Aracy e João Guimarães Rosa, Hamburgo, 1939
Carta Aberta ao Paraná
– Via Coluna Aroldo
Murá
O que segue, é
uma triste evocação do que o poeta e dramaturgo alemão, de origem dinamarquesa,
Friedrich Hebbel, dizia da insuficência e parvidade humanas: "Toda...
mediocridade na poesia acarreta hipocrisia no caráter e na vida."
A rigor, a
descrição do episódio caía como luva sobre a cerimônia de distinções a
personalidades do Paraná com a medalha da Araucária, ocorrida em dezembro
passado, que acompanhei em sua coluna, mas daqui, da orla do Pacífico. Decidi,
então, esperar a poeira baixar e, principalmente, não afugentar os good spirits, pois era dia de festa e você,
um dos galardoados. Nesse meio tempo, renasceu o Senhor, nos quatro cantos do
planeta acabam de esbaldar-se em bacanais dionisíacos e, fiel aos dislikes da Quaresma, já estando prestes
a crucificá-Lo de novo, mando-lhe minha estocada no imperdoável.
Faltou uma
figura humana insubstituível naquele pódio de bravos paranaenses, Aroldo, que,
como você, foram vestidos pelo governador de turno, com a Comenda da Araucária.
Faltou Aracy Moebius Tess de Carvalho,
“ Ara”, a esposa do mestre Guimarães Rosa, que lhe teria arrancado lágrimas de
ternura. Mas não poderia ter faltado sob qualquer pretexto, por isso, há exatos
dois (!) anos, sugeri ao governo do Paraná, que não perdesse tempo em trazê-la
a Curitiba e homenageá-la como a rara e emblemática Heroína, mundo afora
conhecida como o “Anjo de Hamburgo”. Contudo, Curitiba traz nas entranhas a
maldição, não dos anjos caídos, que são estóicos, mas dos santos pequenos da
mediaria, sempre de costas para os Tempos e a História, deformação congênita
que seus administradores tentam encobrir com ícones ladinos de capital de
muitas mentiras; “primeiro-mundistas”, “europeias”, “ecológicas”, o escambau.
Como você sabe,
em 2010 a editora Record me encomendara o romance “O Caminho de Tula”,
narrativa sobre o pano de fundo histórico do nazismo, que se desloca entre a
Alemanha, a União Soviética e o Brasil, e temperada pelo olhar de um jovem que
após a morte de seu pai, descobre sua verdadeira trajetória, com o acesso aos
autos de um processo de “des-nazificação”, de 1948. O livro, embora em nada
datado, exigiu-me pesquisa que editor nenhum vai me pagar, e umas das tramas
paralelas brinca com a estória de um personagem algo mítico, que segundo o
próprio Guimarães Rosa, realizou a “mãe de todas as traduções”, para o Alemão,
do clássico “Grandes Sertões. Veredas”: Curt
Meyer-Clason.
Conheci-o em
1975, eu, estudante de Cinema em Berlim, “visitando” a “Revolução dos Cravos”,
ele, então diretor do Instituto Goethe, em Lisboa. Em 1976, a Rádio SFB, de
Berlim, enviou-me novamente a Lisboa, desta vez para gravar um programa sobre o
papel dos escritores durante a derrubada do fascismo. O programa foi ao ar com
o título “Motim no Café Lusitânia”, pontilhado de longas entrevistas com três
Josés, todos já saudosos: o imperdível José Cardoso Pires (“O Defilm”), o
titânico poeta José Gomes Ferreira, e José Saramago, ainda algo desconhecido, a
quem entrevistei em sua própria casa. Os contatos e a articulação, todos, me
foram auspiciados por Meyer-Clason, que, como tradutor genial de “Cem anos de
solidão”, de García Márquez, estava traduzindo para o Alemão e divulgando
Europa afora a poderosa plêiade de escritores
portugueses censurados pela ditadura fascista – com esses repentes de
solidariedade aos “comunistas”, estaria Mayer-Clason exorcizando seus próprios
fantasmas?
Mas o que essas
tramas paralelas da ficção têm a ver com a figura de Aracy, como filha de pai brasileiro e mãe alemã, nascida em 1908, em Rio
Negro? Ocorre que
a História real acabou unindo indissoluvelmente os caminhos de Aracy e de
Meyer-Clason: ela, fugindo ao preconceito da mal vista “mulher separada”,
abandonando o Brasil em 1935, com destino a Hamburgo, e, em sentido inverso,
Meyer-Clason, deixando o norte da Alemanha no final da década de 1930, para
fixar-se no Brasil como corretor de commodities
brasileiros e argentinos, que exportava para a Alemanha. Até que, no início da
Segunda Guerra, a polícia política de Getúlio Vargas flagrou Meyer-Clason em
atividade ilícita: ele se desempenhava como agente da espionagem alemã! Atividade
nunca provada em seus detalhes, mas que lhe custou cinco anos em um campo de
concentração na Ilha Grande, Rio de Janeiro, onde outro intelectual alemão –
homossexual e esquerdista, a policia de Filinto Müller não fazia distinção
entre seguidores e opositores do nazismo, prendia todos! – o despertou para a
Literatura. Em “Äquator”(Debaixo
do Equador, 1986), M.Clason narra sua metamorfose, de corretor de cereais para
amante da Literatura, e de suposto agente nazista, para apaixonado pelo Brasil;
não guardara rancores. Em 1995, publica “Die große Insel“ [A
Ilha Grande], como indifarçadas memórias do
cárcere, elégico título do romance de Graciliano Ramos, outro “hóspede” da
grande ilha, libertado em 1937.
