Reportagem
sobre o Festival Cielos del Infinito,
que no Estreito de Magalhães
desafia o centralismo cultural de Santiago do Chile.
Embora
Concepción, a segunda maior cidade do Chile, seja equipada com um
moderno e movimentado aeroporto, fui obrigado a viajar 450 quilômetos
ao norte, até Santiago, para embarcar em um voo ao extremo sul do
país. Enquanto pedia desculpas a Concepción desde as alturas,
durante o sobrevoo fiz as contas: tivesse embarcado ali, a passagem
teria custado um terço a menos e me poupado umas desesseis horas,
que o trajeto para Santiago, ida e volta, me cobraria a bordo de um
ônibus. Não fazia sentido algum, mas foram as condições impostas
pela empresa aérea ao Serviço Nacional de Turismo, o patrocinador
da minha viagem.
A
fonte deste desconcerto é o confuso centralismo geográfico,
político e administrativo do Chile. O governo Ricardo Lagos
(2000-2006) prometeu acabar com o anacronismo, mas não o fez. Sua
sucessora e atual presidenta em seu segundo mandato, Michelle
Bachelet, acolheu a proposta, mas a descentralização parece uma
utopia à mercê da inalcançável linha do horizonte.
A
cobra “aleijada”
Meu
destino era Punta Arenas, derradeira urbe em território chileno,
lcoalizada no Estreito de Magalhães, ligeiramente a noroeste de
Ushuaia, na Argentina, a cidade mais austral das Américas. Com a
duração de três - na volta foram quatro – horas, o trecho
Santiago-Estreito teve um quê de voo internacional, pois cobre
virtualmente a mesma distância de 3.000 quilômetros, que separa a
capital do Chile de São Paulo.
No
Estreito desaparece a Cordilheira dos Andes, acabam a Patagônia e o
continente americano, contribuindo para a percepção do “fim do
mundo”, ilustrada em 1520 com os apontamentos de Antonio Pigafetta,
escrivão de bordo de Fernão de Magalhães, quem cravou palavras tão
exóticas quanto remotas, como “patagones” e “tierra del
fuego”.
Se
mal recordo, foi John Steinbeck quem estranhou a espichada e sinuosa
geografia chilena, comparando: “it´s a country like a snake – é
um país semelhante a uma cobra”.
Porém,
a analogia de Steinbeck tem um aspecto insólito: a cobra é
“aleijada”, sua cauda está isolada do resto do corpo.
Pendurada
no extremo sul dos 4.260 quilômetros de costa, a Terra do Fogo
chilena não tem conexão terrestre com o resto do país. A RN5, que
ao norte desemboca na Panamericana, ao sul termina em Coyhaique, no
coração da Patagônia. Quem viaja de carro, terá que abandonar o
Chile e percorrer aprox. 1.200 quilömetros em território da
Argentina, retornando ao território chileno à altura de Puerto
Natales, e de lá percorrer
os 250 quilômetros restantes até Punta Arenas. Este percurso cobra
três dias de viagem, com uma segunda opção “mochileira” - de
ônibus, via Villa O´Higgins y El Chaltén (Argentina) – que leva
pelo menos seis dias.
O
que os motoristas experimentam em pleno séc. XXI, é uma irônica
repetição da História à cavalo, pois quando o conquistador do
Chile, Pedro de Valdivia, foi morto na Batalha de Tucapel, em 1553,
os colonizadores espanhóis curvaram-se à assinatura de um tratado
com os vitoriosos Mapuches, que em suas expedições rumo à
Patagônia proibiu-lhes a travessia da Araucânia. Durante trezentos
anos os espanhóis respeitaram o acordo, contornando a Araucânia por
via marítima, mas bastou a proclamação da independência, em 1818,
e a oligarquia chilena violou o trato, invadindo e loteando o
território Mapuche para colonos europeus.
Em
seu breve poema, “Patagonia”, Gabriel Mistral, Prêmio Nobel
chilena de Literatura, escreveu: "à Patagônia/ seus filhos
chamam de Mãe Branca/ Dizem que Deus não a quis/ por tão congelada
e tão remota".
“¡Santiago
no es Chile!”
Santiago
mais é problema do que solução para o Chile, que não é uma
república federativa, mas espécie de obsoleto “Estado unitário”,
com predomínio absoluto da capital.
Durante
a ditadura Pinochet o país foi dividido em 15 Regiões
administrativas, respectivamente subdivididas em províncias.
Legado
sem dúvida da era colonial, os “intendentes” - como são
chamados os governadores regionais – não são eleitos pelo voto
popular, mas nomeados pelo presidente de turno no palácio La Moneda.
