Foto: divulgação
Crônica
Primeiras
impressões, esboçadas à chegada .
A
lembrança dos 40 anos do golpe, em 2013,
preenche o silêncio de um ano atrás.
Pelas
frestas, contudo, a dor, a indignação
e a esperança não param de escorrer.
e a esperança não param de escorrer.
Em setembro, ainda faz frio
nestes descampados, a menos de setenta quilômetos da Cordilheira. Em dias de
céu varrido de nuvens, caminhando umas cinco quadras desde minha casa, consigo
divisar a cratera nevada do Antuco, o vulcão mais próximo. Então minha coluna
vertebral sofre as dentadas prazerosas de um frenesí, que recordo como
experiência de minha infância, quando um evento jubiloso e há muito esperado se
anunciava pela intuição; neste caso, a escalada dos 2.500m do “baixinho”, Antuco,
que não demorará. Será meu treinamento de fôlego e aclimatação? Tenho encontro
marcado com o deserto de Atacama, na fronteira com Salta, onde me aguardam o
Socompa e o Llullaillaco, ambos com 6.000 e 6.700m de altitude. Ali perto está
a cova do meu personagem, o “alemão morto”.
Um nativo me disse que começa a
esquentar somente em novembro, “entonces llega el verano”, como se não mais existisse
a primavera. Entendo como generalizada a percepção perdida das velhas estações
do ano como experiência elementar dos ciclos da vida, com suas lentas
transições de temperatura, transmutação da vegetação e da luz.
As alterações climáticas são um fenômeno planetário. A perda da memória também.
As alterações climáticas são um fenômeno planetário. A perda da memória também.
Chama atenção a profusão de
chaminés nos telhados das casas, todos de lata, os telhados e as chaminés. Apenas
excepcionalmente vê-se, aqui e acolá, em casas de apelo burguês, algumas telhas
francesas ou coifas, jamais, porém, chaminés de tijolos, como as que conhecemos
a leste da Cordilheira.
As casas são construções
sofríveis, ora comoventes, ora risíveis caixas de fósforo. Seu acabamento frágil
evoca o pitoresco estilo fueguino das casas de Ushuaia, com paredes e telhados
de lata, espécie de perpetuação das cabanas dos caçadores de lobos marinhos e
baleias, no literal fim do mundo, daqui ainda muito distante, geograficamente,
mas assaz influente esteticamente. O hábito esdrúxulo do uso de metal para
isolamento térmico é tão descabeçado como os telhados de Rio Branco, capital do
Acre, que se vê antes do pouso do avião. Lá, alcançam temperatura para frigir
ovos, aqui substituem a geladeira quase supérflua, devido ao rude clima
invernal em seis meses do ano. No território da anedota, a conspiração
panamericana de algum produtor de telhados de zinco contra toda sorte de
arquitetura sustentável se impõe como teoria provável. Do Acre à Terra do Fogo
reina a insustentável paródia do viver.
A propósito do fim do mundo:
muito antes da chegada dos conquistadores espanhóis, os povos do Altiplano
peruano chamavam estas paragens de “Chili”, porque a partir do norte era
difícil alcançá-las por terra ou por mar. Chili queria dizer, "onde a
terra acaba".
Da minha casa, os moradores
anteriores levaram a estufa. Demorei alguns dias para entender que estufas não
fazem parte do inventário fixo de uma residência. Estufas compra-se, instala-se
e, algum dia, leva-se com a mudança. Por isso, sobre o vazio deixado pela
estufa levada, um toco de chaminé, que em sentido inverso some telhado afora,
aguarda a nova estufa. Melhor dizendo: eu e chaminé a aguardamos, o queixo
batendo de frio.
Alternando com alguns dias
luizidios, o frio úmido que se instalou na casa lambe-me os ossos, sensação
angustiante nunca dantes experimentada. Minha companheira emprestou-me um
estufa à querosene. Quando acaba o combustível, tenho que caminhar umas vinte
quadras até o posto de gasolina mais próximo, para reabastecer-me.
Já fazia noite enquanto eu caminhava
rumo ao posto. A iluminação que caía dos postes recortava sofrivelmente as
sombras do casario baixo e lúgubre à beira da calçada.
Era a noite de 11 de setembro. Pela
janela sem cortinas e venezianas, de uma casa pobre, escorria uma luz descorada
sobre a calçada, convidando-me a parar. Com olhar indiscreto e envergonhado,
distingui uma oficina de móveis. Algumas ferramentas descansavam sobre peças
inacabas; do marceneiro, contudo, nenhum sinal.
