeiro voltaria com vida. O pretexto era inconfessado, mas acobertado pelo império, pois sua missão consistia em estudar o comércio da zona. Ao descrever os Somalis em seu “First Steps in Africa”, o ainda jovem Burton é capaz de destilar opiniões deveras extravagantes sobre os nativos, que dizem da Eugenia ou do mais deslavado racismo como Doutrina de Estado do Empire: “The Somali have all the levity and instability of the Negro character; light-minded as the Abyssinians,--described by Gobat as constant in nothing but inconstancy,--soft, merry, and affectionate souls, they pass without any apparent transition into a state of fury, when they are capable of terrible atrocities. […].

A desastrada expedição às fontes do Nilo

Dois anos mais tarde, parte em busca das fontes do Nilo. Foi uma de suas mais conturbadas expedições, interrompida por uma disputa com o tenente John H. Speke pela autoria da descoberta do Lago Vitória, e agravada pelo incidente insólito da morte do tenente após o retorno à Inglaterra que, segundo o laudo pericial da época, teria disparado uma arma de caça, matando-se sem querer. “Sem querer” é um desses cacoetes de linguagem empregados com sobeja irresponsabilidade pela tal alma popular, e por isso um prato cheio ou “discurso” para dar trela no divã dos psicanalistas, que à época do acidente infelizmente ainda pensavam em voz baixa (que tal a pulsão de suicídio de Speke?), agravando o status de Burton, suspeito de ter assassinado o tenente rival, que notoriamente lhe usurpara o direito da descoberta do Lago Vitória.

Maldição em cima de maldição: como se não bastasse o opróbrio, a execrável expedição lhe brindara uma cicatriz medonha e inapagável, produto de uma insuspeitada trombada com um javali, que com suas presas lhe atravessara as bochechas, de face a face, como uma espada com lâmina de polegada e meia; estigma da maldição que para o resto de seus dias acentuaria ainda mais sua expressão demoníaca.

A carranca não impediu que Isabel Arundell, donzela de família católica e aristocrática, com vinte e nove anos de idade, caísse de amores pelo aventureiro, que conhecera em 1851, e que de tempos em tempos desaparecia em mais uma de suas misteriosas incursões, mundo adentro. Burton a deixara esperando cinco anos até encetar o namoro secreto com a bela, e outros cinco se passaram até a bela criar coragem, enfrentar seus pais, veementes adversários do affaire, e debandar-se a Londres, para juntar-se a Richard Francis. Foram os amores de suas vidas, um para o outro, o que não impediu que Isabel intuísse a devassidão do marido, nem que este colocasse freios à sua insopitável pulsão por um bordel.  


Nos papéis de Camões e Ovídio


Em 1861, Burton é nomeado cônsul britânico em Fernando Pó. Nessa época, peregrinara a Goa para exultar Luís de Camões. O que fez mais uma vez reinventando-se, devendo-se apostar que vestiu aquelas bombachas esdrúxulas do lusitano. Arrebatado, e não pouco, traduz-lhe “Os Lusíadas” e dedica uma apaixonada biografia ao poeta caolho. Na verdade, sua transferência para Fernando Pó equivalia ao desterro: tinham-no enxotado para lá com a finalidade de tirá-lo de circulação, enquanto a Justiça e a opinião pública regurgitavam as circunstâncias da morte de Speke.

Visivelmente aborrecido, em 1864 assume o cargo de cônsul britânico em Santos, no Brasil, onde protagoniza pequenas expedições a Minas Gerais e ao Rio São Francisco. Em 1869, final de sua gestão, percorre os cursos superiores dos rios Paraguai e Paraná. Naturalmente, o que para o público externo poderia sinalizar tédio e enfastio, era na verdade mais um plano urdido pelo Empire: admirada desde seus dias na Índia, alguns nacionalistas suspeitaram que Burton viera estudar a experiência portuguesa da colonização nos trópicos. O que nunca explicaram é o que aquela colonização tivera de tão admirável.

