Frida
Khalo - Unos cuantos piquetitos (1935)
Reportagem
para o programa “Resonanzen”, Radio WDR3 (Köln), 31/07/2012
(versão
em Português do original em Alemão)
“Umas
poucas espetadelas” é o título do quadro desconcertante, pintado
em 1935 pela artista plástica mexicana, Frida Khalo, que exibe uma
mulher nua, prostrada de costas sobra uma cama; esfaqueada. A
densidade da cena percebe-se na moldura salpicada de sangue, querendo
tanto dizer do grau de violência aplicada à vítima por seu algoz,
como da perturbação e do asco da autora pelo episódio imaginado.
Parado
ao lado da cena de sangue, com a arma do crime na mão, é
emblemática a expressão imperturbável no rosto do assassino: a da
"justiça" feita mediante a “honra lavada”.
Elemento
detonador do quadro foi a própria mortificação de Khalo devida às
intermináveis traições de seu marido, o também artista plástico
e célebre muralista, Diego Rivera – desta vez com Cristina, a
própria irmã da pintora. Discreta, ao contrário da maioria de seus
auto-retratos repletos de alegorias da dor e da nudez (ou: da dor
como experiência de desnudamento), Khalo preferiu diluir sua própria
consumção em um registro do noticiário policial daqueles dias de
1935: um mexicano enciumado esfaqueara com mais de vinte golpes sua
própria mulher e, levado a juízo, para espanto da corte declarara
com o mais desbragado caradurismo, que aplicara “apenas
algumas espetadelas” à vítima. Com este título macabro, a
célebre e alquebrada artista mexicana expressava à sua maneira o
abomínio de uma das mais hediondas tradições da “cultura”
masculina ibero-americana: a da “defesa da honra”, mediante a
qual o machismo transformou o quarto de casal em matadouro.
Oitenta
anos depois, a literal matança de mulheres grassa mundo afora e de
forma virulenta na América Central, África do Sul, Rússia e países
do Cáucaso. Mas também em países da civilizada União Europeia,
como a Espanha – com 192 mil casos de maus tratos contra mulheres
registrados em 2010 –, e até em nações tão insuspeitas como o
anglosaxão Canadá, onde em anos recentes desapareceram duzentas
mulheres de etnias indígenas, sem pestanejar definidas como
“meras prostitutas”, desse modo rebaixando seu direito à vida.
A
estatística do assassínio em série causa vertigem: na pequena
Guatemala, contando 13 milhões de habitantes, três mil e quinhentas
mulheres foram trucidadas nos últimos cinco anos. Entre 2000 e 2010,
45.000 (quarenta e cinco mil) mulheres e garotas deixaram suas
vidas no Brasil: apunhaladas, abatidas a tiros ou pauladas, como
animais de caça – a população de uma cidade de porte médio
obliterada da face da terra.
Um
estranho sentimento de inferioridade parece habitar e explodir na
alma masculina, e incitá-la à violência, suspeita a atriz e
produtora cultural, Lorita Rivera: “O Homem se sente inferior,
porque é uma coisa histórica, isso. O homem é o provedor da casa,
o homem é aquele que traz o dinheiro. Portanto, o homem é que tem
que ter o poder. E aí o que acontece? É um jogo de poder. Por ser
esse jogo de poder que ele não vai poder alcançar, aí parte para a
violência! Eu sinto isso como forma de compensação. Então ele vai
desqualificar, vai inferiorizar a esposa, para que ela se sinta de
alguma forma menor do que ele.”
Mas
como isso combina com a crescente conquista de espaços no mercado de
trabalho, nas instituições e no âmbito político, pelas mulheres
na América Latina como um todo? No Brasil, por exemplo, 45% dos
postos no mercado de trabalho já são ocupados por mulheres, e na
Argentina 38% dos assentos no Congresso Nacional são preenchidos por
mulheres; no Senado, e acima da média mundial, 43% dos mandatos
argentinos pertencem a mulheres.
