Conto
Fui
uma criança sem avós.
Tocado por essa dolorosa falta, relato aqui minha amizade com o avô Hendrik Holler, a quem homenageio na véspera dos eventos que lembrarão os 100 anos da Primeira Guerra Mundial, a guerra que moldou o séc. XX.
Nossa
amizade começou em minha adolescência, com as narrativas da minha
mãe, na verdade todas muito deslumbradas, inpiradas por sua adoração
de garotinha temporona por um pai já quarentão.
Visitei
o avô Hendrick três vezes. Na primeira - eu tinha apenas treze anos
-depois de uma longa viagem à sua terra natal, fui levar flores ao
seu túmulo, que dividia com a vó Edburga. Na segunda, eu já
residia em seu país, e acompanhei Bilhildis, a mais velha de minhas
primas, residente na Oceania, durante uma incursão ao sótão
empoeirado do hotel abandonado dos nossos avós.
Anos
mais tarde, de volta ao Brasil, voltei a folhear um dos álbuns de
família e deparei-me com uma foto do avô, aqui contextualizado pela
História, mas todo emoldurado por mitos. Porque as narrativas
familiares são mitos, alguns engenhosos, outros, descaradamente
mentirosos.
De
todo modo, era uma fotografia memorável, em tonalidade sépia, sobre
cuja idade exata muito assuntei, porque no verso o fotógrafo vaidoso
esmerara-se em carimbar o nome de seu estúdio, mas omitira a datação
do instantâneo.
Não
tive dúvidas, furtei-a do álbum da minha mãe e reproduzi-a numa
crônica de jornal, que depois se perdeu. E para desgraça, a
fotografia também desapareceu, que aqui mal troco por um postal da
época, que ilustra a cena da despedida. Motivo pelo qual cabe ao
leitor decidir, se quer mesmo acreditar nessa estória,
tornando-se meu cúmplice.
A
propósito, percebo neste momento que a predominância de álbuns de
uma das linhagens da família sobre a outra, aos poucos vai se
impondo como a história oficial, sutil e dirigida, até reinar como
micro-política dos clãs interesseiros. É o que sugere a profusão
de álbuns da família da mãe em detrimento de imagens da família
do pai. Talvez seja essa a explicação para a ausência de
fotografias do pai do meu pai, o avô Nörgel, palavra que em
português pode significar ranzinza, chato, enjoado ou rabugento.
Segundo a avó Johanna Charlotte, sua esposa, ele era tudo isso, mas
quando moço também fora belo, por isso casara-se com ele.
Durante
uma pesquisa, muitos anos mais tarde, descobri que, por volta de
1935, o avô Nörgel se inscrevera como membro no partido nazista, o
que por outro lado não o impedira de proteger a esposa, que não era
ariana pura, segundo o padrão sanguíneo exigido à época.
Mas
não quero perder tempo e me apresso em descrever a foto do meu avô
heroico, o Hendrik.
Trata-se
de um instantâneo da 1a. Guerra Mundial, que terminou em 1918, mas
foi retomada vinte anos depois pelos mesmos senhores, dos quais a
vovó Johanna Charlotte teve que ocultar sua árvore genealógica.
Na
fotografia ausente, o avô Hendrik veste uniforme da infantaria do
exército do Kaiser, cujo acabamento, sobre a cabeça, é um morrião
prussiano, capacete encimado por um espeto metálico, de aspecto
tenebroso. Imaginado como insinuação de derradeiro recurso,
inventado pelos alfagemes para o caso de perda total das armas de
assalto, parece sugerir ao combatente, virtualmente rendido que,
tomando impulso e utilizando a própria cabeça como aríete,
literalmente cravará o inimigo aturdido contra o tronco de uma
árvore ou qualquer anteparo que resista à estocada.
Respirando
fundo após este assombro, voltemos então a contemplar o conjunto da
foto, marcado por três particularidades. A a primeira é a presença
da minha avó. Depois estão as botas do avô, surradas e
empoeiradas, o que poderia significar que ele não quis engraxá-las
para a grande carnificina. À primeira vista, o terceiro pormenor
tenta esconder-se como acessório desimportante, na verdade ocupando
posição central na imagem: um fuzil com carregador lateral, de
alavanca esférica, cuja coronha descansa no chão. E quem prestar
atenção, percebe um jogo de intenções duvidosas do fotógrafo,
que Roland Barthes certa vez chamou de punctum: um
território minúsculo e resvaladiço, cujos elementos podem
significar várias coisas ao mesmo tempo. Ao lado do cano do fuzil,
com sua mão direita, a avó empunha um buquê de flores, e por mais
que o olho vigilante forceje em localizar com exatidão a posição
do buquê, é impossível dizer com certeza se o buquê se encontra
ao lado, ou se está mesmo enfiado no cano do mosquetão. Estivesse
metido no cano, e sinalizaria um protesto sutil. Não se sabe, se
protesto da avó ou do casal, ou se foi mesmo ato falho - falho, mas
pacifista, que é o que interessa.
