Crônica
Na madrugada do Ano Novo
1945-46, um pequeno grupo de prisioneiros de guerra do Campo 323, localizado duzentos quilômetros a sudeste de Moscou, escapou. Eram alemães, um deles, jovem oficial da SS,
com vinte e quatro anos de idade, que sobrevivera as invasões da Holanda, França, depois da Romênia, Iugoslávia,
e finalmente da Ucrânia. Como integrante da LSSAH, a famigerada “Leibstandarte [Guarda
Pessoal] Adolf Hitler”, tinha enfrentado o exército soviético em Kursk e
Charkiv, de onde foi desmobilizado e, numa operação blitz, levado às pressas
para a Normandia, para defender o litoral francês contra o desembarque dos
Aliados.
Quando eu era criança, o
conheci em carne e osso: era um homem bem apessoado, de cabelos pretos, 1,80 de
altura, porte atlético, e cujo espírito reservado não escondia certa jovialidade. Nas frestas das conversas dos adultos, ouvidas por nós, crianças, infiltrara-se a informação que fora preso nos últimos dias da guerra, depois da queda da “fortaleza
de Breslau”, abduzido à União Soviética e internado num campo de trabalhos
forçados, de onde tinha conseguido fugir. Só quarenta anos depois consegui
juntar o quebra-cabeças daquela fuga, quero dizer: quando li,
estarrecido, seu depoimento perante um tribunal alemão de
des-nazificação, no qual o nome "Tula" estava associado ao Campo 323 e me mirava como uma esfinge desafiadora. E - santo deus! - foi quando voltou a faiscar diante de meus olhos, aquela estrela vermelha, que
Albert George costumava esconder numa caixa de charutos vazia, e que tanto me enfeitiçava
quando eu tinha apenas cinco anos de idade.
Albert George é o nome do
protagonista do romance, “O caminho de Tula”, que estou escrevendo a soldo de
uma editora brasileira. Sua narrativa tenta desvendar a motivação de um jovem escoteiro da República de Weimar que adere à Juventude Hitlerista, de onde egressa como voluntário da
SS, participa das mais sangrentas batalhas da 2ª. Guerra Mundial, é absolvido pela Justiça do pós-guerra, depois obrigado a atuar como informante do
serviço de inteligência militar americano na Alemanha (sim, ele conhecia cada árvore de sua trilha de três mil quilômetros percorridos a pé em dez meses) e que, finalmente, decide
emigrar para o Brasil, onde começa vida nova, estabelecendo família.
Minha relação com a cidade recôndita começou no início de 2010, quando recebi os autos da sentença judicial de 1948,
nos quais A. George fala de sua prisão em Tula, e comecei
a investigar as circunstâncias de sua fuga: como fora possível escapar de um campo soviético tão bem guardado? Algum russo os ajudara, ou os alemães
mataram seus guardas? Comecei a preparar uma viagem de pesquisas em Tula, mas
minha amiga, Terezka, de São Petersburgo, me advertiu, o que o pesquisador
russo, Adam, confirmaria um ano mais tarde: "sobre as atrocidades
nazistas você terá sempre os arquivos russos abertos, mas sobre a fuga de
alemães não vão lhe contar nada – setenta anos depois continua tabu!".
Quando descobri as imagens deste exuberante fotógrafo russo, Viktor Professor, das ruínas de uma imponente igreja, nos arredores de Tula, me perguntei, onde aqueles fugitivos alemães do Campo 323 se teriam escondido nos primeiros dias em território inimigo, e imaginei que estas ruínas poderiam ter-lhes servido de abrigo.
Quando descobri as imagens deste exuberante fotógrafo russo, Viktor Professor, das ruínas de uma imponente igreja, nos arredores de Tula, me perguntei, onde aqueles fugitivos alemães do Campo 323 se teriam escondido nos primeiros dias em território inimigo, e imaginei que estas ruínas poderiam ter-lhes servido de abrigo.
Na moderna historiografia
russa, Tula é venerada como “cidade heróica”, porque não resta dúvida: não
fosse a tenaz resistência das milícias da fábrica de armas, Nagant, e das
tropas soviéticas retiradas da longínqua Vladivostock, e os alemães teriam
alcançado Moscou pelo Sul.
A única vítima fatal destas
três fugas foi Tolstói, cujo coração extenuado parou de bater quando ele
alcançava a pequena estação ferroviária de Astapovo, no dia 20 de novembro de 1910.
Há
duas frases de Tolstói que merecem estar penduradas na porta de toda casa: a
primeira diz, “Enquanto houver matadouros, haverá campos de guerra”, e a segunda, “A felicidade é
estar com a natureza, contemplar a natureza e conversar com ela”. Há quem queira deduzir que na
primeira frase Tolstói inverteu a ordem dos fatores, mas é dedução
equivocada, porque com ela o escritor vegetariano se opunha ao sacrifício dos
animais. Com a segunda, Tolstói definitivamente alcançara o requinte da sabedoria.
Quando o romance estiver nas livrarias, quem sabe farei minha peregrinação a Tula. Então visitarei Yasnaya Polyana, a chácara de Tolstói tomada por Guderian e transformada em quartel-general de seus blindados, a quem Molotov acusara de vandalismo, mas ao que parece, foi uma mentira a serviço da propaganda de guerra. Difícil imaginar que o patrimônio de Tolstói fora pilhado pelos alemães, porque naqueles dias, antes da chegada de Guderian, o então jornalista do Exército Vermelho, Vasily Grosman, testemunhou a embalagem e a transferência de todos os pertences em Yasnaya para outro destino, considerado mais seguro. Depois, ao que tudo indica, Guderian também manteve intacta a propriedade de Tolstói, no coração de uma União Soviética de resto devastada pela Blitzkrieg nazista. É que a História não se escreve por linhas retas, muito menos do discurso ideológico linear, e é nas frestas das contradições que o escritor nutre suas estórias.
Então me deixarei passear por um sítio sagrado, flanando pelas trilhas escoltadas por bétulas, de Lev Nikoláievich.
Então me deixarei passear por um sítio sagrado, flanando pelas trilhas escoltadas por bétulas, de Lev Nikoláievich.
Mas também vou a Tula por um outro motivo: há um livro
enterrado em algum recanto deste lugar arcano. São os originais de “Babi
Yar”, o massacre nazista dos 33 mil judeus de Kiev, que Anatoly Kusnetzov escondeu depois de fotografá-los, para então fugir da Rússia.
Esta foi a quarta fuga de Tula.
Fotos: Viktor Professor; divulgação
2 comentários:
That's some story, Frederico. I look forward to reading the novel.
Vou aguardar seu livro tambem!!!
Postar um comentário