20 outubro 2015

Frederico Füllgraf - La Surfistinha, ou um bordel chamado Brasil


Crônica

Primeira semana do ano, a das ambigüidades entre aquilo que foi e o que ainda não é, a cidade murcha de trânsito insano e corrida consumista idem, flano aliviado pelas calçadas sem rostos conhecidos. 

Olhar fixo na livraria do outro lado da rua, com a duração de um cafezinho, questiono o silêncio do asfalto, o do mercado editorial sobre o assalto ao trem pagador da República, perpetrado desde 2003, mas descoberto apenas em 2005 - quem sabe, agora, alguma edição-relâmpago com o sugestivo título "Como nasci disléxico e se fiz celebridade" (Delúbio Soares, sem licença poética do Jamil Snege) ou "The truth - how I turned rowdy leftists into trustfull payers" (Duda Mendonça, "in exile"). Ou ainda a variante esotérica, o jornalismo destro sem provas em terra, apelando ao Além: "Os dólares de Fidel para o PT – Veja entrevista da testemunha morta em exclusiva sessão de psicografia".

Retorno à livraria já visitada antes do Natal, mas, nada, nada de realmente novo.


Lá dentro, o olhar distraído tenta evitar totens e torres com os "mais lidos" e os "recomendados" – em vão, pois o campo visual é fatalmente invadido pelos onipresentes Crichtons e quetais, das letras de aeroporto, e é quando Salinger e Updike costumam esconder-se... Na estante junto à parede percebo o valente fidalgo Quixote prensado por uma coletânea mix de auto-ajuda, e Quincas Borba pedindo socorro à beira de outra, da qual fatalmente será jogado ao chão por uma falange de entidades do Paulo Coelho.

Casais garimpam na estante de guias de viagem, a criançada folheia entediada o último volume de Harry Potter, até descobrir o presépio ainda armado na livraria. 


De repente, o inusitado: juntos, deparamos com ela, alojada entre Santa Claus, suando em bicas, e a guirlanda de anjos bochechudos, soprando fagotes, oboés e clarins d’anunciação do Cristo parido em Belém: Bruna Surfistinha, ostentando um piercing labial ! 

– Mãe, meteram um prego na boca dela, que nem no Jesus ? 
– Não, minha filha, ela não é santa, pregos são... ah, sai daí, menina, vam’bora ! 

Desconcertados diante do insólito, os pais arrastam seus filhotes para longe do execrável altar, mas não sem lançar um furtivo olhar àquela torre de exemplares com capa negra e o culto ao signo das águas turvas, tatuado no ombro direito da autora: "O doce veneno do escorpião – O diário de uma garota de programa"; rosto sem beleza, algo frio. E  vulgar.

Bruna, contudo, é a face assumida do bordel chamado Brasil, cuja carranca enrustida bate o pé teimosamente e não se revela, mesmo flagrado com as verdinhas na cueca – "nada está provado !".


Mas, não é por esse nobre motivo que os livreiros a posicionam na entrada e, sim, porque Bruna vende. Sempre vendeu(-se) bem e este é o primeiro "recado" da crônica de Raquel Pacheco, a jovem cuja persona atende por Bruna Surfistinha: "mulheres, a putaria é dinheiro fácil !, o cansaço e o arrependimento vêm depois, mas isto já é outra história" (associação nada forçada: terá sido remorso o motivo da peregrinação do "Fristão" José Dirceu até o "bruxo" Paulo Coelho, aos pés dos Pirineus? By the way, Mônica Bergamo: belas fotos, adorei o chapéu do Paulo, sempre elegante, mas o do Dirceu está ao contrário – alguma senha??).

Senhas!

Durante minha deambulação pela livraria desconfio que o novo ano nasce sob o signo da comunicação elíptica, por senhas. Ou qual teria sido o motivo da visibilidade dada às putas de García Márquez na vizinhança de Bruna ? Putas pero nobles, parecem querer dizer. Mas, Bruna as interrompe, com toda a brutalidade: o Brasil é uma imensa casa de tolerância e o que importa é ser "vencedor/a". 