E
jamais sabendo da intenção do fotógrafo, nem da dos avós, o
“Retrato do meu avô indo à guerra” entranhou em mim essa imagem
ao mesmo tempo ambígua e simpática do meu avô materno.
Já
da avó Edburga, ou Edda, para os íntimos, não posso
afirmar o mesmo, pois ela não sorria naquela foto, nem em qualquer
outra das que minha mãe costumava contemplar quando a saudade lhe
apertava o coração. Talvez a foto tenha captado o desconsolo
da avó com a partida do marido para a guerra, quiçá fosse tristeza
pelo final de uma breve licença do front. Muitas dúvidas atiçam a
imaginação.
A
única fotografia na qual a avó Edburga sorri – e não me
atrevo a dizer vó Edda, pois sempre tive dúvidas de
pertencer ao seu círculo íntimo, tal a distância que seu olhar
impunha entre seu corpo ausente e o meu - o único sorriso, como
dizia, é o do dia de seu casamento, ocorrido catorze anos antes
da fatídica guerra.
Invejo
saudavelmente esta Cena de um Casamento de Hendrik e
Edburga, ocorrido em 1900, a tal ponto gratificado, que ouso afirmar
ter sido seu muito particular Novecento, com tantas
horas de festa como foram as longas horas do grandioso filme.
A foto é uma relíquia há muito guardada por uma de minhas primas, que certo dia resolveu compartilhá-la, pelo que muito lhe agradeci, pois não sabia que a avó Edburga fora tão bela - eis um recorte dela no destaque, ao lado de Hendrik Holler: a insofismável encarnação de Faye Dunaway, antes de sua carreira de assaltante em "Bonnie & Clyde"!
Apesar
dessa estranheza em nosso relacionamento, sempre apartado por aquele
mar imenso, nunca deixei de lembrar a vó Edburga com sincero
respeito, pois se nomen est omen, como inferiam os
romanos, alertando que a antonomásia era sempre expressão acabada
do caráter e da reputação de uma pessoa, então a avó fizera
jus ao significado de seu nome, que entre os antigos queria dizer “a
mulher que zela por suas posses”. Posses que o espírito mal
assistido do seu marido imaginara todas destruídas, mas que ela
conseguira multiplicar em sua ausência.
A partir desse dia, comecei, por assim dizer, a dar asas à foto, puxando o avô
para
fora da moldura, caminhando de mãos dadas com ele em passeios
imaginários.
Passeios na verdade roubados dos relatos de minha mãe,
resgatando
seus cinco, seis anos de idade, durante andanças pausadas com
o
avô
às margens do Werra, geralmente acompanhados de seu cão de
caça, que
salivava,
mal divisava uma daquelas lebres, mas que no olhar
justiçoso e silente
de
Hendrik Holler entendia a proibição, baixando as orelhas,
enfastiado.
Nessas
apropriações do avô eu costumava sofrer um conflito que não tinha
cura,
pois
ao imaginar as paisagens dele, dava-me conta que não as conhecia.
Já,
puxando o avô para fora da moldura, era ele que não cabia na minha paisagem,
pois seu olhar buscaria bétulas e carvalhos, só encontrando ingazeiros e
aroeiras.
Sempre invejei este pai à minha mãe, tão diferente do meu próprio,
frequentemente escondido atrás da página aberta de um jornal.
Mas
falando a verdade, eu o preferi sempre como meu avô, tão distante,
intangível, talvez por isso tão mágico. Porque os pais da gente
são os que nos mostram o caminho das pedras, nos preparam, como
afirmam, e depois nos disciplinam e põem de castigo. Não assim os
avôs. Estes são um misto de prestidigitador de plateias e
feiticeiros, que aos netos ensinam a ver e a lapidar a alma
Ver o que não se vê, ou se percebe com um sexto sentido. Me
explico: tomam nossas mãos em suas próprias, calejadas, e saem a
passear, a cada tanto interrompendo a caminhada para chamar atenção:
o cochicho íntimo da brisa com as folhas das árvores, o murmurejar
de um córrego narrando às pedras sua acidentada viagem, uma ave
planando no azul etéreo como fosse sustentada por mão invisível –
sim, dizia o avô, naqueles detalhes da vida estava sempre metida uma
mão indecifrável.
