20 setembro 2013

Frederico Füllgraf - Setembro, atrás da Cordilheira

Foto: divulgação

Crônica

Primeiras impressões, esboçadas à chegada . 
A lembrança dos 40 anos do golpe, em 2013, 
preenche o silêncio de um ano atrás.
Pelas frestas, contudo, a dor, a indignação 
e a esperança não param de escorrer.

Em setembro, ainda faz frio nestes descampados, a menos de setenta quilômetos da Cordilheira. Em dias de céu varrido de nuvens, caminhando umas cinco quadras desde minha casa, consigo divisar a cratera nevada do Antuco, o vulcão mais próximo. Então minha coluna vertebral sofre as dentadas prazerosas de um frenesí, que recordo como experiência de minha infância, quando um evento jubiloso e há muito esperado se anunciava pela intuição; neste caso, a escalada dos 2.500m do “baixinho”, Antuco, que não demorará. Será meu treinamento de fôlego e aclimatação? Tenho encontro marcado com o deserto de Atacama, na fronteira com Salta, onde me aguardam o Socompa e o Llullaillaco, ambos com 6.000 e 6.700m de altitude. Ali perto está a cova do meu personagem, o “alemão morto”.

Um nativo me disse que começa a esquentar somente em novembro, “entonces llega el verano”, como se não mais existisse a primavera. Entendo como generalizada a percepção perdida das velhas estações do ano como experiência elementar dos ciclos da vida, com suas lentas transições de temperatura, transmutação da vegetação e da luz. 

As alterações climáticas são um fenômeno planetário. A perda da memória também.

Chama atenção a profusão de chaminés nos telhados das casas, todos de lata, os telhados e as chaminés. Apenas excepcionalmente vê-se, aqui e acolá, em casas de apelo burguês, algumas telhas francesas ou coifas, jamais, porém, chaminés de tijolos, como as que conhecemos a leste da Cordilheira.

As casas são construções sofríveis, ora comoventes, ora risíveis caixas de fósforo. Seu acabamento frágil evoca o pitoresco estilo fueguino das casas de Ushuaia, com paredes e telhados de lata, espécie de perpetuação das cabanas dos caçadores de lobos marinhos e baleias, no literal fim do mundo, daqui ainda muito distante, geograficamente, mas assaz influente esteticamente. O hábito esdrúxulo do uso de metal para isolamento térmico é tão descabeçado como os telhados de Rio Branco, capital do Acre, que se vê antes do pouso do avião. Lá, alcançam temperatura para frigir ovos, aqui substituem a geladeira quase supérflua, devido ao rude clima invernal em seis meses do ano. No território da anedota, a conspiração panamericana de algum produtor de telhados de zinco contra toda sorte de arquitetura sustentável se impõe como teoria provável. Do Acre à Terra do Fogo reina a insustentável paródia do viver.

A propósito do fim do mundo: muito antes da chegada dos conquistadores espanhóis, os povos do Altiplano peruano chamavam estas paragens de “Chili”, porque a partir do norte era difícil alcançá-las por terra ou por mar. Chili queria dizer, "onde a terra acaba".

Da minha casa, os moradores anteriores levaram a estufa. Demorei alguns dias para entender que estufas não fazem parte do inventário fixo de uma residência. Estufas compra-se, instala-se e, algum dia, leva-se com a mudança. Por isso, sobre o vazio deixado pela estufa levada, um toco de chaminé, que em sentido inverso some telhado afora, aguarda a nova estufa. Melhor dizendo: eu e chaminé a aguardamos, o queixo batendo de frio.

Alternando com alguns dias luizidios, o frio úmido que se instalou na casa lambe-me os ossos, sensação angustiante nunca dantes experimentada. Minha companheira emprestou-me um estufa à querosene. Quando acaba o combustível, tenho que caminhar umas vinte quadras até o posto de gasolina mais próximo, para reabastecer-me.

Já fazia noite enquanto eu caminhava rumo ao posto. A iluminação que caía dos postes recortava sofrivelmente as sombras do casario baixo e lúgubre à beira da calçada.

Era a noite de 11 de setembro. Pela janela sem cortinas e venezianas, de uma casa pobre, escorria uma luz descorada sobre a calçada, convidando-me a parar. Com olhar indiscreto e envergonhado, distingui uma oficina de móveis. Algumas ferramentas descansavam sobre peças inacabas; do marceneiro, contudo, nenhum sinal.

