10 janeiro 2012

Manoel de Andrade - O jangadeiro *


Reprodução da série "Jangada do Nordeste", 
 de Candido Portinari

      Quando tomei o rumo do nordeste, conhecia muito pouco do meu país e do meu povo. Foi uma inesquecível aventura de trinta dias, desde Curitiba até São Luís do Maranhão, pelo litoral e a volta pelo sertão, num percurso feito num fusca cobrindo quatorze estados brasileiros que totalizou, com o regresso, quinze mil quilômetros.

      Para um brasileiro do sul, o nordeste era, quarenta anos atrás, um país à parte. Outro clima, outra vegetação, outro povo, outra maneira de expressar-se musicalmente, poeticamente, religiosamente. Outra maneira de ver e de sentir a vida, um sentimento trágico e telúrico do seu mundo, vivenciado num cotidiano de abandono e, paradoxalmente, de esperança. Desde a escola, vamos formando sobre os nordestinos uma imagem de valentia e sofrimento, resignação e uma admirável perseverança na providência divina. Nossa História contava sua luta contra os invasores holandeses, sua heroica resistência na Guerra de Canudos e a tradição popular narrava as façanhas do justiceiro Lampião e seu bando de cangaceiros. Mas contava também de um nordeste cuja imagem nos chegava pelas notícias das inundações catastróficas e pela calamidade das secas. De todas as aventuras que passei, acontecimentos insólitos que presenciei, pessoas excepcionais que conheci e dos tantos fatos inesquecíveis, trago ainda, nas paisagens da memória, a expressão grata e audaciosa de dois retratos humanos: o jangadeiro do litoral e o vaqueiro do sertão.            

      Era meu primeiro dia em Fortaleza. O sol baixava avermelhado e a ventarola do carro me soprava o ar acariciador da brisa marítima. Passavam das seis da tarde quando cheguei à praia de Iracema, imortalizada pelo romance do escritor cearense José de Alencar. O mar quase calmo, de uma escura cor alaranjada, refletia as tonalidades metálicas do horizonte onde a luminosidade agonizava nos esplendores do crepúsculo. Todo o ambiente estava carregado dessa atmosfera aromática e refrescante que baixa no entardecer dos trópicos. Nas mesinhas dos bares as pessoas  chegando e eu estacionando o carro para buscar o meu lugar. Barracas com tapioca, milho cozido e outras comidas típicas.  Acabava de entrar no centro da capital do Ceará e estive ali sentado numa daquelas mesas ao ar livre por algum tempo.  A água de coco, o sabor gostoso dos petiscos, a conversa animada dos demais, meu solitário encanto, os novos passos da minha longa aventura Depois cruzei a rua e dirigi-me para a praia.  Ali estava Iracema, com sua intimidade de praia pequena, sua areia finíssima e branca, fazendo justiça à fama que tinha pela sua beleza. Havia muitas jangadas na areia e algumas chegando, ao longe. Acheguei-me a um grupo  de jangadeiros que  conversavam em torno de um varal de redes onde alguns deles consertavam os  furos das malhas.

      – No Rio Grande do Norte vi algumas jangadas, mas eram bem menores que estas,  disse ao homem fornido, de uns cinquenta anos, com um aspecto digno e comunicativo, estampado num rosto de bronze marcado por profundas rugas que corriam bem vincadas entre  os pômulos e a boca.
       – É que o Ceará é a terra dos jangadeiros  --- exclamou ele sentando-se na borda de uma daquelas frágeis balsas de cortiça. Voltou a olhar-me, perguntando:
       – De onde vem?
       – Do Paraná  – respondi.
       – E  que o traz tão longe? Não parece turista. – Comentou certamente vendo minha imagem empoeirada e em desalinho.
      – Conhecer um pouco da nossa terra e especialmente o nordeste..., ouviu fazendo um gesto de aprovação com a cabeça. Aproveitei o momento de silêncio e perguntei-lhe:
      – E pescam muito longe?
      – Depende..., as jangadas pequenas saem de manhã e voltam à tardinha. Pescam entre dez e vinte milhas. Nós pescamos em alto mar, entre cinquenta e sessenta milhas da costa. Saímos num dia e voltamos no outro.
      – E se lá no oceano vocês pegam uma tormenta?
      – Já enfrentamos tantas, e muitas jangadas nunca voltaram. O mar tem suas manhas, mas nós crescemos em cima de uma jangada e se não pescamos, não temos como dar de comer aos nossos filhos.