A
propósito, aqui cabe um aparte: Holler não era o sobrenome
verdadeiro do avô Hendrik. A este fizera jus, segundo as narrativas
mais infundidas, porque nascera ali no Alto Meissner, território de
miscigenação entre celtas e germânicos, a cujos pés ainda jaz o
Lago de Frau Holle, anos antes do nascimento de Hendrik imortalizado
em um conto pelos Irmãos Grimm.
Desde
tempos imemoriais, os nativos juravam volta e meia surpreender às
belas ninfas que suspeitavam emergir de suas profundezas e banhar-se
nuas em pelo às suas frondosas margens. O lago, assim segredavam as
velhas parteiras, era o poço da iniciação da mulher em seu corpo,
e também fonte de sua fecundidade. Por isso, mulher que desejasse
engravidar, melhor fizesse uma oferta em moedas de ouro à entidade!
Incursionar
no labirinto encantado da Senhora Holle me desviaria do curso da
presente narrativa, mas dito seja que, um belo dia, o avô Hendrik
escapara com um amigo para um inadvertido passeio à sua terra natal,
onde beberam além dos seus fígados. A noite já andava alta quando
decidiram retornar, mas não sem antes deterem-se às margens do
lago, no qual Hendrik, que ainda não era meu avô, lançou algumas
moedas de ouro. Quando finalmente alcançou sua casa, à cuja porta o
esperavam a esposa aflita e a polícia alarmada com seu
desaparecimento, com grandes olhos encharcados de aguardente da benta
cereja Kirsch, Hendrik teria confessado à esposa "Edda,
joguei três moedas no lago da Frau Holle – agora é com você!".
Indignada, a avó cravou seus olhos zombeteiros nos dele, pois não
acreditava na imaculada conceição.
Nove
meses depois nasceu minha mãe.
O
avô Hendrik, contou-me a prima Bilhildis, era também possuidor de
um belo repertório musical que divertia seus netos, a ela e meus
outros primos e primas. Quando inspirado, costumava colocá-los no
colo e tocar canções ao piano. Não lembrava se de Schubert, mas
certamente cirandas, e de vez em quando uma daquelas Lieder
que romanceavam a paisagem, os caminhantes e um rombo no coração
– ferimento, talho, tristeza que muitas vezes não tinha nome nem
remédio.
Ferimento
que no avô tinha nove anos de tamanho.
Depois
da convocação, em agosto de 1914, despedira-se da vó Edburga na
estação do trem, apinhado de milhares de jovens como ele, metidos
em uniformes e armados, mas estranhamente alegres, como se partissem
para uma festa. "Beber uma champanhe em Paris!", zombavam
alguns grafites rabiscados com giz nas paredes dos vagões – tal
era a algazarra pela ingênua crença em uma rápida expedição
punitiva a oeste do Reno.
A
excursão duraria quatro longos anos, durante os quais Hendrik Holler
guerreou em trincheiras da Bélgica e depois da França. Trincheiras
fétidas, ensopadas de barro, medo e excrementos. Intermináveis
noites de inverno gélido, cortadas por estampidos, ataques com gases
letais, gritos e silêncio súbito.
A
morte tinha muitas faces, aprendeu Hendrik Holler. As trincheiras
transmutaram-se em valas comuns de corpos mutilados e putrefatos, que
não tinham conseguido alcançar Paris para um brinde ao Kaiser.
Milagrosamente,
Hendrik Holler, combatente em Verdun, conseguiu sobreviver a
abominável carnificina: foi preso em Armentiéres, com uma baioneta
britânica apontada contra seu peito esquerdo, conduzido ao Havre e
de lá embarcado à Ilha de Man, no Mar da Irlanda.
Durante
outros cinco eternos anos, foi mantido prisioneiro de guerra no
Knockaloe Camp, de onde enviou inspiradas cartas à esposa, que
excitam qualquer editor, tal sua criatividade.
Quando
em 1923 baixou do trem, em sua terra natal – não sem antes
excursionar às fabulosas ruínas de Glastonburry e, panteísta
convicto, extrincar a fraude do Santo Graal –, trazia no ombro um
pobre bornal repleto de pão seco, que ingenuamente guardara para os
seus, na Alemanha, preferindo ser consumido pela fome.
