Ilustração: domínio público
Encostados no balcão da lanchonete da rodoferroviária de Curitiba, os dois amigos tomavam café da manhã. Trabalhavam na redondeza e se divertiam ouvindo trechos de conversas de pessoas desconhecidas que passavam pela estação. Quando o ônibus partia, se alguma mulher olhasse pela janela, os dois acenavam, jogavam beijos para a estranha e não raramente faziam gestos obscenos ou gritavam frases como: “- Não me abandone, meu amor! Volte para nossos filhos! Por favor não se vá” ou, pior, “Vai... vai embora sua piranha! Cadela sem vergonha! Vai viver com seu amante, vagabunda!”.
A infeliz fechava a janela constrangida enquanto os outros passageiros abriam a janela para ver e ouvir o que eles gritavam.
Outra diversão dos dois amigos era inventar diálogos a partir de uma frase que ouviam nas despedidas, colocando-a num contexto que não tinha nada a ver com a conversa.
Naquele dia, por exemplo, uma senhora cuja saia farta e florida entrava incomodamente nas nádegas também fartas, embarcou no ônibus da Reunidas e despediu-se de um homem mais jovem, dizendo “... e faça o que eu mandei!”. Um deles pegou daí e emendou: “Pode deixar, sua velha desgraçada. Vou encher sua filha de porrada”. E o outro complementou: “Ai benzinho, bate mais, assim, isso, mais, mais, gostosão!”
O viajante encostado no balcão da lanchonete, esperando um misto frio e um pingado, olhou para os dois marmanjos e balançou a cabeça, inconformado com aquela brincadeira de mau gosto.
O lanche do viajante chegou. O sujeito deu uma mordida, mastigou, fez uma expressão de quem está experimentando um sabor inesperado e olhou intrigado para o sanduíche. Tomou um gole do pingado, deu uma abocanhada maior, mastigou, mastigou, franziu a testa, mordeu de novo, engoliu e olhou interrogativo para o lanche. Repetiu isso várias vezes, até restar somente um terço do pão.
─ Moça, não tem queijo aqui nesse misto!
A garçonete pegou o resto do sanduíche que sobrou na mão dele, abriu-o e constatou que não tinha queijo. Mostrou para as outras moças. Cochichou no ouvido da amiga, dizendo que talvez o sujeito já tivesse comido todo o queijo. Uma delas cheirou o sanduíche e confirmou: “não tem cheiro de queijo”. A outra sugeriu dar uma fatia de queijo para o freguês ficar quieto.
─ Não quero uma fatia de queijo. Eu pedi um misto: pão, presunto e queijo. Entendeu?
A moça, tentando evitar discussões constrangedoras, lhe ofereceu mais um misto frio de graça.
─ Não quero outro! Quero o que pedi! Comé que fica meu prejuízo?
Sem saber o que fazer, a garçonete chamou o gerente, explicando a situação. Ele propôs descontar o valor da fatia de queijo. O passageiro descontente e indignado retrucou:
─ Não quero desconto. Fui enganado. Quero saber comé que fica meu prejuízo! Você não entende?
O gerente tentou acalmá-lo propondo devolver todo o dinheiro que pagara pelo sanduíche.
─ Não quero dinheiro! Você não entende? Você não pode me devolver o que nunca lhe emprestei. Você não pode me dar o que nunca teve. Você não pode desfazer o que nunca fez. Você não pode fazer nada. Eu só quero saber comé que fica meu prejuízo?
Os dois amigos pagaram a conta e voltaram para o trabalho, calados. Aquele trecho de conversa ficou martelando em seus pensamentos como prego em suas carnes.
Como é que fica meu prejuízo? Quem vai restituir o apetite depois de enganada a fome? Como preencher a falta do que nunca existiu? Como explicar a presença da ausência? Como cobrar uma dívida se não há devedor? O que dizer para alguém que passou dois terços da vida esperando encontrar sua “fatia de queijo” que nuca existiu? Quem vai me ressarcir o tempo, o gosto, a vontade, o prazer, a fome? Quem? Como é que fica meu prejuízo? Você me entende?
Um comentário:
Valeu Frederico. Acampanho teu blog desde o princípio (tenho-o linkado no meu). É sempre uma boa leitura, reflexiva, crítica e com imagens de muito bom gosto. Pra encher olhos e alma. Parabéns e obrigada pelo privilégio do espaço.
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