      Impossível relembrar tantas conversas que tive com os jangadeiros durante os cinco dias que estive em Fortaleza. Todas as tardes eu voltava à praia de Iracema. Bebia a água-de-coco, enquanto meu olhar navegava com as jangadas que chegavam do horizonte, velas triangulares bojadas pelos alísios que, ao entardecer, sopram do mar. Na véspera de minha viagem a São Luís do Maranhão, fui jantar na casa de um chará, e por isso nunca esqueci seu nome. Manoel tinha lá seus quarenta anos e me levara, por alguns cruzeiros, a dar uma volta de jangada pela manhã e depois de uma cerveja, na chegada, já éramos amigos.  O caldo de peixe ainda fervia e seu aroma recendia no ambiente, quando cheguei ao anoitecer. Uma casinha de madeira, fogão de lenha e a privada lá fora, no quintal. Aquela pobreza digna que lembrava minha adolescência em Itajaí. A esposa, baixa, gorda e com o rosto cheio de sardas, falava pelos cotovelos e não se cansava de exaltar as virtudes de uma de suas filhas que estava por casar-se e era rendeira. O filho mais velho era também jangadeiro e antes da comida nos sentamos os três num banco sob um caramanchão de arbustos que havia em frente da casa, onde havia também um cajueiro e um pé de araçá. Presenteei meu amigo com uma garrafa da cachaça Pitu, que eu trazia desde Pernambuco e esse foi nosso aperitivo. Depois entramos para jantar. Sobre a mesa um panelão com caldo de garoupa e o pirão escaldado com farinha de mandioca enfeitado de coentro. Não tive vergonha de comer, relembrando os caldos de peixe, o pirão e o peixe frito com que alimentei minha infância na Praia de Piçarras, em Santa Catarina. Mas faltou o tomate e a alfavaca, temperos que, pelo que vi, não são muito usados no nordeste. Depois da sobremesa de rapadura voltamos satisfeitos ao caramanchão onde ficamos até quase meia-noite trocando nossas culturas. Quando me despedi uma das filhas de Manoel veio entregar-me uma garrafa com areias de várias cores formando um desenho horizontal do mar com várias jangadas.

      Quantas coisas práticas, estranhas e lindas ouvi naquelas três horas de conversa  sobre o mar e os jangadeiros. O jangadeiro é filho e neto de jangadeiro e essa descendência dificilmente trocará o mar pela terra. As jangadas menores medem três metros por oitenta centímetros e as maiores chegam a ter nove metros de comprimento por dois de largura. Manoel me disse que uma jangada pode emborcar, mas não submerge nunca, e as grandes jangadas podem suportar o peso de três a quatro mil peixes. Quando o sol nasce já navegam em alto mar. Às quatro horas da manhã já estão “botando pro mar” e no fim da tarde ou no dia seguinte “dão de vela” para a terra. Contaram-me que lá fora não se conversa, não se canta ou assobia. Qualquer som pode afugentar os peixes. O único que pode falar ou bramir sua cólera é o mar. Ouvir seu monólogo, sua voz de barítono, sentir seu balanço, sua quietude, sua dimensão horizontal, suas águas calmas beijarem carinhosamente seus pés, essa é a linguagem que fala à sua alma. Além da voz das águas, só o silêncio. O silêncio absoluto, a solidão perfeita. O silêncio que enfeitiça e purifica, um tempo absoluto, de que fala Bergson, sem cronologia, um tempo que dura sempre, que invade e  plenifica a mística  solidão do espírito.É o misterioso silêncio que domina e que liberta. Perdidos na imensidão do Atlântico, o jangadeiro se acostuma ao silêncio e à solidão.  São partes da sua grandeza. No sul diz-se que são supersticiosos, mas essa não foi a minha impressão. A sua pobreza e as arriscadas condições de trabalho fizeram dele um homem sem medo e sem outra crença que não seja a esperança de voltar com o que necessita para sobreviver. Manoel me contou histórias de grandes jangadeiros que eram chamados de mestres. Os relatos quase lendários contam de mestres que viram navios-fantasma atravessando por cima das jangadas e de estranhas canções que foram ouvidas em alto mar.

