Na
memória de Cusco
A
cidade de Cusco ficou na memória dos meus anos. Milenar e sagrada,
reservada e cosmopolita, a cidade engastada qual uma concha geológica
num rico vale entre montanhas de mais de três mil metros, foi a
capital de um reino que durou trezentos anos, e cujas obras foram
construídas para a eternidade. Pachacútec, Túpac Yupanqui e Waina
Cápac marcam a glória de um século em que o império se estendeu
da Colômbia até as fronteiras meridionais com o Chile e a
Argentina, abarcando parte da selva amazônica, numa extensão maior
do que o império romano. Cusco era a capital desse colosso
territorial, o ventre da pátria peruana e o berço da sua infância
nacional. Era a cidade viril, máscula, monumental. Quando Lima
nasceu, parida pela estratégia, a ambição e a vaidade espanhola,
representava a imagem da cidade feminina, moldada pelos caprichos e a
sensualidade dos conquistadores. Cusco, encravada nas alturas,
simbolizava a resistência, o palco espartano das grandes batalhas, a
imagem rebelde de dois comandantes: Túpac Amaru I e Túpac Amaru II,
ambos ali martirizados, em 1572 e 1781, respectivamente.
“Aquí
unificó pueblos y enseñó técnicas Manco Cápac, personaje
escapado de la leyenda que puso los cimientos del más grande imperio
de la América india. En Cusco nació y vivió “el
más grande hombre que há producido la raza aborigen americana” a
decir de Markham, refiriéndose al “transformador del mundo” a
Pachacútec. En esta cuidad se aposentaron los Pizarro y los Almagro
y varios de ellos dejaron sus huesos. Aquí también sucumbió el
incanato con el asesinato “legal” de Túpac Amaru en 1572 bajo la
mirada del duro virrey Toledo. Aquí nació la idea y la lucha
independentista peruana con Manco Inca que levantó al Perú contra
los españoles en 1536, y con José Gabriel Túpac Amaru en 1780.
En Cusco se gestó la idea y se organizó la expedición que
descubrió Chile, jefaturada por Almagro “el viejo”, (…); en
Cusco se organizó la expedición de Pedro de Valdivia para colonizar
Chile; en esta ciudad se organizó la expedición que partió hacia
Quito y luego el País de la Canela, descubriendo el Amazonas;
(…) La ciudad aclamó a Simón Bolívar después de la batalla de
Ayacucho.”[1]
Parecia
inacreditável estar finalmente em Cusco, a cidade atemporal e
histórica, lendária e real, fundada por Manco Cápac há mil anos,
capital de um império teocrático, cuja misteriosa origem pairava em
cada vestígio do tempo, no espírito da cultura, sobrevivendo nos
monumentos portentosos, nas imensas pedras lavradas, adornando os
grandes portais, pátios e arcadas. Depois chegaram os “deuses”
da Espanha, violentando seus santuários e abrindo seu relicário de
artes sagradas, construindo a catedral majestosa com seus dois
campanários, dominando toda a praça adornada internamente com a
simbologia da fé cristã. As demais igrejas, os altares dourados, o
esplendor dos vitrais da Igreja da Companhia, o Convento de Santo
Domingo, construído e reconstruído, depois do terremoto de 1950,
sobre as ruínas de Corikancha, o Templo do Sol. Eu agora
estava ali, no “umbigo” do mundo, refletindo a glória do período
de Pachacútec, seu filho Túpac Yupanki e a extensão do imenso
império, depois da grande vitória de Yahuarpampa sobre os Chancas e
a anexação do Reino Chimú. Um lustro de esplendor, domínio e
conciliação de tantas tribos. Cusco era a capital sagrada de um
mundo construído ao longo de cinco mil quilômetros de montanhas e
tudo ali, para mim, era magia, um poder sagrado encravado na paisagem
imóvel e eloquente da cidade, pronunciada pelo tempo como a mais
antiga da América e espiritualmente envolvida por uma secreta
religiosidade vinda não da religião dogmática dos conquistadores,
mas do passado panteísta do Tawatinsuyo,
onde o céu e a terra são representados na cosmovisão inca da
Pachamama, a Mãe Terra, e onde a política e a religião, o templo e
o palácio, o Sol e o Inca se identificavam no mesmo sentimento, na
mesma fé e na mesma submissão. Para
o habitante do Império, a religiosidade era vivenciada, diária e
incondicionalmente, na sua ética e na sua conduta social, muito mais
voltadas para o sentido agrário e material da vida, do que para
qualquer forma de transcendência. Mariátegui [2] que penetrou, com
precocidade histórica e, também, com genial precocidade
intelectual, no âmago cultural do problema indígena peruano afirma,
ao analisar o Fator
Religioso que:
“O
povo incaico ignorou toda a separação entre a religião e a
política, toda diferença entre Estado e Igreja. Todas suas
instituições, como todas suas crenças, coincidiam estritamente com
sua economia de povo agrícola e com seu espírito de povo
sedentário. A teocracia apoiava-se sobre o comum e o empírico; não
na virtude taumatúrgica de um profeta nem de seu verbo. A religião
era o Estado.”