Espécie de “capitães hereditários” tardios, executam à risca
os planos do governo central, sem espaço para ideias e projetos,
quem dirá orçamento próprio.
Com
aproximadamente 7,0 milhões de habitantes, a região metropolitana
de Santiago é a menor, mas a que concentra 42% da população do
país, e
que gera 44,0 % do PIB nacional, com taxas de crescimento que têm
superado os 6,0 % anuais. Enquanto o anacrônico cenário não muda,
Santiago também concentra mais de 41,0% dos investimentos públicos
em saúde, 34,2 % para a moradia popular e mais de 30,0 % para
infraestrutura viária.
“Contra
ventos e maré”: o festival “Cielos del Infinito”
Promessa
não cumprida pelos governos da era pós-Pinochet, a descentralização
ganhou as ruas com ruidoso movimento social no Chile profundo, que
cobra investimentos e valorização da identidade regional, com a
palavra de ordem “¡Santiago no es Chile!”, querendo dizer, o
Chile não é apenas Santiago.
Estas
distorções despertaram uma ideia em quatro jovens, liderados pelo
ator Antonio Altamirano e a jornalista e produtora Lorena
Álvarez:
naturais do extremo sul da Patagônia chilena, marcada por enorme
dificuldade de acesso a bens culturais, resolveram desafiar o
centralismo de Santiago com um expressivo evento cultural na Terra do
Fogo.
Em
2008, assim nascia o Festival
de Artes Cielos del Infinito, um
evento com características internacionais, empenhado em espantar,
durante uma semana ao ano, as intempéries neste fim de mundo –
seus ventos inclementes, temperaturas gélidas e a neve - que de
janeiro a dezembro açoitam o rosto de suas gentes. Ambicioso, o
projeto oferece mostras de teatro, cinema e fotografia e shows
musicais, Mas seu forte são as artes cênicas, em palco e na rua.
Licenciado
em Artes pela Universidade do Chile, com a iniciativa Altamirano
granjeou reconhecimentos e honrarias além-fronteiras, tais como o
título de “uma das 100 mais influentes jovens lideranças do
Chile” (revista El Mercurio, 2010) e um prêmio da International
Youth Foundation, em 2011.
Em
entrevista que me concedeu em um café de Punta Arenas, Altamirano
lamenta que, apesar de sua 9a. edição, todos os anos a produção
do festival volta à estaca zero financeira.
Como
de resto na América Latina, salvo a Argentina, também
no Chile o quesito “cultura” escreve-se com letra minúscula. Sua
parcela no orçamento do Estado é de pífios 0,4 %, dos
quais 37,7 % estão reservados para fundos concursáveis, com a
maior parte das inscrições concentradas em Santiago, sede de
museus, galerias, teatros e salas de espetáculos. Enfrentando esse
centralismo, todos os anos, o Cielos del Infinito deve
submeter-se ao edital do
Conselho Nacional da
Cultura
e das
Artes,
seu principal patrocinador, e solicitar ao Serviço
Nacional do Turismo (Sernatur) o financiamento de passagens
e alojamento das companhias de teatro e dos jornalistas convidados.
Teatro
sobre um mundo insuportável e de outro, possível, mas utópico
Em
2015, o evento contou com um público notável de 15.000 visitantes,
Embora impressionadas com o êxito, as mãos das autoridades locais
estão atadas para o patrocínio. Porém, os problemas se estendem à
infraestrutura. Como exemplo da precariedade, Altamirano cita o caso
do Teatro Municipal de Punta Arenas. Apesar dos 5,3 milhões de
dólares investidos em 2014 pelo erário para sua remodelação,
tornou-se um elefante branco com “mais de 90 pontos cegos”,
eufemismo que designa zonas de alto risco. O jeito foi escapar para
palcos de colégios, tais como o Liceu Público ou a British School
de Punta Arenas, com aproximadamente 400 lugares cada.
Contando
com o apoio simbólico de 42 organismos governamentais e privados,
na prática o evento é colocado em cena pela generosidade de 50
voluntários locais, sobretudo jovens estudantes de Punta Arenas.
Como sofrivel “sede” serviu-lhe em 2016 um restaurante
improvisado, emprestado pelo sindicato local dos pescadores
artesanais, no qual o chef
chileno
Rodrigo Urízar, que em Valparaíso dirige o pitoresco restaurante El
Peral, deslumbrou artistas e o staff com seus quitutes e iguarias,
tirados da cartola culinária com passes de mágica.
Em
sua 9a. edição, em novembro de 2016, o Cielos del Infinito deu um
passo audaz, expandindo seus eventos para as localidades de Puerto
Natales e Puerto Williams – a 50 minutos de voo de Punta Arenas –
e inaugurando uma parceria com Ushuaia, na vizinha Argentina.