E Aracy, o que
fazia? Morando com uma tia alemã, conseguira emprego como secretária biligue no
Consulado Geral do Brasil em Hamburgo. A famigerada “Noite dos Cristais”
desencadeara o progrom anti-semita dos sicários de Hitler, e a despolitizada,
mas nada boba, Aracy, não teve dúvidas: começou a ajudar os judeus que batiam à
porta do consulado, em busca de um visto para o Brasil. Sua “ajuda” tinha um
pequeno problema: o cônsul brasileiro era simpatizante dos nazistas e o Itamaraty
seguia à risca a Circular Secreta 1.127, que proibia a concessão de vistos a
"semitas" . A Aracy ocorreu um ardil:
recebia os judeus na ausência do cônsul e contrabandeava os formulários dos
vistos para a pilha da papelada a assinar pelo cônsul, sempre faltando poucos
minutos para encerramento do expediente; pelo qual o cônsul já ansiava,
desatento. À atividade subversiva veio somar-se o novo cônsul adjunto que chegara
a Hamburgo em 1938, logo se apaixonara pela bela secretária com sotaque de
“lêite quênte”, e abandonara sua esposa, deixada no Brasil: João Guimarães Rosa. Como a maioria de
seus colegas do Itamaraty, escritor nas horas vagas.
Juntos,
Aracy e o Rosa acabaram salvando a vida de dezenas (há quem estime, centenas)
de judeus alemães, que então emigraram ao Brasil. Única
mulher a ter seu nome escrito, em 1982, no Jardim dos Justos entre as Nações,
no Museu do Holocausto (Yad Vashem), em Israel, alguém já disse que a
historiografia brasileira não contempla esta mulher, conhecida pela comunidade
judaica por “Anjo de Hamburgo”, lembrada oportuna, mas tardiamente, pela
Presidente Dilma Rousseff em evento ocorrido no final de 2012.
Dona Aracy é uma personagem comovente da História, mas
também da Literatura por excelência, pois encarna exemplarmente a tríade espiritual
da heroína de mil faces: destemor, aventura e romance. Heroína que não perdera
o hábito, depois de retornar ao Brasil e perder o Rosa: vivendo no
apartamento do casal no Rio, em 1968, teve a pachorra de nele esconder o
compositor Geraldo Vandré, perseguido pela ditadura por causa de “Caminhando
(Pra não dizer que não falei de flores)”. Aracy era mesmo uma doida, na melhor
acepção do termo: no mesmo prédio moravam vários oficiais do exército, mas enquanto
a repressão, desorientada, caçava Vandré nas ruas, este compunha, incólume, no
sofá de Aracy. Foi o Dr. Eduardo Tess Filho, seu neto, que levou Vandré para
São Paulo numa Kombi. E de lá para o exílio.
Minha advertência ao governo Beto Richa, como você e seus leitores podem
inferir, foi feita mediante Ofício de 8 de fevereiro de 2011, entregue ao então
Secretário da Cultura, Paulino Viapiana (vide
anexo), através da Diretora Geral da SEC, Valéria Marques Teixeira, que
então me explicou, que a SEC com muita honra acolhia e intermediaria, mas que o
Palácio Iguaçu era o destinarário formal da sugestão.
Escrevíamos o início de
fevereiro. Em São Paulo, Dona Aracy beirava os 103 anos, em Munique,
Meyer-Clason, nascido em 1910, os 101 anos de idade.
Avisei ao Dr. Eduardo
Tess Filho, neto de Dona Aracy,
minha sugestão e o deixei de sobreaviso para a resposta do governo Richa. Passaram-se
semanas, quando recebi um telefonema de uma funcionária subalterna da SEC,
sugerindo que a Federação Israelita do Paraná “encabeçasse” o evento e avisando
que me chamariam da federação. Reagi estupefato: obviamente, como representação
da etnia mais vilipendiada em todo o séc. XX, a federação deveria participar do
evento, sentada em cadeira de honra. Vaticinei: por que será que os judeus do
Paraná tinham esquecido Dona Aracy. Me perguntei: será que um cidadão independente
tem que pedir “autorização” para entidade judaica, para homenagear um amigo dos
judeus? Por que essa competição imbecil por um assunto da máxima seriedade?
Questionamentos, todos, que, ainda por cima, poderiam detonar sobre minha
cabeça - na qual perdura a memória de uma avó judia! - a tão desgastada e
ridícula borduna do “anti-semitismo”, para quem ousa criticar Israel ou as
associaçõs judaicas, mundo afora.
Trocado em miúdos: a
federação jamais ligou, a SEC se esquivou, a Prefeitura de Rio Negro pediu “um
tempo” (um tempo?)... – enfim, o Paraná “esqueceu” da grande mulher, a provinciana de
Rio Negro, que tecera fios da Humanidade, pela primeira vez, unindo pelo cordão
umbelical, o Paraná ao ventre da História Universal. Mas para isso oferecendo
sua própria cabeça a prêmio.
Dona Aracy
morreu no mês seguinte, março de 2011, como amigo até o último suspiro do Rosa,
Meyer-Clason passou em janeiro de 2012.
Indigna-me essa
mediocridade de governo e instituições do Paraná.
Indigna-me a
preguiça e a indiferença do servidor público.
Indigna-me
terem “esquecido” de Aracy.
Indigna-me o pouco caso, a obstrução, a agressão à memória coletiva.
Indigna-me o pouco caso, a obstrução, a agressão à memória coletiva.
Por isso, um filme, tão logo seja possível.
Fotos: ilustração