[3].
Machu
Picchu. “Acreditará alguém no que encontrei?”
Dia
29 de outubro dce 1969, saí de viagem para Machu Picchu. O trem
correu a manhã inteira pelo Vale Sagrado, ziguezagueando, sempre
subindo, passando por regiões agrícolas, pomares, mostrando os
frutos negros do capuli, vales povoados de lhamas, salgueiros
debruçados sobre os cursos de água, altas encostas rochosas, o
estreito caminho beirando os precipícios, assustadoras gargantas,
corredeiras. Depois..., a descida para o vale do Vilcanota e a
exuberante vegetação que já anuncia a flora amazônica. No
decorrer da viagem viam-se caminhos e trilhas abandonadas, onde
corriam, séculos atrás, os chasquis,
os mensageiros do correio inca que atravessavam todo o império, do
sul da Colômbia até o norte da Argentina. A dois terços do
caminho passamos pelas ruínas da Fortaleza de Ollantaytambo e
chegamos a Águas Calientes, onde todos descem para almoçar e
comprar lanches e onde desembarcam quase todos os indígenas. Poucos
quilômetros adiante, por volta de treze horas, o trem chegouem Machu
Picchu, com uns trinta turistas. Tudo era muito precário. Pagava-se
uma pequena taxa e subia-se uma longa e empinada escadaria até o
plano das ruínas, onde um jovem recebia o boleto num pequeno portão
de entrada, dizendo que a visita se encerraria às dezessete horas.
Não havia guia para explicar a disposição dos monumentos, mas eu
trazia de Cusco alguns postais legendados e um folheto explicativo.
Os passageiros de Cusco, e alguns mochileiros que haviam embarcado em
Ollantaytambo, espalharam-se pelas ruínas da entrada. Juntei-me a
três mochileiros argentinos e um deles já conhecia o local. Era
emocionante dar os primeiros passos em Machu Picchu, “o grande
pico” e começamos perambulando pelas ruínas da entrada, seguimos
para a íngreme subida do Wayna Picchu numa cansativa caminhada de
uma hora, por uma difícil trilha de pedras. A recompensa estava lá,
nas alturas: uma visão deslumbrante de toda a paisagem montanhosa e
dentro dela a visão lá embaixo, distante e completa, das
ruínas da Cidade Sagrada, sobre o dorso planificado da montanha.
Hoje, na distância de quatro décadas e com outras visões do mundo,
posso dizer que foi o que de mais deslumbrante entrou pelos meus
olhos. O historiador Arnold Toynbee, que no início de 1956 passou
pela região em sua viagem em torno do mundo, conta, em seu livro De
Leste a Oeste, do
seu espanto ao chegar em Machu Picchu. Sobre “o pequeno
pico” diz ele:
Wayna
Picchu! Ele se ergue para o céu como a agulha da torre de uma
catedral gigantesca. E a cidade pousada entre os dois picos
equipara-se em grandeza ao seu ambiente natural, embora o supere em
mistério. Jamais atingida pelos conquistadores espanhóis do
Império Inca, ela foi posta a nu por um explorador norte-americano,
Hiram Bingham. Este irrompeu através da selva que protegia a cidade
e trouxe-a para a luz como uma bela adormecida.”
