02 janeiro 2012

Sergi Pàmies - Clima ruim na Literatura

Foto: divulgação


A mudança climática é um gênero literário com seus personagens, como a geleira e a desertificação, e seus críticos, popes e pontífices.

A mudança climática é um gênero literário. Sua decadência é discutida em fóruns internacionais e as notícias que tratam de sua existência convidam a pensar que ela acabará em catástrofe. Exatamente como o romance. Exatamente como a literatura de um modo geral. Exatamente como quase todas as línguas nas quais se escrevem os romances em particular e as literaturas em geral. Um dos protagonistas desta história de paixões e indiferenças é o aquecimento do planeta, narrador onisciente, um tipo duro e sem escrúpulos. Não se trata de um protagonista qualquer. Ele tem o poder de fazer com que nos sintamos culpados, uma vez que, assim como a literatura e Frankenstein, foi criado pelo homem.

A mudança climática mescla elementos de romance histórico mas, em muitos aspectos, é pura ficção científica. Sabe-se como começou, mas a partir de então o argumento se perde em digressões experimentais próprias do nouveau roman ou do realismo mágico. Afinal, o aumento do nível do mar e a inundação de regiões e países inteiros é algo que a Bíblia já previu, e, mais recentemente, Gabriel García Márquez. No que diz respeito ao aumento das temperaturas e à mudança dos hábitos alimentares, a melhor ficção científica já os anunciou sem a necessidade de contar com diretores de marketing tão eficazes e em evidência como Al Gore.

Al Gore é, para a mudança climática, o mesmo que Harold Bloom para a literatura. Fixa os cânones, influencia a comunidade dos especialistas e cria mensagens que se espalham com a potência de uma epidemia. Fisicamente, contudo, Bloom e Gore não são parecidos. O primeiro poderia ser o rei de um país autárquico e ficcional (primo-irmão de Orson Welles), ao passo que o segundo parece um fabricante de impressoras, adepto de tratamentos cosméticos faciais. Para o leitor da presente história, os ganchos argumentativos certamente se multiplicam. As emissões de CO2, por exemplo, configuram um personagem fascinante. Inventadas pelo homem, estimuladas por sua vontade irrefreável de ambição e enriquecimento, elas acabaram com o equilíbrio e ameaçam alterar a biosfera. A potência do personagem, ademais, pode ser vislumbrada em metáforas perfeitas, graficamente agressivas e com uma alta carga dramática: chaminés industriais cuspindo seus canhões de fumaça ao céu virgem, ou engarrafamentos automobilísticos somando a maldade de milhões de escapamentos.

Outro dos meus personagens favoritos é a geleira que, depois de resistir durante milhares de anos, está se fendendo. Já vimos a cena centenas de vezes na televisão: o compacto geleiro, filho, neto e bisneto de geleiras ancestrais, limitado por um fundamento natural de águas límpidas e gélidas, se rompe e, ruidosamente, despenca contorcendo-se de dor, dramaticidade e impotência. Em câmera lenta, e sublinhada por uma trilha sonora tendenciosamente depressiva, a imagem transmite ainda mais dor. A cena já faz parte de nossos pesadelos, e temos todo o direito de suspeitar que, assim como nas melhores intrigas de um romance noir, alguém se encarregou de repetir a mesma cena um punhado de vezes para manipular os elementos de um crime que todos nós podemos ter cometido. Ficamos encantados em ver a cena de novo, e sentimos falta de alguns pinguins saltando desesperada e disciplinadamente ao mar, sem dúvida para completar a sensação de suicídio coreográfico.