A
segunda proeza consistiu na atração até o Estreito de Magalhães
de uma dezena de companhias nacionais e estrangeiras. Com
“Tú”(França), “Kamchatka” e “Fugit” (Espanha),
“Capitán” (Argentina), “Los Niños de Winnipeg” e “Nómadas”
(co-produções Chile-Espanha), “Clase” (Chile), “El Rey Mono”
(China) e “A Casa Vaga” (Portugal), o festival escolheu um elenco
de montagens do teatro contemporâneo não-comercial, que dialoga com
o parto, a História e a solidariedade humanas, mas dramatizam
sobretudo o modo de vida imposto pela doutrina neoliberal, os
desajustes e as decepções com a democracia formal, e as tentativas
de escapar à armadilha capitalista; encenações todas muitos
aplaudidas. Apesar do estranhamento de outro idioma no palco, o
público parecia conhecer por experiência própria essas vozes de um
mundo insuportável e de outro, possível, mas ainda utópico.
Teatro
português revisita o “Estreito”
Muito
bem recebida foi a peça “A Casa Vaga”, montada pelo Teatro
Experimental do Porto (TEP), a companhia em atividade mais antiga de
Portugal, fundada na década de 1950 por artistas e intelectuais
anti-fascistas, que desafiaram a ditadura Salazar com arrojadas
montagens de Arthur Miller e John Osborne, mas que jamais conseguiram
driblar a censura portuguesa com uma peça do “maldito” Bertolt
Brecht.
Com
ideia e figurino insólitos, “A Casa Vaga” narra a emigração de
três portugueses ao faroeste norte-americano, por volta de 1840, em
busca de melhores condições de vida e de trabalho. Politizados e
entusiasmados com a pregação das primeiras ideias libertárias, os
três vaqueiros lusitanos – entre eles uma personagem feminina –
ensaiam sua utopia, forçando um modo de vida livre do jugo
capitalista e das estreitas fronteiras territoriais. Mas então entra
em cena um pesonagem inusitado, vestindo terno e gravata , fumando
charuto e dizendo: “Isto aqui tem dono, e o dono sou eu!”. O
conflito é inevitável e culmina na morte do que reivindica a
propriedade. Que não por coincidência também é português, o que
pode ser entendido como metáfora nem tão sutil da luta de classes
em Portugal sob a égide do Capital e das instituições da União
Europeia. Porém, ainda que se insinue como acidental, a peça
termina com uma advertência grave: a morte do predador pode sujar de
sangue as mãos dos revolucionários bem intencionados!
Precursor do moderno teatro português, o TEP sobreviveu o fascismo e a consolidação da democracia. Entre 1998 e 2009, foi dirigido por Norberto Barroca, sucedido por Júlio Gago. Em 2012, a direção artística foi assumida por Gonçalo Amorim, encenador residente desde 2010, um dos atores e diretor de “A Casa Vaga”, com quem conversei em Punta Arenas.
Precursor do moderno teatro português, o TEP sobreviveu o fascismo e a consolidação da democracia. Entre 1998 e 2009, foi dirigido por Norberto Barroca, sucedido por Júlio Gago. Em 2012, a direção artística foi assumida por Gonçalo Amorim, encenador residente desde 2010, um dos atores e diretor de “A Casa Vaga”, com quem conversei em Punta Arenas.
Amorim
deverá retornar ao Chile em 2020, com um conjunto de obras em
co-produção com Altamirano, sobre os 500 anos do descobrimento do
Estreito.
Julio Popper, os "caçadores" e suas vítimas, Onas
Os
senhores do fim do mundo
Um mês antes da estreia do festival, Christine Barthe, conservadora do Museu Quai Branly de Paris, deu palestras em Punta Arenas e Puerto Williams sobre a exposição “Los espíritus de la Patagonia Austral”, que reuniu 150 fotos do sacerdote salesiano e antropólogo alemão, Martin Gusinde (1886-1969), documentando os últimos dias na Terra do Fogo dos povos Selknam (Ona), Kawésqar e Yagán, no início do séc. XX.
As imagens em preto-e-branco de Gusinde, expostas de outubro a dezembro de 2016 no Museu de Belas Artes de Santiago, têm o poder de fazer sorrir e chorar a alma, diante da beleza em estado bruto e os estertores dos povos do fim do mundo. Autor do clássico “Los Fueguinos” (1937), Gusinde não foi oportunista, registrando e “roubando” as imagens aos fotografados, mas tornou-se amigo deles e engajou-se em uma vã tentativa de salvá-los do extermínio.