[4].
Depois
descemos o Wayna Picchu e entramos por um desvio aonde se chega ao
pequeno Templo da Lua. Lá pelas quatro e meia da tarde muitos já
saíam para pegar o trem. Mas eu decidi me ocultar para
passar a noite dormindo nas ruínas.
Guardo
muitas lembranças que me encheram os olhos nas paisagens dos
caminhos: Canyons gigantescos, precipícios profundos, altas
passagens no centro-sul dos Andes, densas florestas, verdes vales
cultivados, as travessias do Atacama e do Chaco paraguaio, baías
deslumbrantes, rios imensos, lagos escondidos na intimidade das
montanhas e a visão inesquecível do Titicaca. Mas Machu Picchu era
magicamente diferente. Tudo ali era solene e sagrado. Circundada pelo
rio Vilcanota, cujas águas ligeiras correm em torno dos picos de
Machu Picchu e Huayna Picchu e cercado de altas montanhas, a cidade é
única em majestade, isolamento e beleza. “Acreditará
alguém no que encontrei?”,
foi com essa frase que o antropólogo Hiram Bingham registrou seu
espanto, no livro “A
Cidade Perdida dos Incas”,
ao descobrir as ruínas de Machu Picchu, em 24 de julho de 1911.
Minha
noite solitária em Machu Picchu
No
fim da tarde, quando o trem já havia partido, apareceram outros
mochileiros, descendo apressados do Wayna Picchu e me disseram que
iam acampar lá embaixo. Perguntaram se eu não iria descer, porque
era proibido ficar à noite entre as ruínas. Depois disso, eu me
encaminhei para a parte alta da entrada, onde ficava o local das
moradias. Abri minha mochila, escrevi no meu diário e quando a
penumbra invadiu o ambiente, estendi meu saco de dormir no canto de
uma peça, para ali passar a noite. Era primavera e estava fresco,
quase frio a2.400 metros de altitude. E ali estive muito tempo,
envolvido pelo entardecer e debruçado sobre a parte baixa das
paredes do meu “aposento”, olhando o perfil das montanhas, a
silhueta vertical do Wayna Picchu. Sentia que algo faltava no meu
íntimo e o que faltava era a ansiada experiência da noite que me
propus passar na solidão das ruínas. Ali fiquei, esperando que a
lua aparecesse. Guimarães Rosa escreveu que: “esperar é
reconhecer-se incompleto”. E era assim que minha expectativa
fazia-me sentir: incompleto, perante a expectativa daquela
experiência noturna em Machu Picchu e incompleto até
hoje, porque o conhecimento, quanto maior, mostra-nos que muito maior
se torna a consciência do que ignoramos. As primeiras estrelas que
surgiam e toda aquela paisagem noturna passava a ser só minha e
parecia existir somente pela minha consciência sobre ela. Lembro-me
que havia uma passagem no romanceA Náusea, de
Jean Paul Sartre em que o personagem -- Antoine Roquetin --
estava sentado diante de um amplo vale e achava que tudo aquilo
somente existia pela sua consciência e que se aparecesse outra
pessoa tomando consciência do ambiente, a paisagem já não era só
sua. Bem, era assim que eu me sentia, porque sabia que estava
absolutamente sozinho naquele lugar fantástico. A lua surgiu,
iluminando a vaga escuridão e uma onda de mistério começou a
rondar minha mente.
Imaginava
como teria sido a vida dos habitantes que ali viveram nos dias
doTawatinsuyo.
A sua anímica religiosidade povoada de deuses, os rituais sagrados,
as cerimônias no Templo do Sol e da Lua. Ali tudo se pronunciava em
silêncio: as ruas, as praças, as escadarias, o caminho que levava
ao Wayna Picchu. Ali tudo era uma “saudade de pedra”, embora não
fosse o cais a que se referiu Fernando Pessoa em sua Ode
Marítima. A
memória histórica de tantos fatos era conduzida por minha excessiva
imaginação e algo estranho me acontecia aquela noite. Era como se
minhas evocações mentais abrissem uma sintonia com outro plano de
pensamento.
