Ensaio
Essa
vagabundagem começara após a morte da mãe, Nathalie. Quando mãe e
filha se dirigiam a Bône, norte de Argélia, em maio de 1897,
abrira-se uma nova e dramática etapa na vida de Isabelle.
Compartilhando uma casa modesta do bairro árabe, ela e a mãe convertem-se ao Islã. Seis meses depois de instaladas, sua mãe também morre fulminada por um ataque cardíaco, em seguida se suicida seu meio-irmão, Wladimir.
Suas tendências depressivas impelem-na à fuga, para longe dali, pois alguém dissera que “viver não é necessário, mas partir é preciso". Para Isabelle, muito pelo contrário, partir é viver.
Por
um estranho efeito de retorno, ali, onde a mirada só pode
pendurar-se em nada mais que no horizonte, a viagem se faz interior:
"El Ued [curso de água no deserto] me alcançou como revelação
de beleza visual e de profundo mistério, o apossamento de meu ser
errante e inquieto por um aspecto da terra que não havia
suspeitado", escreve ela.
Nesse oásis, em agosto de 1900, encontrará o homem de sua vida, Slimane Ehnni, e receberá o rosário dos iniciados pela Qadriya. Com natureza predisposta, aprende as técnicas sufis do êxtase místico e chamar-se-á Si Mahmoud Saadi; pseudônimo que sobressairá sobre os demais e que recorda o poeta viajante de Shiráz, na Pérsia, quem, segundo Isabelle, no séc. XIII enaltecia no amor "a renúncia e a arte de domar-se a si mesmo".
A
descrição de sua conversão ao Sufismo é muito lacônica em seu
seus textos, referida apenas numa carta enviada à Dépêche
Algérienne, de 6 de julho de 1901.
Na verdade, frequentara três zaouïas – conventos súfis – diferentes em El Oued, e os menciona perante um juizado para contextualizar a tentativa de assassinato perpetrado contra ela por um seguidor fanático da zaouïa rival de Tidjanya. Ela o perdoa, mas o árabe é condenado a pena gravíssima, e ela, expulsa da Argélia.
Mulher européia, de comportamento impensável para os padrões do mundo árabe, Isabelle impõe-se à sociedade islâmica e à ritualística súfi, pois os homens da Qadriya oferecem-lhe as novas vestimentas, tanto femininas, como masculinas, que terá liberdade de usar do modo que mais lhe apetecer – generosidade incomum, sibila-se, porque muito provavelmente com seu mestre a vinculara algo mais que amizade espiritual, apenas.
George
Sand e Mata Hari
Isabelle
Eberhardt é um misto do travesti Georges Sand e da glamurizada espiã
Mata Hari, transplantados aos confins do Saara meridional
Incensada por uns, devido às suas audaciosas andanças como mulher européia desacompanhada - no Saara, mas também no coração de sociedades fortemente machistas e excludentes do feminino - por outros, Eberhardt é lembrada como a jovem ocidental escapista, que incorpora a dolorosa experiência, mas também o prazer pervertido dos relacionamentos incestuosos, fincado na personalidade de uma mãe traidora e insegura, atraída por relacionamentos no mínimo exóticos, e fortalecida ainda pelo papel de uma irmã dominadora e de dois meios-irmãos, também de paternidade duvidosa; um deles, incestuosamente vinculado a Isabelle.
“Eu
não sou mais que autêntica, uma sonhadora que deseja viver longe do
mundo, viver a vida livre e nômade, para em seguida tentar expressar
o que viu e talvez comunicar a alguns poucos, o frisson melancólico
e charmoso que experimentou na contemplação dos tristes esplendores
do Saara”, ela escreve na dolorosa tentativa de exorcizar o passado
boêmio iniciado em Genebra, quando frequentava círculos
anarquistas.
Em Bône, na Argélia, envolve-se em encontros amorosos ditados por colonos franceses, invasores que costumam receber apenas ”nativas” para seu consumo de ”carne fresca”.