Oficinas de carpintaria e
marcenaria soem ter conotações bíblicas, talvez aquele cenário oferecido pela
janela sobre a calçada evocasse imagens da forçada educação religiosa recebida
em minha infância que, por ter sido obrigatória e autoritária, tivera efeito
contrário, fazendo-me contemplar ao longo da vida com justificada reserva
aquele escultor galileu de cruzes de madeira e salvador da Humanidade. Quem
sabe Bertolt Brecht, ao cobrar em um de seus poemas, “onde pernoitaram os
operários egípcios, depois de concluírem a obra da última pirâmide?”, tenha oferecido
um entendimento mais correto, a dimensão histórica e materialista dos ofícios e
seus protagonistas, a que dignifica aos que dão forma ao mundo com suas mãos e
ferramentas, desenhando palácios, erguendo muralhas, esculpindo móveis - que
fosse a estante para o único livro que naquela noite fria resgatava a memória
do dia maldito, que partiu em duas a história do país “onde a terra acaba”!
Meu
pensamento espontâneo dialogava com a oficina, perguntando-lhe, o que aquele
pobre marceneiro sentira toda vez que, há quase quarenta anos, o calendário
anunciava um novo 11 de setembro. Se montava cadeiras e mochos por encomenda do
inimigo, nas quais – ele sabia – seria amarrado e torturado um vizinho
subitamente desaparecido, ou se, ao contrário, incitado pelo violento protesto
de Judas, o subversivo, com cada ferida que seu formão abria no lenho virgem,
dava forma aos seus pensamentos, esculpia sua esperança.
Aquele moveleiro também sentia
que, desde 11 de setembro de 2001, quando desabavam as torres de Nova York, uma
estranha orquestração tenta habituar o mundo a assistir das arquibancadas à
celebração do “9/11” como efeméride do atentado ao coração do império? Ano após
ano, borrando, apagando mais um pouco a memória do 11 de setembro de 1973, ocorrido
em Santiago, preparado pelo mesmo império, com conspirações, dinheiro e armas,
contra o governo eleito de um médico idealista, que desejava libertar seu país
do jugo de colônia fornecedora de commodities minerais – primeiro o salitre,
depois o cobre - e sempieterna devedora da banca internacional?
Na capa de El Mercúrio de 11 de
setembro, nenhuma referência à data fatídica. Incrédulo e impaciente, folheio o
jornal para frente e para trás – e nada! Mas então, escondido no canto esquerdo
inferior da terceira página, o único comentário, constrangido, à data, escrito
com pena liberal, conclui: “Los verdaderos derrotados son los que quedan sin un
lugar en la historia. Y fueron ellos los
combatientes… En cambio los del ´si´, perdieron el plebiscito, pero siguieron
administrando grandes cuotas de poder – y lo hacen hasta hoy”.
“Lo que pasó en aquel entonces no me afecta, nací despues del 1973, eso pertenece al pasado…”, responde-me uma jovem vizinha com desdém, no qual ecoa certa preguiça para espantar as brumas do esquecimento. Sua resposta sincera soa representativa, nas ruas, nas feiras, nas rádios e na TV, nenhuma palavra, ruído, canção que destoem do silêncio – um silêncio quase fantasmal, não fosse uma senhora da alta classe média, que luta nos tribunais para que a Avenida 11 de Setembro, assim carimbada pelos golpistas, volte a chamar-se Avenida Providencia, como é conhecida e sempre será lembrada. Silêncio de sepultura, não fossem também alguns jovens de Santiago, cuja agenda do “11” é a catarse, o protesto desorganizado, frequentemente expressado com paus e pedras. Às quais voltam a impor-se no dia seguinte os berros dos brokers da bolsa de valores, com aquele esgar neurótico estampado em suas faces, ou o editorial de El Mercúrio, cobrando maior rigor na repressão aos manifestantes.
Então deparo-me com a estória de
uma mulher.
Há trinta anos, em Calama, no
extremo norte do país e, por coincidência, à beira de meu caminho, rumo à
Salta, Violeta Berríos revolve a areia do deserto, em busca de mais alguma
vértebra, um estilhaço de fêmur – um dente que fosse! – de seu amado, Mario,
fuzilado em outubro de 1973, durante a passagem de uma sinistra caravana.
No Maghreb, as caravanas beduínas
transportavam o sal desde os portos do Chifre da África, e eram festejadas em
todos os oásis onde aportavam para descansar. No Atacama, a caravana do Gal.
Sergio Arellano Stark aproximara-se por terra e pelo ar, cuspindo chumbo.
Entrou para a História como a “Caravana da Morte”, fuzilando vinte e seis
jovens mineiros, estudantes e jornalistas, apenas em Calama. Os algozes não
chegaram com ordem judicial de prisão, não interrogaram suas vítimas:
desembarcaram, abrindo fogo. Em seguida, dispersaram os cadáveres mutilados,
esquartejados, pelos quatro pontos cardeais, para que servissem de carniça aos
chacais – tamanho o ódio daquele senhor general, cujo sobrenome em alemão
significa “forte”.
Desde então, vinte e seis
mulheres chafurdam na areia do deserto em busca de alguma articulação que
combine com o osso que, após exame de perícia, guardam em suas casas como
relíquia de seus amados – filhos, pais, maridos, namorados - que algum dia
desejam sepultar com dignidade.
São as “colectadoras de huesos”
do Atacama, cuja escatologia é um teimoso e comovente culto à memória – fresta nos
grãos de areia do deserto, por onde espreita a indelével História.
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