      Para o jangadeiro cada viagem é uma aventura que se renova. Sua vida é uma batalha diária contra o mar e contra o vento. Alguns não regressam nunca mais, contudo o mar será sempre a sua vocação irresistível e a fatalidade faz parte da sua opção pelo mar. Amará o mar por toda a sua vida e sua alma está vinculada a essa singular fidelidade. Os nordestinos do sertão emigram para as grandes cidades da região e para o sul do país, mas os pescadores jamais deixam o litoral. Simples, anônimo, solitário e destemido, o jangadeiro é um titã. É o gigante da costa nordestina e poucos navegantes em todo o mundo poderão igualá-lo em ousadia e destreza. Contudo, é um gigante esquecido. Em suas precárias condições de vida e apesar de ir buscar tão longe e com tanto risco o alimento para a população da costa, Manoel me disse que os jangadeiros não recebiam nenhuma atenção do poder público. Ao cabo de alguns anos, quando sua jangada apodrece, é quase impossível, para eles, comprar uma nova embarcação. Tem que lutar só, orgulhosamente só, contra o mar e a pobreza.

      Manoel contou-me a história, contada por seu pai, também jangadeiro, dos quatro pescadores que em 14 de setembro de 1941, saíram dali da Praia de Iracema, então chamada Praia do Peixe, e durante dois meses navegaram de jangada até chegar ao Rio de Janeiro, onde foram recebidos pelo presidente Getúlio Vargas. Disse-me, com orgulho, que aquela arriscada aventura, comandada por um grande amigo de seu pai, um jangadeiro de apelido Jacaré, deu muita fama aos jangadeiros cearenses e que os norte-americanos contaram a história dos “quatro homens e uma jangada” na revista Time, e que o ator Orson Welles fez um filme sobre a viagem. Que estranho, ouvir um homem simples como era, me falar do grande cineasta e me contar que era moleque quando  Welles apareceu em Fortaleza e que ele era um “gringo” muito dado e que vivia nos bares tomando cachaça com os pescadores.  Que chegou ali para filmar a primeira parte da histórica epopeia dos quatro jangadeiros que, navegando sem bússola, sem carta náutica e orientando-se pelo litoral e pelas estrelas, singraram as águas do Atlântico cobrindo a distância dos 2.381 quilômetros entre Fortaleza e o Rio de Janeiro onde foram para chamar a atenção do país e dos governantes para o estado de  pobreza e abandono em que viviam os 35 mil  pescadores do Ceará, sem nenhuma assistência do Ministério da Marinha, sem nenhuma aposentadoria que os amparasse na velhice e a grande  maioria deles morando em toscas palhoças.

      Lembro-me que já de volta a Curitiba, quando contei a alguns amigos jornalistas essa verdadeira façanha na história da navegação, um deles me contou outra grande aventura realizada, muito antes, em 1923, quando quatro jangadas, comandadas por um jangadeiro conhecido como Mestre Filó, se lançaram ao mar no Rio Grande do Norte e navegaram até o Rio de Janeiro para participar das comemorações do Centenário da Independência do Brasil. O poeta Catulo da Paixão Cearense imortalizou o fato num dos seus poemas.

*      (memórias do livro “O bardo Errante”)

5 comentários:

Isabela disse...

Que linda prosa carregada de poesia...

Clarice disse...

Que triste saber que depois de tantos anos eles ainda continuam completamente esquecidos e largados a sua própria sorte....

Anônimo disse...

Um prazer ter acesso a fragmentos de uma memória, daquele que viveu uma America Latina desconhecida e ignorada por muitos. Aguardamos ansiosos o livro. Parabéns ao poeta Manoel!
Leonora S. Lucchese Piovesan

Régis disse...

Para lá do texto que dá gosto saborear pelo sentimento que trás, fico aqui imaginando onde esteja o tal Manoel jangadeiro. Espero que tenha melhorado de vida com o tão falado crescimento Brasileiro, vivendo uma velhice garantida no seio da família . Mas tenho cá minhas dúvidas. Vejo sim o crescimento, mas também vejo muita desigualadade social que teima em permanecer diante dos meus olhos. Que eu esteja errado quanto as desigualdades.
Forte abraço "Maneca".

Anônimo disse...

Que lindas memórias e muito bem colocadas no seu texto.Também me reportei aos dias que passei em Fortaleza na companhia do Ildemar principalmente a tarde que estivemos na praia de Iracema, sentados a beira mar, apreciando o por do sol,os jangadeiros e suas jangadadas. Era uma paisagem bucólica e romantica ao mesmo tempo.Gostei de relembrar este momento através do seu texto foi muito bom. Parabéns Ilca