Contudo,
ao ser recebido pelas fanfarras e a faixa que dizia "Bem vindo
Hendrik Holler, tua cidade te saúda!", encomendadas pela
esposa, perfilada com os quatro filhos, bem vestidos e nutridos, o
que ainda não era meu avô caiu em profunda depressão ao cruzar o
umbral da porta do hotel que com o seu e o sacrifício de Edburga
conseguira inaugurar antes de partir ao front.
Perturbado,
porque não queria caber em seu coração já apertado, que a esposa
não apenas preservara, mas visivelmente duplicara seu patrimônio
familiar. Já ele sentia-se um zero à esquerda. Um nada.
Por
isso, quando tropeçou nos degraus da entrada do hotel, com o
fígado encharcado e a alma lavada, dizendo à esposa que lançara
três moedas de ouro ao lago da Senhora Holle, se sentia finalmente
reconciliado. A partir daquela noite, me confiou Bilhildis, Hendrik e
Edburga voltaram a dormir no mesmo quarto.
Escrevia-se
1925.
Sete
anos depois, os camisas-pardas tomavam o poder. Este foi o assunto de
uma conversa acidental com minha mãe. "E os judeus?", perguntei-lhe, "o
que lhes aconteceu?", pois lembrava-me de uma rua na cidade que se
chamava Judengasse - "Ruela dos judeus", escrita assim,
com uma oitava de desprezo.
Esse
era sempre um tema espinhoso para minha mãe e sua geração dos
vencidos e muitas décadas depois ainda inconformados. Mas então ela
me falou de Natan, o mercador de cavalos, homem muito simples, que
vivia com sua esposa e numerosa prole numa casa da calçada oposta à do avô
Hendrik.
Como
dizia, em 1933 os camisas-pardas tomaram o poder, e suas milícias, as
SA, começaram a infestar os campos e as cidades. A invadir casas,
destruir lojas, maltratar judeus – judeus, mas alemães!,
indignava-se o avô Hendrik, em cujos dedos somados não cabia o
número de camaradas judeus mortos nas trincheiras de Verdun!
Numa manhã cinzenta, Hendrik Holler viu quando Natan atravessou correndo a rua, em direção
ao restaurante do hotel, mas evitando a entrada principal, para não
causar espanto aos comensais engravatados e suas damas, reunidos em
torno das mesas. Educado, apresentou-se na cozinha, esbaforido, a carranca
pálida como a cal.
O
avô entendeu tudo sem trocar palavra com o vizinho. Chamou-o ao
lado, sacou do bolso um maço de cédulas de dinheiro, apanhou o lápis
preso entre o crânio raspado e o lóbulo da orelha, pediu um pedaço
de papel à criadagem, rabiscou algumas linhas e um endereço, e
entregou o dinheiro e o bilhete a Natan, apenas dizendo: - Junte sua
família e algumas coisas e caia fora, não perca tempo!
Foi
o que minha mãe me contou.
Juro
com a mão direita sobre a bíblia sagrada - se quiserem, sobre o alcorão - que a foto
do avô indo à guerra existiu, ou existirá ainda nas mãos de
algum velhaco mercador de antiguidades.
Se
meu relato é a única versão plausível para minha existência -
pois Hendrik Holler engravidou minha avó – admito não ter certeza de
nenhum desses episódios, pois todos me foram narrados por vias
duvidosas.
Fotos: divulgação
3 comentários:
Embarquei na tua narrativa, viajei, sorri e fiquei me perguntando como devem ser as asas de tua imaginação, tamanha é a sensibilidade que transparece em teus escritos!!! Seja realidade ou ficção, ou uma mescla delas, o fato é que a história dos teus avós, assim narrada, a partir de uma fotografia bela e perdida e das posteriores ou anteriores descobertas e investigações, ficou uma beleza! Agradeço e deixo abraços alados.
A tua escrita envolve criatividade, imaginação, sensibilidade, beleza, envolve-nos e transporta-nos, és um escritor Frederico, mereces dedicar-te apenas a sê-lo...
Desejo imenso que encontres a palavra mágica....ainda mais ter cristalizado esse futuro
madrugadas adentro...
és um artista das palavras, este maravilhoso texto sobre o teu Avô é enternecedor..fica o mistério, a essência da Pessoa que literalmente captou o meu coração e o desfez...
Postar um comentário