Eu
era, naquela época, um incrédulo, com uma visão materialista do
mundo e a vaga noção de transcendência vinha dos diálogos de
Platão, de Fédon,
sobretudo, do conceito socrático de imortalidade e do mundo
platônico das ideias. E me perguntava se a minha consciência era a
única presença mental naquele espaço. Ou haveria um ambiente
paralelo, um outro plano, ou seja, se por trás da realidade objetiva
e da nossa limitada visualidade, haveria o que alguns filósofos
chamaram de um mundo fantasma de percepções, ou de energias
distintas, como estabeleceu a ciência nas muitas faixas de ondas no
espectro eletromagnético!? [5] Haveria uma Machu Picchu
invisível, uma Cidade Sagrada paralela, nas ruínas de um plano
astral, com presenças espirituais ao meu lado? Quem sabe as almas
dos que ali viveram no passado ou talvez o espírito protetor e
“ciumento” do Imperador Pachacútec[6] --- que, em 1452,
colocara a primeira pedra e convocara o arquiteto Apomayta para
construir Machu Picchu, fundada com o nome mítico de Huiñaymarca
(Cidade Eterna) e que depois, estrategicamente, passou a denominar-se
Vitcos, para iludir a ganância dos espanhóis na sua busca do El
Dourado. Onde estariam as almas das duzentas sacerdotisas, as virgens
que cultuavam o sol, trazidas às pressas de Ajjllahuasi, a
residência das vestais, em Cusco, antes que lá chegassem os
sanguinários e depravados espanhóis?
Quem
sabe a Cidade Numinosa ainda existisse, alimentada pela possível
imortalidade dos seus “mortos”, reconstruída incessantemente
pela paisagem mental dos seus arquitetos, sacerdotes,
vestais, amautas e haravicus (poetas)!
Medo do invisível? Não, nenhum... Enquanto escrevia meu diário,
uma ideia se impunha em minha mente, como a dizer que eu era
bem-vindo e esperado ali, que eu fora mentalmente induzido àquela
casa e que eu não poderia ter ido dormir nos templos. Que isso teria
sido uma profanação. Depois, tudo foi substituído por um imenso
bem-estar, por uma inexplicável confiança e a isso sobreveio a
sublime catarse daquela absoluta solidão, do silêncio perfeito e a
imaginação, buscando a vida e os rastros indeléveis dos que
viveram um dia no cotidiano encantado daquele fantástico local.
Quantas preces e rituais, quantos amores, quantos dramas, quantas
danças e cantares, quantos sonhos se sucederam atrás daquelas
ruínas, ali sepultadas pelo tempo!?
Meu
espírito bebia o mistério de um tempo que eliminava seus próprios
limites. Um tempo que a memória tornou mágico, aleatório, fora da
linearidade cronológica, um tempo permanente, sustentado pelo
encanto e onde havia a beleza de uma grande literatura, embora não
fosse escrita, porque os incas não conheciam a escrita, fonética ou
pictográfica. “Escreviam” nas páginas da memória com a
expressão da oralidade.[7]. Os poetas escreviam seus “jailli” ao
Sol, à Lua, à Wiracocha e à Pachamama. Havia um teatro de
tragédias e comédias composta pelos amautas,
filósofos do império, cujas cenas eram dramatizadas diante da
nobreza inca. Havia uma prosa quíchua, composta de fábulas e lendas
e suas preces ao Senhor da vida chegam a lembrar a beleza da Prece
de Cáritas.
Diziam eles, com fervor:
“Oh
Fazedor, felicíssimo, venturoso Fazedor, que tens misericórdia e
piedade dos homens; olha teus servos, pobres desventurados, que tu
criaste, e a quem deste o ser; tem piedade deles, vivam com saúde e
salvos com seus filhos e descendentes, caminhando pelo reto caminho
sem pensar na maldade! Vivam longo tempo, que não morram em sua
juventude, que não passem fome e vivam em paz.”
