(Texto gentilmente cedido pela autora)
Su muerte
sí, su muerte fue gloriosamente suya, y en ese orgullo me afirmo y soy quien
renace de ella. [2]
Rodolfo
Walsh
No es un
arma guardada que rememora los disparos, sino un hacer violento, en los cuales
la escritura agrede la molicie y espanta los oropeles Daniel
Camels
Su
cadáver estaba lleno de mundo. [4]
César Vallejo.
Na
quinta-feira 24 de março de 1977, a um ano do golpe militar, Rodolfo Walsh
passa a limpo a Carta abierta de um escritor a la Junta Militar (in:
LINK, 1998) e um conto sobre um homem, Juan, que atravessa o Rio da Prata,
excepcionalmente seco, a cavalo, enquanto o rio volta a crescer [5] .
Walsh não
publicava ficção desde 1967, quando apareceu Un oscuro día de justicia [6] (1993),
o último da série dos irlandeses, que ele pretendia continuar [7] .
Mas o conto que agora tem entre mãos, Juan se iba por el río, havia
sido pensado em 1967 como o primeiro capítulo de um romance, a “novela séria”,
que queria escrever e que ele chamava de “novela geológica”, elaborada por
camadas.
El primero de sus temas recoge una tradición oral que los prácticos y
baqueanos del Río de la Plata transmiten de padres a hijos: es la historia de
un hombre que, a fines del siglo XIX, consiguió atravesar el río a caballo,
durante una bajante prodigiosa. [8] (in:
LAFFORGUE, 2000: p. 50.)
Nessa
retomada da ficção escolhe uma trama das muitas que vinha ruminando por anos,
uma história de cavalos e de água. Seu pai, ele contou numa nota
autobiográfica, falava com os cavalos, tinha sido morto por um, que o esmagou
ao cair após enfiar a pata num buraco. Havia deixado outro cavalo para a
família, chamado Mar Negro, que Walsh mesmo levou numa longa viagem para a
terra de um parente que poderia ficar com ele (in: LAFFORGUE, 2000: p. 241 et
FERREIRA, 1985).
Assina a Carta
abierta de un escritor a la Junta Militar com seu nome, sobrenome e
número de documento de identidade. Faz muito tempo que não publica seus
escritos assinados. Desde que se enquadrou na organização Montoneros, e ainda
antes, quando militava no jornalismo da resistência, sua assinatura sumia,
indicando ora que o texto era resultado de uma elaboração coletiva, ora que era
assumido pelo coletivo da organização. Mas em 1977, e depois da sua polêmica
com a direção de Montoneros, começa a escrever o que ele chama de “cartas
pessoais”, que circulam entre poucas pessoas e que ele assina. A polêmica de
Walsh aponta para o sectarismo e o militarismo da organização, que vem se
afastando da população que pretende dirigir. Propõe um “retorno” às massas,
desmontando os vínculos de aparato e reconstruindo a confiança a partir de uma
relação mais estreita com os não militantes. (in: BASCHETTI, 1994)
Chega a
escrever três “cartas pessoais”: Carta a Vicky (in:
BASCHETTI, 1994), Carta a mis amigos, (in: LAFFORGUE,
2000) e Carta de un escritor a la Junta Militar. Na que
inicia a série, ele expõe seus sentimentos ao ser informado, pelo rádio, da
morte da sua filha, também militante montonera. O assunto é a própria dor, que
não pode ser contada senão recorrendo a voz de um desconhecido passageiro de
trem suburbano, ouvida de relance. A dor, então, pode ser formulada e
compartilhada. A segunda, é o relato da morte de Vicky reconstruído por Walsh a
partir do testemunho de um soldado que participou do cerco à casa onde ela se
encontrava. Na terceira, faz uma análise minuciosa da destruição do país
operada pela Junta Militar, a um ano do golpe. A assinatura indica o
compromisso pessoal e o texto convoca o leitor a divulgar a carta: tenga
la satisfacción de un acto de libertad[9] . Assim
retoma a proposta da sua polêmica com a direção de Montoneros, ao retornar à
relação corpo-a-corpo, olho-no-olho, que tinha sido substituída pela hierarquia
e pela concepção militarista que reduz a ação política a um automatismo. Walsh
a transforma num ato de liberdade, não de um herói, mas de um homem ou de uma
mulher que se atrevem a contradizer aquilo que os poderosos impõem. O que supõe
uma decisão pessoal, carregada de subjetividade, que se aproxima a outras
decisões pessoais e a outras subjetividades. Vozes que ele recolhe do
quotidiano, do indivíduo que se achega a apresentar um testemunho.