Agora acaba de retornar de Túnis, de noites turbulentas vividas entre amigos e amantes árabes.
A promiscuidade cobra seu preço, e por vezes ela intui que a sífilis infectou seu fruto.
O Islã proíbe o consumo de bebidas alcoólicas aos seguidores de fé, mas Isabelle contrabalança seu alcoolismo com dosagens de profundas convicções religiosas. Por momentos é capaz de experimentar o êxtase, e não raramente gostaria de perder-se na mera contemplação do deserto.
Expulsa
da Argélia, à raiz de um processo criminal, mas com evidente
intenção política (a Argélia era uma colônia francesa, há mais
de oitenta anos invadida e anexada por Napoleão), ela só conseguiá
regressar ao deserto graças ao seu casamento com Slimène Ehni,
suboficial de dupla nacionalidade.
Mas o vínculo com o exército francês levanta suspeitas: por acaso suas incursões aos territórios (aqui definidos no mais estrito senso geográfico) interditados aos europeus no Saara, dissimulavam missões de espionagem para o exército francês?
Alguns argumentos baseiam-se sobretudo na inexistência de qualquer reflexão profunda sobre o Sufismo nos escritos de Eberhardt, especulando tratar-se de uma convertida de fachada. Outro argumento, irrefutável, é a lembrança de sua estreita amizade como o Gen. Hubert Lyautey.
Publicado em 1994, em seu ensaio ”Colonialism, Transvestism, and the Orientalist Parasite” (”Belated Travellers” - Durham & London, Duke University Press), Ali Behdad reitera a colaboração de Isabelle com o poder colonialista francês no Saara.
Gen. Lyautey
Filha
de Rimbaud?
”De
quem é mesmo filha, Isabelle Eberhardt, cuja vida novelesca já
começara como mistério?”.
Sem rodeios, já em 1943 Pierre Arnoult atribuia em sua biografia "Rimbaud" (Éd. Albin Michel) a paternidade de Isabelle ao autor de "Uma estação no inferno”, baseando-se em três indícios algo frágeis para conformar prova documental:
1)
as semelhanças das compleições físicas de Isabelle e Rimbaud;
2)
a presença do poeta na região do lago Lemans, em junho de 1876, a
cujas margens jaz Genebra, onde naqueles momentos vivia Nathalie de
Moerder;
3)
o nome Isabelle Wilhelmine, da recém-nascida, segundo Arnoult
inexplicável pelo lado dos Moerder-Trophimowsky, mas vinculável a
Rimbaud por intermédio de sua irmã preferida, Isabelle, que também
era o nome da rainha da Holanda, em cujo exército Rimbaud acabara de
alistar-se.
Contudo,
em "Vie d´Isabelle Eberhardt", Francoise d'Eaubonne,
além de corroborá-los, agrega a tais indícios um misterioso
juramento da cavaleira do deserto, endossado pelo testemunho de
várias pessoas: "Morrerei convertida em muçulmana, como meu
pai!".
Aqui, Isabelle jamais poderia estar se referindo ao monge anarco-islâmico, Trophirnowsky, afirma d'Eaubonne, reiterando que não resta remédio que assombrar-se diante do estranho tropismo que o Islã conseguira obrar nos destinos, tanto de Rimbaud, como de Isabelle Eberhardt, porque ambos teriam sido conversos sinceros. Com essa justificativa rebatendo a tese de uma conversão superficial da loira aventureira, travestida de homem.
Apocalipse
em Aïn-Sefra
Em
21 de outubro de 1904, internada num hospital da pequena cidade de
Aïn-Sefra, para tratar de uma malária que a assaltava
periodicamente, têm desenlace trágico as andanças da
teuto-russa-suíço muçulmana: uma tempestade que parecia o fim do
mundo, rapidamente transforma os baixios do lugarejo em torrente
furiosa de barro e escombros.