Minha
alma de poeta buscava, naquela abstração, um “encontro” com o
lirismo panteísta dos haravicos,
os jograis que levavam a tradição oral do povo pelos quatro cantos
do império e por certo ali passaram declamando seus poemas, cantando
os huaynos, contando os mitos e as lendas dos antepassados. Quem sabe
seus gestos e suas vozes estivessem e ainda estejam ali registrados
numa tela misteriosa que as filosofias orientais chamam de registros
acásicos, uma memória universal contendo todo o conhecimento do
passado.
Intihuatana
, a pedra que amarrava o sol
Tudo
o que eu havia lido sobre os Incas borbulhava aquela noite,
atropelando-se no torvelinho incessante da memória. Ali fora a
capital sagrada de um império que possuía uma organização
político-religiosa e social perfeita. A produção agrícola
partilhada como uma devoção à Terra, e as misteriosas construções
do seu gigantesco império. Que fatores astronômicos ou geográficos
determinaram as localizações de Macchu Picchu, de Cusco e
Ollantaytambo, assim como o platô de Nazca e suas estranhas figuras?
Que misteriosos significados havia por trás daquela famosa pedra
de Intihuatana, ali em
Macchu Picchu, um relógio solar, por onde se chegava através de uma
escadaria, tido como um poderoso centro de energias cósmicas,
cultuada ainda hoje pelos indígenas e por místicos e esotéricos?
Lavrada num único bloco e embora não fosse grande, a forma
enigmática e sua posição soberana no terraço mais alto das
ruínas, sugeria-me uma inesgotável e mística curiosidade.
Decompondo seu significado, inti significa
sol e huatama significa
amarrar. E daí a pergunta: Estaria aquela pedra posicionada em
função dos pontos cardeais do mundo? Seria ali o lugar onde os
incas pensavam “amarrar” o sol? Seria ela o centro energético e
teocrático do Império? Suas profundas relações com o além são
surpreendentemente cada vez maiores, à medida que sucessivas
investigações são feitas pelos pesquisadores e, muitos livros,
alguns interessantes, outros exagerados, têm procurado interpretar o
significado espiritual da pedra deIntihuatana e
os desenhos de Nazca.
Como
teria sido composta a família e a quem pertencera aquela casa onde
eu me “hospedaria” aquela noite? As informações históricas
afirmam que na Cidade Sagrada viviam cerca de três mil pessoas e que
a grande maioria eram mulheres: as sacerdotisas . Nunca se soube ao
certo sobre a vida social de Machu Picchu e há quem afirme que
muitos morreram de uma epidemia, ou que os sobreviventes abandonaram
o local em 1572, depois da execução do último inca.
“En
toda La Ciudad Oculta, la noticia de la muerte de Túpac Amaru
corrió de casa en casa y, de inmediato, se oyeron grandes
lamentaciones de dolor y voces duras que recriminaban a los
bárbaros y a sus crueles divinidades de madera. (...) Todos cantaram
con la misma voz del corazón el Phuluya Phuluya Huila o “La
Canción de los Difuntos”, (...)
Anda,
señor mio, derecho a la luz
no
te inquiete el rayo de la muerte
ni
te hostiguen las voces perversas
tu
cuerpo que fue de hueso noble
ahora
es filamento de niebla.
Que
tu viaje sea guiado por la luna
que
te cubra de amor el arco iris
no
mires el vacío de los abismos
ni
hagas caso de los rencores
anda
nomás, nobilísimo difunto,
derecho
al país de los ancestros.
(...)
Durante todo ese tiempo, Vitcos (a pesar de los vientos de guerra y
de la viruela) fue la activa y numinosa Ciudad de los Ritos, pero a
partir de mañana debería convertirse, inevitablemente. En la Ciuda
de los Muertos,
una estancia privativa de los antepasados y de sus maneras de pasar
la eternidad. (...)