E descreve seu ofício com a frieza de uma máquina registradora: corpo é igual a mercadoria, mero objeto de troca a serviço da acumulação – uma epifania do capitalismo...

Sem comentários

A trajetória de Bruna não é o conto da carochinha da "mulher pobre, puta por obrigação". A sua é a crônica da bad girl de classe média, com raízes fincadas no tecido emocional da família brasileira desestruturada. 

Raquel Pacheco não conheceu seus pais sanguíneos. Na adolescência descobriu-se filha adotiva de uma família de classe média paulistana. Parecem tê-la amado como se fosse legítima, amor, no entanto, insuficiente (ou impotente) para consertar sua identidade fraturada. Aluna de colégios da classe média alta de São Paulo, como o Dante Alighieri, Raquel aprontou; com notas baixas, mau comportamento, uma irrefreável pulsão por comprar e acumular futilidades. Daí o dinheiro furtado da carteira dos pais adotivos e depois as drogas. Espancada pelo pai (até aí descrito como um homem bonachão), recolhe alguns trapinhos, a mãe se esquiva ao seu abraço de despedida, mortificada coloca sua mochilinha nas costas - e cai na vida.

Após sujeitar-se ao "vintão" (sistema altamente rotativo de prostíbulos da Boca do Lixo, ao preço de 20 Reais por quinze minutos), aluga o flat de sua consagração. Depois de plantar um blog na Internet (que no portal iBest atingiu o ápice de visitação e, com isso, a reverberação e celebrização nas mídias escrita e eletrônica, de Vogue ao Programa do Jô), já encarnando o personagem de Bruna e mal completando dezoito anos, Raquel liberta-se do domínio por cafetinas e leões-de-chácara, criando seu próprio "negócio". 


O viril metal Bruninha o acumula com frenesí e eficiência de encabular os cruéis capitalistas fundacionais de Manchester. Lá, teares primitivamente mecanizados, aqui hi-tech da virtualidade. Criativa, usa um CD com uma hora de música romântica como temporizador, mas é rigorosa na aplicação da lei No. 1 do meretrício (ou da acumulação ?): o prazer tem seus minutos contados, é de vida curta !! São cinco programas por noite, a uma hora cada, vezes 200 Reais em média, sem direito a pechincha. Calculadora, para quê ? Dá um pau redondão, quer dizer, um mil Reais por noite, cinco mil Reais por semana (de cinco dias úteis, porque nem a Bruna é de ferro e pausa seus músculos... profissionais nos finais de semana), o que totaliza vinte mil Reais por mês – índice de produtividade de enrubescer tecnocratas do recessivo ministério da fazenda.

Raridade meritória do livro é sua revelação de uma espécie de "história da vida privada inconfessável" dos brasileiros, machos: edipianos doentios, quarentões ainda fantasiando em fazer sexo com a própria mãe, pedófilos, perversões masculinas diversas (objetos de respeitável tamanho e periculosidade, introduzidos em lugar impróprio..) – uma clientela voraz, setenta por cento dela de homens casados. Sem pudor, Bruna Surfistinha expõe taras, variantes do inimaginável repertório de posições e acrobacias, que transformaram o leito dos amantes em esteira de performances neuróticos. Ah, e as fantasias inconfessas, agora tornadas rito de iniciação da própria narradora.

Sempre ri muito quando um amigo, ex-guia turístico e agora tradutor simultâneo em Bruxelas, dizia, jocoso e envaidecido, para seus amigos estrangeiros: "O Brasil é o único país do mundo onde as prostitutas gozam !", sinalizando a presença proibitiva do desejo no ato comercial da prostituta. A exposição de Bruna por Raquel cai como uma luva na tese do amigo: sua persona é uma furiosa máquina registradora, mas seu alter-ego uma mulher que gosta de sexo, de troca de casais em swing-clubes, de orgasmos que lhe são ditados pela empatia alquímica em taras migratórias do corpo masculinos para o de uma mulher. Raquel é bissexual, Bruna sua ferramenta. 