A também atriz e produtora teatral,
Eloah Petreca, desconfia da qualidade do avanço: “Na verdade, a
mulher está tomando um espaço que era dela, e que era só ocupado
por homens. Antes era bem isso. E também volto de novo àquilo: ela
pode estar ganhando mais do que o marido, porque agora ela pode
galgar. Mas ainda assim, a gente sabe que mulheres ocupando o mesmo
cargo de homens, ganham menos, são poucas as empresas que pagam a
mesma coisa que pra homens. Então, tá aí a violência de novo, até
mesmo intelectual – enfim... Mesmo ela sendo até melhor, ela não
vai ganhar como o homem ganharia.”
Femicídio ou Feminicídio é
como atende pelo nome a exaltação sanguinária da velha misoginia,
originária da Grécia Antiga, como expressão do ódio masculino à
feminilidade. O conceito - Femicide – foi
empregado pela primeira vez em 1976, pela feminista norte-americana,
Diana Russel, perante a Corte Internacional de Combate ao Crime
contra a Mulher, em Bruxelas.
A
antropóloga e escritora mexicana, Marcela Lagarde, foi quem cunhou a
expressãoFeminicídio, observando que o
conceito do Femicídio restringira seu olhar à violência e o
homicídio de gênero ao âmbito da família, à portas fechadas,
advertindo que estas foram sistematicamente escancaradas com o
assalto do espaço público pelo assassinato de mulheres. Segundo
Lagarde, a esta generalização, irrestrita, da agressão mortal às
mulheres, adere um elemento de grande significado político, pois com
sua banalização, fazendo pouco caso do trucidamento de mulheres,
Governos e Justiça acabaram por estimular o que se transformou em
fenômeno de inegável abatedouro, comparável ao Genocídio – daí
a propriedade do nome “Feminicídio”.
Pano
de fundo desse rigor conceitual, que nada tem de retórico, mas tudo
a ver com a descrição do território do não-Direito, foi
a apuração feita por Lagarde da abjeta violação e matança de
mais de 800 (oitocentas) jovens mulheres, cujos corpos, geralmente
mutilados, foram encontrados em esgotos, lixões e no deserto às
portas de Ciudad Juárez (México), junto à fronteira com os EUA,
entre meados dos anos 1990 e a década dos anos 2000.
Os
assassinos dessas mulheres, em grande parte operárias de montadoras
multinacionais, tais como Nike, Sanyo, Microsoft e outras, jamais
foram levados a juízo, o que, segundo Marcela Lagarde, configura
obstrução da Justiça, impunidade dos assassinos e, com isso, a
co-responsabilidade do Estado pelos crimes cometidos. Em outras
palavras: Feminicídio é crime capital e crime contra o Estado. A
tese faz sentido. Mata-se a mulher porque ela é mulher –
ora, e o que vale uma mulher? Feminicídio é isso:
um sistema de execução de mulheres.
Em
plano paralelo, o silencioso, não apenas justo, mas imperativo
avanço das mulheres, em todos os terrenos da atividade humana,
sobretudo econômica e política, poderia insinuar que estão
contados os dias de vida do velho machismo: onze anos de escolaridade
é o que 61 por cento das mulheres em posições dirigentes oferecem
à Economia Brasileira; os homens, em comparação, somam apenas 53
por cento. 21 por cento dos empreendimentos no Brasil são dirigidos
por mulheres com titulação universitária, que apenas 14 por cento
dos colegas masculinos consegue ostentar.
A
profissionalização, a independência financeira, a mais discreta
manifestação de comportamento emancipado, parecem ter mergulhado o
velho e hipócrita sistema patriarcal em sua mais profunda crise.
A
redistribuição do poder no tabuleiro dos papéis tradicionais
tornou-se prato indigesto aos machões, estimulando sua disposição
à violência. Desde então, matam à torta e à direita, a faca, o
“berro” e o cacete atravessando em diagonal as classes sociais.
A
cada 31 horas, uma mulher é trucidada na Argentina; no Brasil, a
cada duas horas.
O
decadente sistema patriarcal, a confraria dos machos protege os
homens - Mas quem, afinal, Sras. Presidentas, protege as mulheres?