Muchísimo
tiempo después el nombre de la ciudad sería olvidado. Las nuevas
generaciones terminarían atribuyéndola solo la denominación del
cerro que la cobija: Machu Picchu”
[8].
Naquela
noite, relata ainda o autor, acenderam-se fogueiras para iluminar,
com o clarão das chamas e os gestos do coração, a glória final do
Tawantinsuyo. Era o grande ato religioso no final do império. O
último suspiro do longo estertor político do incário. Foi a
derradeira noite habitada na Cidade Sagrada, e no dia seguinte, tudo
seria abandono. O que ficou, seria encontrado somente 339 anos
depois, retirando do silêncio o grande segredo dos incas. As ruínas
contariam, com sua mudez, a história fascinante do sacrário de um
povo, construído nas montanhas. A história de uma civilização
abatida pela cobiça e pelo fanatismo, mas que renasceria de suas
cicatrizes, sublimada, nos séculos seguintes, nas grandes expressões
da arte, da música e na literatura.
Naquele
momento, Machu Picchu ali estava, impassível e enigmática diante do
meu espírito. Mesmo os arqueólogos ainda não decifraram o mistério
que envolveu a vida naquele local. E eu, um mero viandante do tempo,
chegara ali 397 anos depois, e ousava perguntar, mentalmente, quem
teria sido a última pessoa que dormiu naquela peça onde eu iria
passar a noite. Quem sabe naquele quarto ela tivesse agonizado de
varíola ou tivesse derramado suas lágrimas pela cruel execução de
Túpac Amaru. Quem sabe seus restos repousassem ainda no grande
cemitério à direita, na parte baixa das ruínas. Eu observava
aquelas pedras perfeitamente encaixadas. Eram os documentos “vivos”,
as silenciosas testemunhas de tantos seres que ali conviveram.
Lembrei-me dos meus estudos de história e de Cecília Westphalen,
aquela fantástica professora e historiadora que me motivou a ler
Fernand Braudel, e ele dizia que a história não é apenas a ciência
do que muda, mas também daquilo que ficou e permanece imutável.
Sim, permanecia ali uma legião imutável de testemunhas. E era assim
que eu me sentia, no irreal torvelinho de minha consciência, cercado
por uma “nuvem de testemunhas” como afirmou Paulo de Tarso. E era
preciso “ver” o que havia atrás, muito atrás das aparências,
porque agora eram meras paredes. Já não havia abrigo, nem fogo, nem
calor humano. Já não havia teto. E se chovesse? Mas não, o céu
estivera azul durante todo o dia e a lua começava a surgir na parte
oriental do cenário.
Um
ateu na Cidade Sagrada
O
frio foi chegando e finalmente entrei em meu saco de dormir. Acendi
minha pequena lanterna e li algumas páginas de Walt Whitman. Mas eu
estava muito inquieto e não me concentrava na leitura. Apaguei a luz
e fiquei de frente para as estrelas. Que outros mundos habitados
haveria no universo, ou aqueles minúsculos faróis acesos diante dos
meus olhos eram apenas a luz que chegava de estrelas que já haviam
se apagado há milhões de anos? Mas, naquele momento, que lugar era
mais real que o meu leito no topo de uma montanha, no meio da
Cordilheira e onde o andino e o amazônico estendiam seus braços
para me amparar naquela noite? Creio que adormeci envolvido por esse
enredo mágico e não sei onde me levaram e com quem estive em meus
sonhos, porque nada interrompeu meu sono e somente acordei com os
passos de algumas lhamas que, ao amanhecer, pastavam a poucos metros
da “minha casa”. Elas vinham dos inúmeros terraços agrícolas.