Está
morando desde o ano anterior numa casa em San Vicente, um subúrbio do grande
Buenos Aires, com a sua companheira. Comprou a casa com a identidade de um
professor de inglês aposentado. Fez uma horta, plantou alfaces. Na sexta-feira,
25 de março, disfarçado de aposentado, com chapéu de palha, botas e carregando
uma pasta de plástico onde leva alguns exemplares da Carta... que
acaba de escrever, dirige-se à estação de trem. Na bota, um revólver de pequeno
calibre.
Walsh veste
o disfarce do homem que alguma vez foi. Afinal, não podemos nos disfarçar senão
daquilo que, de alguma maneira, também somos. Ele assume a aparência daquele
que foi mais de vinte anos atrás, quando suas opiniões políticas não se
traduziam em ação. Um homem que cuidava da sua casa e se interessava pelo
xadrez e a literatura policial, um tradutor e editor de relatos de suspense. Em
1956, a voz de um soldado que havia se entrincheirado junto à janela da sua
casa o tirou da rotina dessa vida tranqüila. O soldado, a quem o azar havia
colocado do lado das tropas leais ao governo militar que tinha derrubado Perón,
foi atingido por uma bala. Sentindo-se abandonado pelos colegas e agonizando,
sussurrou como para si mesmo: No me dejen solo, hijos de puta [10] .
A voz do soldado surpreendeu Walsh. Ele pensava que um soldado “costuma” morrer
dizendo¡Viva la Patria! [11] ,
como os livros contam que morrem os soldados, mas o soldado não se sentia
morrendo pela pátria, não tinha identidade espiritual com a causa que defendia
com o corpo. O incômodo que lhe produziu aquela frase destoante
levou Walsh a indagar, enquanto jornalista, pela sorte dos que morreram durante
o levantamento. Para isso, teve de trocar de nome, abandonar a casa familiar, a
rotina do trabalho e o xadrez com os amigos do bar. A voz do soldado o lançou
para além dessa vida tranqüila, cada descobrimento o levava a um compromisso
mais profundo. Num princípio, um compromisso pessoal na defesa da verdade que
obtinha das testemunhas das injustiças, mas, depois, um compromisso militante
para com todos os humilhados e ofendidos. Nisso consistiu para o autor escrever Operación
Masacre (2000b), relato dos assassinatos de ‘56: um compromisso que
parte da sua própria ação literária, o de recolher a voz desses humilhados e
ofendidos. Não falar no seu nome, em representação, mas dar curso a sua
enunciação. Assim inaugurou um registro estético e uma maneira de fazer
jornalismo.
Modificou sua condição de escritor e sua escrita. Como escreve Walter
Benjamin:
Agora, é claro que as opiniões importam muito, mas a
melhor opinião nada aporta se não faz algo de útil com aqueles que a sustentam.
A melhor tendência é falsa se antes não mostra a atitude a ser seguida. E essa
atitude, o escritor apenas pode mostrá-la onde ele demonstra alguma coisa, ou
seja escrevendo. (in: BACCEGA, 1998: p. 45)
Em 1965,
publicou Esa mujer (in: WALSH, 2000a). Nesse conto, narrado
em primeira pessoa, um intelectual visita um militar. O militar sabe onde se
encontra o cadáver de Eva Perón, seqüestrado pelas Forças Armadas. O
intelectual quer o cadáver. É a forma que ele encontra de ir ao povo, se unir à
sua indignação e não mais estar sozinho.
Algún día (pienso en momentos de ira) iré a buscarla.
Ella no significa nada para mí, y sin embargo iré tras el misterio de su
muerte, detrás de sus restos que se pudren lentamente en algún remoto
cementerio. Si la encuentro, frescas altas olas de cólera, miedo y frustrado
amor se alzarán, poderosas vengativas olas, y por un momento ya no me sentiré
solo, ya no me sentiré como una arrastrada, amarga, olvidada sombra [12] . (in: WALSH,
2000a)
O cadáver
escamoteado é metáfora da verdade. Um corpo no lugar de uma escrita. Mas o
corpo também escreve. O conto é relato de um acontecimento real, ao qual a
escrita lhe dá sentido. Walsh esteve mesmo na casa do militar e negociou com
ele. Mas é no conto onde ele estabelece as suas lealdades e explica seus
motivos: escrita sobre escrita, ação e registro, quando o registro também é
ação e a ação se articula como uma escrita, suporte que é de metáforas
poderosas.
Mas isso
foi há muito tempo. Já estamos no caminho para a estação e Walsh encontra com o
dono da imobiliária que lhe vendeu a casa, quem lhe entrega a escritura. Ele a
guarda na pasta de plástico. Não dá tempo para retornar e deixar os papéis na
sua casa, os horários não lhe permitem esse luxo.
