15 maio 2013

Frederico Füllgraf - Тула (Tulá)


Crônica
Na madrugada do Ano Novo 1945-46, um pequeno grupo de prisioneiros de guerra do Campo 323, localizado duzentos quilômetros a sudeste de Moscou, escapou. Eram alemães, um deles, jovem oficial da SS, com vinte e quatro anos de idade, que sobrevivera as invasões da Holanda, França, depois da Romênia, Iugoslávia, e finalmente da Ucrânia. Como integrante da LSSAH, a famigerada “Leibstandarte [Guarda Pessoal] Adolf Hitler”, tinha enfrentado o exército soviético em Kursk e Charkiv, de onde foi desmobilizado e, numa operação blitz, levado às pressas para a Normandia, para defender o litoral francês contra o desembarque dos Aliados.

Quando eu era criança, o conheci em carne e osso: era um homem bem apessoado, de cabelos pretos, 1,80 de altura, porte atlético, e cujo espírito reservado não escondia certa jovialidade. Nas frestas das conversas dos adultos, ouvidas por nós, crianças, infiltrara-se a informação que fora preso nos últimos dias da guerra, depois da queda da “fortaleza de Breslau”, abduzido à União Soviética e internado num campo de trabalhos forçados, de onde tinha conseguido fugir. Só quarenta anos depois consegui juntar o quebra-cabeças daquela fuga, quero dizer: quando li, estarrecido, seu depoimento perante um tribunal alemão de des-nazificação, no qual o nome "Tula" estava associado ao Campo 323 e me mirava como uma esfinge desafiadora. E - santo deus! - foi quando voltou a faiscar diante de meus olhos, aquela estrela vermelha, que Albert George costumava esconder numa caixa de charutos vazia, e que tanto me enfeitiçava quando eu tinha apenas cinco anos de idade.


Albert George é o nome do protagonista do romance, “O caminho de Tula”, que estou escrevendo a soldo de uma editora brasileira. Sua narrativa tenta desvendar a motivação de um jovem escoteiro da República de Weimar que adere à Juventude Hitlerista, de onde egressa como voluntário da SS, participa das mais sangrentas batalhas da 2ª. Guerra Mundial, é absolvido pela Justiça do pós-guerra, depois obrigado a atuar como informante do serviço de inteligência militar americano na Alemanha (sim, ele conhecia cada árvore de sua trilha de três mil quilômetros percorridos a pé em dez meses) e que, finalmente, decide emigrar para o Brasil, onde começa vida nova, estabelecendo família.

Minha relação com a cidade recôndita começou no início de 2010, quando recebi os autos da sentença judicial de 1948, nos quais A. George fala de sua prisão em Tula, e comecei a investigar as circunstâncias de sua fuga: como fora possível escapar de um campo soviético tão bem guardado? Algum russo os ajudara, ou os alemães mataram seus guardas? Comecei a preparar uma viagem de pesquisas em Tula, mas minha amiga, Terezka, de São Petersburgo, me advertiu, o que o pesquisador russo, Adam, confirmaria um ano mais tarde: "sobre as atrocidades nazistas você terá sempre os arquivos russos abertos, mas sobre a fuga de alemães não vão lhe contar nada – setenta anos depois continua tabu!".

Quando descobri as imagens deste exuberante fotógrafo russo, Viktor Professor, das ruínas de uma imponente igreja, nos arredores de Tula, me perguntei, onde aqueles fugitivos alemães do Campo 323 se teriam escondido nos primeiros dias em território inimigo, e imaginei que estas ruínas poderiam ter-lhes servido de abrigo.

Esta é a encruzilhada frequente na Literatura, que desafia a criatividade do autor. Decidi então pesquisar à distância e, para minha surpresa, descobri registros fantásticos sobre Tula. Sua etimologia, antes de mais nada, é de origem báltica, como desvendou o Prof. E. M. Pospelov em sua nomenclatura toponímica, “Geograficheskie nazvaniya mira”, e significa “lugar escondido, inacessível´”... - metáfora que vestiu como uma luva minhas próprias dificuldades diante do mutismo das fontes de informação procuradas.

Na moderna historiografia russa, Tula é venerada como “cidade heróica”, porque não resta dúvida: não fosse a tenaz resistência das milícias da fábrica de armas, Nagant, e das tropas soviéticas retiradas da longínqua Vladivostock, e os alemães teriam alcançado Moscou pelo Sul.

E nesta dobra das páginas, a narrativa do romance vincula outras duas fugas de Tula à escapada dos soldados alemães do Campo 323: a retirada, no final de 1941, do general alemão, Guderian, que havia tomado Tula, e a escapada do seu mais ilustre morador, Lev Nikoláievich Tolstói, trinta anos antes – Guderian fugindo da contra-ofensiva russa e, numa irônica inversão de papéis, Tolstói fugindo de uma alemã; Sonja Andreievna Bers, sua esposa.

A única vítima fatal destas três fugas foi Tolstói, cujo coração extenuado parou de bater quando ele alcançava a pequena estação ferroviária de Astapovo, no dia 20 de novembro de 1910.

Há duas frases de Tolstói que merecem estar penduradas na porta de toda casa: a primeira diz, “Enquanto houver matadouros, haverá campos de guerra”, e a segunda, “A felicidade é estar com a natureza, contemplar a natureza e conversar com ela”. Há quem queira deduzir que na primeira frase Tolstói inverteu a ordem dos fatores, mas é dedução equivocada, porque com ela o escritor vegetariano se opunha ao sacrifício dos animais. Com a segunda, Tolstói definitivamente alcançara o requinte da sabedoria.

Quando o romance estiver nas livrarias, quem sabe farei minha peregrinação a Tula. Então visitarei Yasnaya Polyana, a chácara de Tolstói tomada por Guderian e transformada em quartel-general de seus blindados, a quem Molotov acusara de vandalismo, mas ao que parece, foi uma mentira a serviço da propaganda de guerra. Difícil imaginar que o patrimônio de Tolstói fora pilhado pelos alemães, porque naqueles dias, antes da chegada de Guderian, o então jornalista do Exército Vermelho, Vasily Grosman, testemunhou a embalagem e a transferência de todos os pertences em Yasnaya para outro destino, considerado mais seguro. Depois, ao que tudo indica, Guderian também manteve intacta a propriedade de Tolstói, no coração de uma União Soviética de resto devastada pela Blitzkrieg nazista. É que a História não se escreve por linhas retas, muito menos do discurso ideológico linear, e é nas frestas das contradições que o escritor nutre suas estórias.

Então me deixarei passear por um sítio sagrado, flanando pelas trilhas escoltadas por bétulas, de Lev Nikoláievich.

Mas também vou a Tula por um outro motivo: há um livro enterrado em algum recanto deste lugar arcano. São os originais de “Babi Yar”, o massacre nazista dos 33 mil judeus de Kiev, que Anatoly Kusnetzov escondeu depois de fotografá-los, para então fugir da Rússia. 

Esta foi a quarta fuga de Tula.

Fotos: Viktor Professor; divulgação

2 comentários:

Anônimo disse...

That's some story, Frederico. I look forward to reading the novel.

Anônimo disse...

Vou aguardar seu livro tambem!!!