O extermínio tornara-se crônica anunciada desde 1867, quando o presidente José Joaquín Pérez decide acabar com a colônia penal de Punta Arenas, declarar a vila como "porto livre" e atrair imigrantes europeus. A chegada ao Estreito do português José Nogueira, do judeu lituano Elias Braun Fucks, e do espanhol José Menéndez, mudaria para sempre a paisagem da Terra do Fogo e selaria o destino de seus milenares povos originários; um capítulo da História jamais pesquisado e virtualmente desconhecido em Portugal.Com mais de 4 milhões de hectares de terras concedidas gratuitamente pelos governos argentino e chileno, o trio Nogueira-Braun-Menéndez expandiu no sul da Patagônia o maior rebanho de ovelhas do mundo, foi proprietário de empresas de mineração, navegação e importação, e excerceu o monopólio da exportação de lã à Europa. Durante cinquenta anos, até a Segunda Guerra Mundial, com sua Sociedad Explotadora de Tierra del Fuego, foram os senhores do fim do mundo.
José Nogueira e Sara Braun
José
Nogueira e o “Estreito do extermínio”
Em
1887, um casamento por iinteresse unira Sara
Braun Hamburguer, filha de Elias, com José Nogueira,
viúvo de sua esposa portuguesa. O interesse girava em torno da
Sociedad
Explotadora
de Tierra del Fuego, fundada por Nogueira, e serviu de pano de fundo
para nova união de Sara com José Menéndez, após o falecimento de
Nogueira, em 1893. Herdeira da fortuna de Nogueira, em 1905 Sara
Braun inaugura o palácio construído pelo arquiteto francês Numa
Meyer como símbolo-mor do clã Braun-Menéndez e seu poder sobre as
vastidões da Patagônia.
Como Braun y Menéndez, pisou o chão da Patagônia sem capital nem outras posses. Porém, atento à movimentação de naves baleeiras inglesas, além de chalupas, das que saltavam legiões de homens armados com paus e escopetas para trucidar animais sobre o pedral do Estreito, sua perspicácia farejou um exelente negócio: a caça às focas e aos lobos marinhos.
É como lobero que Nogueira faz sua primeira fortuna, exportando para a Europa peles finas e azeites animais.
Estima-se que entre meados e final do séc. XIX foram chacinados à pauladas e tiros, mais de 300.000 lobos marinhos pelos caçadores ingleses, aos quais Nogueira servira antes de abrir seu próprio negócio.
O que o português certamente observara, mas dera de ombros, é que os animais constituíam a principal dieta marinha dos povos Ona e Yagán, que, desesperados, resistiam com seus arcos e flechas contra as armas automáticas do faunicídio.
Direto e feroz, o extermínio de Onas, Yagánes e dos Tehuelches, em terra firme, completou-se com o ciclo ovino. Milhões de ovelhas invadiam os pastos dos camelídeos nativos, como o Guanaco, subitamente cercados por arame farpado a perder de vista e reduzindo a pó e vento os rebanhos de carne dos povos originários.
Sem outra alternativa à inanição que derrubar as cercas e apoderar-se de alguma ovelha, agora Onas, Yagánes e Tehuelches tornavam-se objetos de caça das milícias de sicários contratados por Nogueira, Braun e Menéndez. Sua crueldade não desprezou requintes como a violação em massa de mulheres, o envenenamento de iscas de carne com estricnina e os fuzilamentos.
Caçador de ouro e índios, o imigrante romeno Julio Popper (vide foto) celebrizou-se como um dos comandantes do genocídio na Terra do Fogo em dezenas de documentos, mas sobretudo através da magistral novela “Corazón a contraluz”, do músico, poeta e escritor chileno, Patricio Manns.
Entre 1850 e 1916, foram executados a sangue frio 3.000 Yaganes e 3.500 Onas. Os poucos sobreviventes vegetaram em barracos da Igreja Salesiana da Ilha Dawson, usados em 1973 pela ditadura Pinochet como campo de concentração para altos funcionários do governo de Salvador Allende.
Conhecida como “a última Ona”, em 1966 faleceu na Argentina a xamã, cantora e contadora de estórias, Lola Kiepja. No entanto, muitos anos depois, durante a pesquisa para seu premiado documentário “El botón de nácar”, o cineasta Patricio Guzmán descobriu mais uma sobrevivente do genocídio em um pobre fiorde de pescadores do Chile: Cristina Calderón, cujo nome original perdeu-se no esquecimento.
Em uma cena sublime e enternecedora - The Pearl Button (El botón de nácar) - Language - a câmera focaliza a velha senhora produzindo um novelo de lã. Poderia ser uma metáfora do resgate da memória, que ela volta a desfiar, traduzindo para seu idioma nativo os nomes das coisas em espanhol.
É para ver e não parar de chorar.
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