A voracidade alterna com ternura e vice-versa. Maternal, Bruna estima que cinqüenta por cento de sua clientela masculina usa grande parte do tempo do programa, para babar suas confissões e desabafos (de mal amados, mal compreendidos, mal resolvidos) no decote dela, antes que Bruna desnude suas carnes alugáveis. Enternecedor não fosse irritante, é seu flerte com a Psicologia. Vende-se como o último grito do gênero auto-ajuda, com direito a "conselhos" para homens e mulheres casados: quem transa bem, não precisa do serviço das "primas" (pensando bem, uma observação absolutamente correta..).

 "Encarei como se fosse uma ‘missão’. Um dia, encontrarei a resposta disso", escreve Raquel em outubro de 2005, despedindo-se de sua personagem Bruna Surfistinha e da prostituição. Anjo caído do signo de escorpião, seu arquétipo reverbera na ironia do mito de Demétria e sua filha Core, que nos descreve um rito de iniciação feminina.  Virgem, Core é raptada por Plutão, o deus das profundezas, e levada ao Hades, o mundo dos mortos. Inicialmente, é toda susto e pavor, seus gritos sacodem as montanhas. No Hades, contudo, sente-se atraída pelo "homem escuro", come o caroço do romã e celebra simbolicamente seu casamento.

Demétria, no entanto, desespera-se de tal forma com a perda da filha, que amaldiçoa a terra com completa esterilidade, até os deuses dela se compadecerem: permitirão que Core conviva dois terços do ano com sua mãe, o terço restante, porém, deverá partilhar com seu marido nas escuras profundezas. Fiel ao roteiro de todo herói, Core saberá usar da astúcia e driblar o destino, retornando ao mundo de sua mãe com o novo nome de Perséfone. Quer sinalizar a estorinha, que Core transmutou-se durante sua estada no Hades (a inconsciência ?), morrendo como filha, nascendo como mulher; consciente, madura.

Prostituere em Latim é colocar-se na frente, expor-se, prostituição significa fantasia de entrega. 


É essa fantasia de expor o corpo que movimenta homens e mulheres. Dando voz ao cochicho sussurrado nos travesseiros das melhores famílias, mas raramente admitido por homens e mulheres (a fantasia da "puta na cama"), a psicanalista gaúcha Eliana dos Reis Calligaris ("Prostituição: o eterno feminino") afirma com voz bifronte que a palavra puta produz efeitos, que vão da excitação à ofensa. E essa duplicidade significa para uma mulher administrar um malabarismo, quando ela tem que sair do olhar do pai e dirigir-se a outros homens. A advertência: se uma mulher não tem acesso a essa fantasia, não terá acesso ao gozo sexual porque, se ela não puder entregar seu corpo de uma forma digamos "sem segundas intenções", não terá acesso ao gozo.

Raquel Pacheco parece não ter conseguido administrar o malabarismo e Bruna mergulhou de corpo na transgressão. Três anos depois, de alma  machucada (ou lavada?), Raquel ajoelha diante da nação como a sacerdotisa hindu, que fez sexo por dinheiro, para preservar a sacralidade do templo, ou prostituta respeitosa, que se descobre esposa e pilar da sagrada família. A frase lapidar da "vitoriosa" em um jogo, cujos fins, no Brasil, sempre justificam os meios ("Não me arrependo de nada. Era para eu ter sido prostituta! E fui"), ouve-se cínica como "PT, saudações" – soa familiar? O balanço de 2005 parece ser essa vulgaridade exposta: a pátria como casa de tolerância. Mas, sejamos generosos: afinal, Cristo lavou os pés de Maria Madalena...


* publicado originalmente na revista eletrônica Cronópios, 05/01/2006

Nenhum comentário: