11 março 2015

Frederico Füllgraf: Matadouro de mulheres





Frida Khalo - Unos cuantos piquetitos (1935)



Reportagem para o programa “Resonanzen”, Radio WDR3 (Köln), 31/07/2012
(versão em Português do original em Alemão)

Umas poucas espetadelas” é o título do quadro desconcertante, pintado em 1935 pela artista plástica mexicana, Frida Khalo, que exibe uma mulher nua, prostrada de costas sobra uma cama; esfaqueada. A densidade da cena percebe-se na moldura salpicada de sangue, querendo tanto dizer do grau de violência aplicada à vítima por seu algoz, como da perturbação e do asco da autora pelo episódio imaginado.
Parado ao lado da cena de sangue, com a arma do crime na mão, é emblemática a expressão imperturbável no rosto do assassino: a da "justiça" feita mediante a “honra lavada”.

Elemento detonador do quadro foi a própria mortificação de Khalo devida às intermináveis traições de seu marido, o também artista plástico e célebre muralista, Diego Rivera – desta vez com Cristina, a própria irmã da pintora. Discreta, ao contrário da maioria de seus auto-retratos repletos de alegorias da dor e da nudez (ou: da dor como experiência de desnudamento), Khalo preferiu diluir sua própria consumção em um registro do noticiário policial daqueles dias de 1935: um mexicano enciumado esfaqueara com mais de vinte golpes sua própria mulher e, levado a juízo, para espanto da corte declarara com o mais  desbragado caradurismo, que aplicara “apenas algumas espetadelas” à vítima. Com este título macabro, a célebre e alquebrada artista mexicana expressava à sua maneira o abomínio de uma das mais hediondas tradições da “cultura” masculina ibero-americana: a da “defesa da honra”, mediante a qual o machismo transformou o quarto de casal em matadouro.

Oitenta anos depois, a literal matança de mulheres grassa mundo afora e de forma virulenta na América Central, África do Sul, Rússia e países do Cáucaso. Mas também em países da civilizada União Europeia, como a Espanha – com 192 mil casos de maus tratos contra mulheres registrados em 2010 –, e até em nações tão insuspeitas como o anglosaxão Canadá, onde em anos recentes desapareceram duzentas mulheres de etnias indígenas, sem pestanejar  definidas como “meras prostitutas”, desse modo rebaixando seu direito à vida.
A estatística do assassínio em série causa vertigem: na pequena Guatemala, contando 13 milhões de habitantes, três mil e quinhentas mulheres foram trucidadas nos últimos cinco anos. Entre 2000 e 2010, 45.000 (quarenta e cinco mil) mulheres e garotas deixaram suas vidas no Brasil: apunhaladas, abatidas a tiros ou pauladas, como animais de caça – a população de uma cidade de porte médio obliterada da face da terra.

Um estranho sentimento de inferioridade parece habitar e explodir na alma masculina, e incitá-la à violência, suspeita a atriz e produtora cultural, Lorita Rivera: “O Homem se sente inferior, porque é uma coisa histórica, isso. O homem é o provedor da casa, o homem é aquele que traz o dinheiro. Portanto, o homem é que tem que ter o poder. E aí o que acontece? É um jogo de poder. Por ser esse jogo de poder que ele não vai poder alcançar, aí parte para a violência! Eu sinto isso como forma de compensação. Então ele vai desqualificar, vai inferiorizar a esposa, para que ela se sinta de alguma forma menor do que ele.”

Mas como isso combina com a crescente conquista de espaços no mercado de trabalho, nas instituições e no âmbito político, pelas mulheres na América Latina como um todo? No Brasil, por exemplo, 45% dos postos no mercado de trabalho já são ocupados por mulheres, e na Argentina 38% dos assentos no Congresso Nacional são preenchidos por mulheres; no Senado, e acima da média mundial, 43% dos mandatos argentinos pertencem a mulheres. 

A também atriz e produtora teatral, Eloah Petreca, desconfia da qualidade do avanço: “Na verdade, a mulher está tomando um espaço que era dela, e que era só ocupado por homens. Antes era bem isso. E também volto de novo àquilo: ela pode estar ganhando mais do que o marido, porque agora ela pode galgar. Mas ainda assim, a gente sabe que mulheres ocupando o mesmo cargo de homens, ganham menos, são poucas as empresas que pagam a mesma coisa que pra homens. Então, tá aí a violência de novo, até mesmo intelectual – enfim... Mesmo ela sendo até melhor, ela não vai ganhar como o homem ganharia.”

Femicídio ou Feminicídio é como atende pelo nome a exaltação sanguinária da velha misoginia, originária da Grécia Antiga, como expressão do ódio masculino à feminilidade. O conceito - Femicide – foi empregado pela primeira vez em 1976, pela feminista norte-americana, Diana Russel, perante a Corte Internacional de Combate ao Crime contra a Mulher, em Bruxelas. 

A antropóloga e escritora mexicana, Marcela Lagarde, foi quem cunhou a expressãoFeminicídio, observando que o conceito do Femicídio restringira seu olhar à violência e o homicídio de gênero ao âmbito da família, à portas fechadas, advertindo que estas foram sistematicamente escancaradas com o assalto do espaço público pelo assassinato de mulheres. Segundo Lagarde, a esta generalização, irrestrita, da agressão mortal às mulheres, adere um elemento de grande significado político, pois com sua banalização, fazendo pouco caso do trucidamento de mulheres, Governos e Justiça acabaram por estimular o que se transformou em fenômeno de inegável abatedouro, comparável ao Genocídio – daí a propriedade do nome “Feminicídio”.

Pano de fundo desse rigor conceitual, que nada tem de retórico, mas tudo a ver com a descrição do território do não-Direito, foi a apuração feita por Lagarde da abjeta violação e matança de mais de 800 (oitocentas) jovens mulheres, cujos corpos, geralmente mutilados, foram encontrados em esgotos, lixões e no deserto às portas de Ciudad Juárez (México), junto à fronteira com os EUA, entre meados dos anos 1990 e a década dos anos 2000.

Os assassinos dessas mulheres, em grande parte operárias de montadoras multinacionais, tais como Nike, Sanyo, Microsoft e outras, jamais foram levados a juízo, o que, segundo Marcela Lagarde, configura obstrução da Justiça, impunidade dos assassinos e, com isso, a co-responsabilidade do Estado pelos crimes cometidos. Em outras palavras: Feminicídio é crime capital e crime contra o Estado. A tese faz sentido.  Mata-se a mulher porque ela é mulher – ora, e o que vale uma mulher? Feminicídio é isso: um sistema de execução de mulheres.

Em plano paralelo, o silencioso, não apenas justo, mas imperativo avanço das mulheres, em todos os terrenos da atividade humana, sobretudo econômica e política, poderia insinuar que estão contados os dias de vida do velho machismo: onze anos de escolaridade é o que 61 por cento das mulheres em posições dirigentes oferecem à Economia Brasileira; os homens, em comparação, somam apenas 53 por cento. 21 por cento dos empreendimentos no Brasil são dirigidos por mulheres com titulação universitária, que apenas 14 por cento dos colegas masculinos consegue ostentar.

A profissionalização, a independência financeira, a mais discreta manifestação de comportamento emancipado, parecem ter mergulhado o velho e hipócrita sistema patriarcal em sua mais profunda crise.

A redistribuição do poder no tabuleiro dos papéis tradicionais tornou-se prato indigesto aos machões, estimulando sua disposição à violência. Desde então, matam à torta e à direita, a faca, o “berro” e o cacete atravessando em diagonal as classes sociais.

A cada 31 horas, uma mulher é trucidada na Argentina; no Brasil, a cada duas horas.

O decadente sistema patriarcal, a confraria dos machos protege os homens - Mas quem, afinal, Sras. Presidentas, protege as mulheres?




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