Era muito cedo e não havia ainda ninguém em toda a região urbana
das ruínas. Levantei-me deslumbrado e a luz do sol ainda não havia
transposto as montanhas do leste. Tinha a impressão que tudo
renascia com a luz do sol e todo aquele mágico recanto do mundo
parecia a imagem maternal da vida. Desci, caminhando descalço sobre
a grama umedecida pelo rocio da madrugada, até uma fonte de água
corrente que brotava das ruínas, e me lavei. Depois, acariciado pelo
ar matutino das montanhas, subi lentamente para a parte superior,
onde ficavam as grandes edificações e, sentado sobre a rocha
sagrada do Templo do Sol, presenciei seus raios chegarem sobre o pico
do Wayna Picchu, invadindo aos poucos todo o vale, envolto ainda numa
bruma transparente. Ao redor da praça principal, a luz chegou
afastando as sombras entre as paredes dos santuários, das torres e
das tumbas. Ali fiquei por quase duas horas. Quanta subjetividade! Um
ateu numa silenciosa prece, o
olhar passeando respeitoso por um cenário de encanto, entre a praça
e as ruínas ou sobrevoando o distante perfil das montanhas. Diante
de uma paisagem que se iluminava sempre mais, o meu permanente
espanto. Sentado sobre a lateral da grande pedra circular, majestosa
e única, ali estive, na aldeia inesquecível do tempo, hipnotizado
por tanta beleza, imaginando os dias em que, em seus jardins, as
flores recendiam seu perfume pelo ambiente e as crianças corriam
alegres pela praça.
Ollantaytambo,
habitada desde o Império
Por
volta das dez horas chegaram os primeiros mochileiros e espantaram-se
com a minha presença, por estarem seguros que eram os primeiros que
subiam, porque não havia hotéis nem casas lá embaixo. Somente a
estação de trem e a casa dos poucos empregados. Disseram-me que
haviam acampado perto da entrada da escadaria e ninguém subira antes
deles. Eram os dois casais chilenos que desceram apressados o Wayna
Picchu e disseram que sabiam que eu dormira nas ruínas, porque
ninguém desceu depois deles. Perguntaram curiosos sobre minha
experiência.
Aquele
segundo e último dia revisitei e vasculhei outros recantos da
cidade. Ainda pela manhã fui ao cemitério, andei pelos terraços
agrícolas, descobri novas fontes e espreitei as encostas, os
precipícios, observando de todos os ângulos o curso do Vilcanota,
correndo em torno dos dois picos e serpenteando no sopé do Wayna
Picchu. Eu sabia que aquelas águas um dia chegariam ao Brasil,
através dos cursos do rios Ucaiali, Urubamba e Marañon e que ao
entrar no território brasileiro passa a chamar-se Solimões. Mas só
então, perto de Manaus, ao encontrar-se com o Rio Negro, e que
recebe o nome de Amazonas. Em alguns momentos reencontrei os chilenos
e foram eles que mataram a minha fome. No fim da tarde, desci para
tomar o trem de volta a Cusco.
Quando
o trem parou na estação de Ollantaytambo, subiram vários
mochileiros. Um deles sentou-se ao meu lado e logo começamos a
conversar. Acampara por dois dias em suas ruínas, onde estivera em
missão de estudo. Estudava antropologia na Universidade de São
Marcos, em Lima, e fora aluno do escritor José Maria Arguedas. Muito
versado em cultura e arqueologia peruanas, falou-me da importância
da arquitetura incaica do local, que na época todos chamavam de
Fortaleza de Ollanta, dizendo que o que se via, através das janelas
do trem, não dava a ideia da grandiosidade das suas ruínas
interiores. Comentou que Garcilaso de la Vega referira-se a
ela em seus Comentários Reales..., que
aquelas fortificações foram construídas sob as ordens do Inca
Wiraquocha e que era, além de Cusco, a única cidade da época
do Incário que ainda continuava habitada por mais de seiscentos
anos. Em outras fontes da história de Cusco me inteirei que Simon
Bolívar, no auge de sua glória de Libertador, depois das vitórias
de Junín e Ayacucho, em viagem pelas províncias do sul, chegou a
Cusco em 25 de junho de 1825 e visitou, dias depois, a fortaleza de
Ollantaytambo. Diante de sua grandeza, recomendou, por carta, a
Hipólito Unanue,[9] as providências para sua conservação,
afirmando que “a
glória destes monumentos ainda em ruínas reclamam a favor dos seus
autores, e não deve ser esquecida”.