Destacado como cônsul para Damasco, depois Burton penetra no deserto da Síria e visita Palmira. Em seguida, recebe do paxá do Egito o mandato para estudar as minas de ouro de Madian (“As Minas de Ouro de Midian e as Cidades Medianitas em Ruínas”), e em 1882 visita a Costa do Ouro com o comandante Cameron (“À Costa do Ouro em busca de Ouro”). Sua última missão oficial foi a nomeação para cônsul-geral em Trieste, onde morre em 1890, agraciado com a comenda de Cavaleiro, mas não sem antes reviver o exílio do poeta Ovídio na costa do Adriático. Com louros nos cachos, tocando cítara? Disso jamais saberemos... Após a morte do marido, Isabel Arundell chamou o jardineiro, Massimo Gotti, e ordenou-lhe um auto-de-fé dos textos e traduções lúbricos de Burton, para tornar mais apetecível à sociedade vitoriana a versão da vida em companhia de Sir Richard Francis que então se pôs a escrever.
É que poucos anos antes, entre 1883 y 1888, Burton publicara suas traduções das “Mil e uma noites”, de “O Jardim das delícias” e do “Kama Sutra” (o “Tratado do prazer”). Dizia-se que chegara a comunicar-se em trinta e cinco idiomas e cinco línguas orientais. Estudava-as, brincava com elas, mas seu maior divertimento, como disse, encontrara nas salas de esgrima - touché! Mas estampar no rosto uma cicatriz das presas de um estúpido javali, ao invés do fio de um florete... – oh shit, que enorme constrangimento!

O Islã como reinvenção de si mesmo

"Meu corpo está no Ocidente
E minha alma está no Oriente;
Meu corpo está nos países infiéis,
Meu coração está em Istambul
E meu coração está em Orã!”

Estes versos algo primários não foram escritos por Burton, eles são de autoria de Isabelle Eberhardt, a russa germânica, “noiva do deserto” – lasciva, depravada e mortificada como o inglês, que na corcova de um camelo sai em busca do sentido da vida nas escaldantes areias do Maghreb.

Foi o que Burton fez meio século antes de Eberhardt, mediante a constante busca do ausente, não raras vezes com a ajuda do ópio, do haxixe, ou jogando cabala, incursionando na alquimia e toda sorte de manifestações místicas e esotéricas, até converter-se ao Sufismo, vertente gnóstica do lslamismo que, como la Eberhardt, praticou devoto até o fim de seus dias.                     

Sua obsessão em reinventar-se continuamente incomodou seus biógrafos. Não há dúvida que o Oriente foi sua melhor encarnação; se preferirmos, seu melhor papel.

Mas afinal, qual impulso foi o mais marcante na construção dos personagens de Burton: o espião a serviço do imperialismo britânico, ou a alma aflita do aventureiro europeu que em sua busca espiritual viu-se obrigado ao disfarce nas duas direções, do Oriente e do Ocidente? Em “The Devil Drives: A Life of Sir Richard Burton”, sua biógrafa, Fawn M. Brodie, adverte que Richard Francis foi “a man perpetually at war with himself, a man of action opposed to a man of letters, a man of the sword and a poet, a bawdy swashbuckler, a libertine a seeker tormented by the secrets of sexual vigour”.  Michel Le Bris, prefaciador da edição francesa da biografia, adverte para “o talento latente como nenhum outro, de disfarçar-se, assumindo diferentes personalidades, assimilando outras culturas, penetrando estruturas sociais alheias”.

Em sua angústia existencial, Richard Francis Burton valeu-se de seu talento para a interpretação, a reinvenção de si mesmo, seus personagens na vida real. Desse talento aproveitou-se o Império Britânico. Contudo, a ironia pungente dos travestimentos de Burton, iniciados na condição de espião, é que resultam quase sempre em tiro pela culatra para o Império: como explorador autocrata ele odiava a escravidão, como herói da hipocrisia vitoriana acreditava nos benefícios da poligamia e, pelas vias do erotismo tântrico, emerge o Burton sufista. Mas sem jamais deixar de admitir que a idéia de um Deus – essa entidade severa e monoteísta, urdida na solidão dos desertos – fosse mesmo uma idéia fora de ordem.

Por isso, em Revelações, o último capítulo de “O colecionador de mundos”, o vigário italiano resiste em dar a extrema unção e os óleos ao moribundo e, antes de autorizar seu sepultamento no cemitério cristão, assedia o jardineiro com intermináveis interrogatórios sobre a conduta espiritual daquele que abraçara o mundo e tinha a expressão do demônio. Não o demônio da luxúria, mas o temível satã simbolizado pela meia lua flutuando sobre o Levante, ruminava o vigário.

Charada: por que as bandeiras do Islã são de cor verde? Talvez porque o verde seja a cor da ausência. Ele simboliza o vasto oásis, o frágil e fértil Ocidente a conquistar – mas nisto o orientalista Burton não tinha pensado. Nem Muhamar Gadhafi. 

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