Walsh e sua
mulher pegam o trem e descem na estação Constitución, na capital. Ali
despedem-se: ele tem um encontro. O encontro está “envenenado”. Um companheiro
o entregou na mesa de tortura. O escritor caminha pela rua San Juan, em direção
a Entre Rios. Em Sarandí, um grupo de policiais e marinhos o emboscam. Walsh
responde ao fogo com o revólver calibre 22 que guarda na sua bota. O pequeno
calibre da sua arma não é páreo para o armamento dos marinhos e policiais, mas
serve para alguma coisa: está decidido a não se deixar prender vivo. Como fez
sua filha, em setembro do ano anterior, escolhe não se entregar.
Antes
poderia ter saído do país, o que não teria sido desonroso. Mas preferiu
permanecer e trabalhar na ANCLA, a Agência de Notícias Clandestina, desde onde
fazia, junto com sua equipe, tarefas de informação e contrainformação. E na
Cadena de Notícias, rede de circulação de notícias de caráter horizontal.
Prefere escrever as “cartas pessoais” e retomar a ficção com Juan se
iba por el río. O seu jeito de ir pelo rio é o de se internar mais e mais
no território do seu país, como tinha feito com seu pai, na sua infância,
atravessando a cavalo as lacunas do Sul da província de Buenos Aires (FERREIRA,
1985).
Talvez já
nem esteja enxergando direito, continua atirando até que acabam as balas. E
talvez pense nas cartas ou tenha lembrado dos papéis da casa que carrega na
pasta. Também é possível que lembre de Vicky nessa hora. Mas também é provável
que esteja pensando num último galope desatado, pelo leito de um rio subitamente
convertido numa pampa sem limites.
Depois, é
visto mal ferido por prisioneiros na Escuela de Mecánica da Armada, junto a uma
grande quantidade de papéis roubados da sua casa de San Vicente, cujo endereço
é descoberto pelos papéis da imobiliária que leva na sua pasta. Somem com seu
corpo e com os seus escritos inéditos. Ambos perigosos, ambos juntos,
indissoluvelmente unidos, para sempre.
[1] Este trabalho é subproduto de um estudo mais extenso, em
andamento, sobre Rodolfo Walsh: RODOLFO WALSH, el criptógrafo
–Literatura y realidad.
[2] Tradução da autora do artigo: Sua morte sim, sua
morte foi gloriosamente sua, seguro-me nesse orgulho e sou quem renace dela.
Walsh refere-se ao sentido da morte da sua filha, após relata-la aos seus
amigos (Carta a mis amigos in: BASCHETTI, 1994: p. 191).
[3] Tradução da autora do artigo: Não é uma arma
guardada que lembra os tiros, mas um fazer violento, nos quais a escrita agride
a molície e espanta os enfeites. (CAMELS, 2001).
[4] Tradução da autora do artigo: Seu cadáver estava
cheio de mundo.
[5] O original e único exemplar deste conto permanece
seqüestrado pelos militares que vasculharam a sua casa em San Vicente em 25 de
março de 1977.
[6] O publicou na revista Adán, uma revista
“masculina”, entre fotos e matérias mais ou menos eróticas.
[7] Em entrevista a Piglia, em 1967, fala sobre as suas
idéias para continuar a série (in: PIGLIA, 1993).
[8] Tradução da autora do artigo: O primeiro dos
seus temas recolhe a tradição oral que os práticos e conhecedores do Rio de la
Plata transmitem de pai para filho: é a história de um homem que, no final do
século XIX, conseguiu atravessar o rio a cavalo durante uma grande decida do
nível da água.
[9] Tradução da autora do artigo: tenha a satisfação
de um ato de liberdade.
[10] Tradução da autora do artigo: Não me deixem
sozinho, filhos da puta.
[11] Tradução da autora do artigo: Viva a Pátria!
[12] Tradução da autora do artigo: Algum dia (penso
em momentos de ira) irei procurar-la. Ela nada significa para mim,porém irei
atrás do mistério da sua morte, atrás dos seus restos que apodrecem lentamente
nalgum remoto cemitério. Se a encontrar, frescas altas ondas de cólera, medo e
frustrado amor levantarão-se, poderosas vingativas ondas, e por um momento já
não me sentirei só, já não me sentirei como uma arrastada, amargurada,
esquecida sombra.
Silvia Beatriz Adoue, é pedagoga,
historiadora e ensaista argentina, há 30 anos radicada no Brasil. Foi metalúrgica,
gráfica e professora primária em Grand Bourg (Provincia de Buenos Aires). Licenciada
em Matemática pela USP, fez Mestrado em Integração da América Latina no
PROLAM/USP e doutorou-se em Letras pela FFLCH/USP com a Tese, “Rodolfo
Walsh, o criptógrafo-relações entre escrita e ação política na obra de Rodolfo
Walsh”. Leciona na Escola Nacional Florestan
Fernandes do MST.
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