A mudança climática é insaciável. Sua estrutura narrativa é antropofágica: ela precisa devorar-se a si mesma para manter os níveis de intriga, angústia e esperança que preocupam um número cada vez maior de leitores. No princípio, fazíamos pouco caso dela. Alguém nos falava da mudança climática, mas não lhe dávamos importância. No entanto, ela foi impondo aos poucos seu poder de sedução, aliás mais próximo daquele que caracteriza os vilões do que os heróis. E ali está ela, crescendo a cada dia, brincando com nosso medo e nos mantendo na incerteza, invadindo nossos esbanjamentos aprazíveis e egoístas. Assim como os melhores livros, ela nos obriga a nos fixar em sucessivas evoluções, nos seduz com novas reviravoltas no enredo, cada vez mais complexas se comparadas às anteriores, cada vez mais surpreendentes.



A desertificação, por exemplo, que grande personagem! Graças à tecnologia informática, podemos visualizar seus efeitos devastadores. Seu encanto nos obriga a fixar a tela sem pestanejar. De modo geral, vemos uma cidade agradável em um belo dia de sol. As pessoas passeiam pela rua. Os pássaros cantam. As hipotecas são pagas pontualmente. As equipes da limpeza municipal recolhem o lixo previamente selecionado pelos cidadãos. Tudo parece normal. E, de repente, uma voz em off, com ênfase pseudocientífica e a teatralidade de um médico especialista anunciando um tumor, nos diz que, por culpa da desertificação provocada pela mudança climática, a cidade será arrasada por um sol implacável e por temperaturas que nos obrigarão a mudar nosso modo de vida. E então, depois de uma rajada de efeitos especiais, vemos a mesma cidade, assada como a costela de um churrasco, chamuscada por seus próprios excessos, vítima das iras do clima. Nessas reconstruções fictícias de desastres futuristas, nunca vemos uma cidade asquerosa, corrupta, uma espécie de Gotham City sombria e degenerada, salva pelo aquecimento do planeta. Não seria comercial, não teria o caráter atraente da catástrofe, o sensacionalismo dos melhores argumentos de best-sellers. Se fôssemos a um produtor de filmes e lhe disséssemos que queremos contar a história de uma mudança climática que, em vez de prejudicar, melhora as condições de vida, ele nos diria que ela não é verossímil, que ele não investirá dinheiro nisso e que os adolescentes devoradores de pipoca jamais pagarão para ver uma história de terror sem medo.




Assim como a literatura, a mudança climática também tem seus críticos, seus popes, seus pontífices. Eles sabem distinguir simples chuvas torrenciais de um tufão provocado pelo buraco na camada de ozônio com a mesma facilidade com que um crítico literário é capaz de detectar as influências de Béla Bartók na prosa de, digamos, Alejo Carpentier. Também sabem diagnosticar as mudanças, ainda que, de um modo geral, quase nunca acertem. Assim como a crítica literária, a crítica da mudança climática organiza congressos, jornadas e encontros de especialistas nos quais, a partir das nove da noite, se bebe um pouco a mais. Cuidado com esses momentos. Quando um crítico da mudança climática bebe demais, cantarola noturnos de Chopin e passa a fitar seu copo de uísque e os cubinhos de gelo, supurando melancolia, como alguém que contempla o oceano corroendo a superfície vulnerável de uma geleira.

A mundança climática nunca se apaixona. Os leitores estão fartos de sentimentalismos e romantismos, e adoram os tipos implacáveis que não se detêm diante de nada e que, apesar dos obstáculos, seguem avançando. E ali está ela, proporcionando estatísticas negativas sem cessar, multiplicando seus efeitos para desmentir qualquer interpretação positiva, fornecendo carniça aos amantes de histórias fortes, sórdidas e desesperadas. Trata-se, ademais, de um romance que jamais termina. Começou com pequenas anedotas, mas, lentamente, passamos a ver que o drama era maior, que estava em todo lugar, estendendo seus tentáculos bem além do óbvio. Se combatem a mudança climática, ela se torna mais forte. Se tentam enganá-la, ela se rebela. Nem mesmo Steven Spielberg poderia filmar esse romance. E, se o fizesse, veríamos populações inteiras olhando pela janela e, por sua expressão, adivinharíamos que se trata de um monstro impossível de ser descrito e do qual entenderíamos apenas o medo que produz, o terror que sugere. Ninguém tentaria fugir porque, vá você para onde for, a mudança climática o encontrará, se meterá dentro de você, violará seus filhos e seus pais, roubará suas economias, destruirá suas propriedades e o converterá naquilo que você é: um ser assustado e temeroso diante da previsão meteorológica.