Os casebres modestos são varridos do mapa como fossem raminhos de palha. Percebendo o perigo, Isabelle arranca o marido da casa, mas retorna para apanhar um manuscrito e, quando tenta sair pela porta, a casa se derruba sobre ela; seu corpo encontrado somente dias depois.
Quando faleceu, Isabelle tinha vinte e sete anos.
Com
sua morte inicia-se o resgate de sua biografia, e sua reputação é
objeto de distorções gritantes, contra as quais logo se insurge o
escritor norte-americano, Paul Bowles, um dos re-descobridores de
seus textos e autor de "O céu que nos protege".
Exceção feita a artigos esparsos, publicados em jornais sem destaque, Isabelle não conseguira publicar nada em vida. "Mas a quê referir-se, se grande parte do que ela escreveu, foi recolhido após sua morte [pelo general] Lyautey, e talvez já naquele primeiro momento submetido a censura problemática?" – questiona o jornalista argelino, Beghdadi Boutkhil (”Lyautey et les oeuvres d’Isabelle Eberhardt”, Le Quotidien d'Oran, 20-21/10/2004), advetindo: “Deve tomar-se por obra efetiva ou faltante aquilo que o general enviou para publicação ao senhor Barrucand, redator-chefe doe jornal L´Akhbar? Estes fatos são notórios: em 1906, Barrucand retocou, corrigiu e censurou os manuscritos [de Isabelle] destinados à publicação”.
Referindo-se
ao Maghreb, Isabelle Eberhardt disse certa vez: “Eu queria possuir
este país, e este país acabou me possuindo”.
A
obra póstuma
● Eberhardt,
Isabelle & Barrucand, Victor: À l'ombre chaude de l'Islam,
Arles, Actes Sud, 1996 ;
● Pages
d'Islam, París, Fasquelle, 1908 ;
● Notes
de route, París, Fasquelle, 1908 ;
● Mes
journaliers, París, La Connaissance, 1923 ;
● Mes
journaliers, París, Les Introuvables, 1985;
● Isabelle
Eberhardt racontée par ses lettres et journaliers, (présentation et
commentaires: Aglal Errera) Arles, Actes Sud 1987;
● Écrits
sur le sable. Oeuvres complètes. vol. I, París, Grasset, 1988.
Oeuvres complètes. vol. II. Edição, notas e apresentação: Marie
Odile De la Cour et Jean René Huleu. Prefácio: Edmond Ch. Roux,
París, Grasset, 1990.
● Un
voyage oriental: "Sud oranais", (De la Cour, M.O.; Huleu,
J.R.: Edición) París, LGF, 1991. Crônica.
● Un
désir d'Orient et Nomade j'étais, (biografía por Edmonde
Charles-Roux) Livre de poche, 1997.
● Écrits
intimes: lettres aux trois hommes les plus aimés, (De la Cour, M.O.;
Huleu, J.R.: Presentación) París, Payot, 1991. Reed., Payot, 1998.
Correspondencia.
● Notes
de route "Maroc, Algérie, Tunisie" (Jean Marie Durou),
Arles, Actes Sud, 1998.
● Au
pays des sables (nouvelles inspirées par un séjour au Sahara en
1902), París, Joëlle Losfeld, 2002.
● Mes
journaliers (cartas e diários íntimos), París, Joëlle Losfeld,
2002.
●Isabelle
Eberhardt / L'Écriture de sable, Alger, Barzakh, 2002.
● País
de arena, (Inmaculada Jiménez) Madrid, del Oriente y del
Mediterráneo, 1989. Edición revisada y corregida, del Oriente y del
Mediterráneo, 2000.
● The
oblivion Seekers, 13 peças de Eberhardt traduzidas ao inglês por
Paul Bowles, 1972.
2 comentários:
Que texto e história interessantes. Não conhecia sequer o nome Isabelle Eberhardt. Mais uma corajosa mulher. Aliás, percebo que gostas destas personas. Eu também.
Obrigado, mas identifique-se, por favor, para conferir credibilidade ao comentário.
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