(*)
Este texto consta do livro NOS RASTROS DA UTOPIA: Uma memória
crítica da América Latina nos anos 70, publicado por
Escrituras em 2014.
[1] VARGAS,
Víctor Angles. Historia del Cusco Incaico. Cusco: Edição
do autor, 1988, t. I, p.19-20.
[2] José
Carlos Mariátegui (Moquegua, 1894 – Lima, 1930) Apesar de ter
vivido apenas 35 anos, foi, por certo, o mais brilhante pensador
peruano e o mais lúcido intérprete do marxismo latino-americano.
Autodidata, jornalista, ensaísta e poeta, celebrizou-se através dos
seus Sete ensaios de interpretação da realidade
peruana, livro pelo qual tornou-se uma referência
intelectual e política em todo o Continente e onde analisa com
clareza e originalidade o problema da terra e do indígena peruano e
latino-americano.
[3] MARIÁTEGUI,
José Carlos. Siete ensayos de
interpretación de la realidad peruana.Lima:
Amauta, 11ª ed., 1967, p. 146.
[4] TOYNBEE,
Arnold J. De Leste a Oeste. Tradução de Aydano Arruda.
São Paulo: Ibrasa, 1959, p.28.
[5] A
ciência mostrou que a realidade perceptível ao olho humano é vista
somente pela estreita “janelinha” das ondas de luz que compõem
parte do espectro eletromagnético, e que somos cegos a uma vasta
faixa de radiação que se estende das altas frequências dos raios
cósmicos, cujo comprimento de onda é de apenas um trilionésimo de
centímetro, até as ondas de rádio, infinitamente longas.
[6] Pachacútec
(1.400? - 1471) foi a figura mais notável do Império inca antes da
chegada dos espanhóis. Foi seu nono governante e o fundador do
Império. Sábio e legislador, aboliu os sacrifícios humanos nos
atos religiosos e pelo elevado espírito público reconstruiu Cusco,
canalizando os rios que cruzavam a cidade e construindo calçadas,
monumentos e palácios, num tempo em que a capital do Império tinha
mais de cem mil habitantes. Instituiu o sistema de cultivo de
terraços, com que se notabilizou o sistema comunista da agricultura
inca.
Visionário
e destemido guerreiro, defendeu o Império quando os ferozes Chancas
estiveram a ponto de tomar Cusco. Posteriormente expandiu o Império
até o Equador, chegando a ter o domínio de mais de quinhentas
tribos com línguas, costumes e religiões diferentes.
Deixou
seu nome imortalizado pela construção da cidadela de Sacsayhuaman,
a cidade fortaleza de Macchu Picchu e a reconstrução, em Cusco, do
Coricancha (Templo do Sol).
[7] Em
seu livro Muchas Lunas en Machu Picchu, o escritor
cusquenho Enrique Rosas Paravicino, conta que o astrônomo Sapan
Huillcanina apresentou ao inca Huayna Ccápac sua invenção de
um sistema de escrita, baseado em setenta e nove signos pintados em
pranchas de madeira, representando imagens de aves, plantas,
montanhas, astros, flores, mãos humanas , garras de águia,
figuras do sol e da lua, etc.. Os signos representavam o som da
voz humana que, associados equivaliam a palavras, frases e
pensamentos. Seu invento, no entanto, foi rejeitado pelos sábios do
Imperador e as suas tábuas da memória foram queimadas,
posteriormente, por um sacerdote espanhol como uma obra do
diabo.
[8] PARAVICINO,
Enrique Rosas Muchas Lunas em Machu Pucchu, Lima:
Huaca Prieta e Lluvia Editores. 2006, p. 216-218.
[9] José
Hipólito Unanue y Pavón (1755-1833), médico, naturalista e
político, foi um precursor da independência peruana. Amigo de Simon
Bolívar, a quem atendeu como médico, revolucionou a medicina em seu
país e, como presidente do Primeiro Congresso Constituinte do Peru,
esteve à frente da comissão que redigiu a sua Constituição
Republicana.