A mudança climática é uma forma de medo verossímil. Existem outras, e todas são justificadas com argumentos mais ou menos científicos. Um dos luxos de nossa época é que os medos se multiplicam. Nos livros de Asterix e Obelix, o único medo era que o céu caísse sobre a cabeça dos gauleses. É o primeiro prenúncio da mudança climática intimidante. A peculiaridade da mudança climática é que ela intervém em outros medos. Se antes tínhamos medo de morrer ou de ficar arruinados, agora sofisticamos esses temores e pensamos que morreremos de sede e ficaremos arruinados porque as secas e os tufões acabarão com nossas propriedades. Há imagens que confirmam tudo isso: Nova Orleans, Birmânia. A televisão estará sempre presente para colher todas as imagens que, devidamente manipuladas, alimentarão a indústria do terror meio ambiental. Isso tem justificativa? Mas é claro. Em nome da divulgação e da pedagogia são ditas muitíssimas verdades, porém, além disso, elas são empanadas com a farinha de rosca dos interesses. Como é possível assustar uma população já cética e desconfiada? Exagerando ainda mais e, com o talento de um Stephen King, fazendo com que os sintomas de alarme se colem nas fendas menos perceptíveis do cotidiano.

Certa manhã, Gregor Samsa acordará metamorfoseado em uma enorme barata que, em vez de refletir sobre sua mutação existencial, pensará que é o produto de uma mudança meio ambiental. Proust irá se deitar bem cedo porque o tempo perdido desfilará pela janela em forma de ciclone ou desertificação. Thomas Mann não encontrará lugar em nenhum balneário porque alguém terá descoberto que as águas termais são, no fundo, insalubres.

A mudança climática é, além de uma certeza, uma indústria. Funciona seguindo os caprichos da oferta e da procura e logo poderá estar cotada na bolsa. Seu mercado é infinito, já que todos necessitamos consumi-la, concordar com seus encantos para nos sentir culpados e arrastar uma consciência pesada que nos transforme em contribuintes dóceis, votantes disciplinados, pais e maridos exemplares.

Às vezes, quando aumenta o temporal de notícias catastróficas, saio à rua e passeio por aí. Vejo as árvores, o sol, o céu azul e começo a suar, que é o que sempre fazemos no Mediterrâneo. Vejo uma menina tomando um sorvete, uma mulher vaidosa de pernas bonitas e um adolescente colocando à prova o equilíbrio de seu skate. Recordo que, há anos, o sol era sinônimo de alegria. Todos queríamos que fizesse sol e o relacionávamos com praias, festas até a madrugada e banhos à luz da lua. Agora o sol é um inimigo, uma vez que nos recorda dos erros meio ambientais cometidos. A chuva, que sempre foi considerada um embaraço e um obstáculo à vida neste rincão do planeta, tem cada vez mais prestígio. Chantageados pelas mensagens dos agourentos e pregadores, cada vez que chove, em vez de nos enfadarmos, aplaudimos e consultamos, pela internet, o nível das represas. Assim, pois, antes que ser um amante do sol se transforme em crime, quero dizer mais uma vez em voz bem alta: o tempo bom me encanta, o sol, o calor e o clima mediterrâneo.

Sergi Pàmies (1960, Paris)

chegou a Barcelona em 1971. Colabora com diversos suplementos e revistas culturais, trabalha como tradutor e é autor de numerosos relatos e romances. Escreve em catalão. Seu volume de relatos La gran novela sobre Barcelona foi um êxito internacional.

Tradução: Marcelo Backes
Copyright: Süddeutsche Zeitung

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