Oficinas de carpintaria e marcenaria soem ter conotações bíblicas, talvez aquele cenário oferecido pela janela sobre a calçada evocasse imagens da forçada educação religiosa recebida em minha infância que, por ter sido obrigatória e autoritária, tivera efeito contrário, fazendo-me contemplar ao longo da vida com justificada reserva aquele escultor galileu de cruzes de madeira e salvador da Humanidade. Quem sabe Bertolt Brecht, ao cobrar em um de seus poemas, “onde pernoitaram os operários egípcios, depois de concluírem a obra da última pirâmide?”, tenha oferecido um entendimento mais correto, a dimensão histórica e materialista dos ofícios e seus protagonistas, a que dignifica aos que dão forma ao mundo com suas mãos e ferramentas, desenhando palácios, erguendo muralhas, esculpindo móveis - que fosse a estante para o único livro que naquela noite fria resgatava a memória do dia maldito, que partiu em duas a história do país “onde a terra acaba”!

Meu pensamento espontâneo dialogava com a oficina, perguntando-lhe, o que aquele pobre marceneiro sentira toda vez que, há quase quarenta anos, o calendário anunciava um novo 11 de setembro. Se montava cadeiras e mochos por encomenda do inimigo, nas quais – ele sabia – seria amarrado e torturado um vizinho subitamente desaparecido, ou se, ao contrário, incitado pelo violento protesto de Judas, o subversivo, com cada ferida que seu formão abria no lenho virgem, dava forma aos seus pensamentos, esculpia sua esperança.

Aquele moveleiro também sentia que, desde 11 de setembro de 2001, quando desabavam as torres de Nova York, uma estranha orquestração tenta habituar o mundo a assistir das arquibancadas à celebração do “9/11” como efeméride do atentado ao coração do império? Ano após ano, borrando, apagando mais um pouco a memória do 11 de setembro de 1973, ocorrido em Santiago, preparado pelo mesmo império, com conspirações, dinheiro e armas, contra o governo eleito de um médico idealista, que desejava libertar seu país do jugo de colônia fornecedora de commodities minerais – primeiro o salitre, depois o cobre - e sempieterna devedora da banca internacional?

Na capa de El Mercúrio de 11 de setembro, nenhuma referência à data fatídica. Incrédulo e impaciente, folheio o jornal para frente e para trás – e nada! Mas então, escondido no canto esquerdo inferior da terceira página, o único comentário, constrangido, à data, escrito com pena liberal, conclui: “Los verdaderos derrotados son los que quedan sin un lugar en la historia. Y fueron ellos los combatientes… En cambio los del ´si´, perdieron el plebiscito, pero siguieron administrando grandes cuotas de poder – y lo hacen hasta hoy”.

“Lo que pasó en aquel entonces no me afecta, nací despues del 1973, eso pertenece al pasado…”, responde-me uma jovem vizinha com desdém, no qual ecoa certa preguiça para espantar as brumas do esquecimento. Sua resposta sincera soa representativa, nas ruas, nas feiras, nas rádios e na TV, nenhuma palavra, ruído, canção que destoem do silêncio – um silêncio quase fantasmal, não fosse uma senhora da alta classe média, que luta nos tribunais para que a Avenida 11 de Setembro, assim carimbada pelos golpistas, volte a chamar-se Avenida Providencia, como é conhecida e sempre será lembrada. Silêncio de sepultura, não fossem também alguns jovens de Santiago, cuja agenda do “11” é a catarse, o protesto desorganizado, frequentemente expressado com paus e pedras. Às quais voltam a impor-se no dia seguinte os berros dos brokers da bolsa de valores, com aquele esgar neurótico estampado em suas faces, ou o editorial de El Mercúrio, cobrando maior rigor na repressão aos manifestantes.

Então deparo-me com a estória de uma mulher.

Há trinta anos, em Calama, no extremo norte do país e, por coincidência, à beira de meu caminho, rumo à Salta, Violeta Berríos revolve a areia do deserto, em busca de mais alguma vértebra, um estilhaço de fêmur – um dente que fosse! – de seu amado, Mario, fuzilado em outubro de 1973, durante a passagem de uma sinistra caravana.

No Maghreb, as caravanas beduínas transportavam o sal desde os portos do Chifre da África, e eram festejadas em todos os oásis onde aportavam para descansar. No Atacama, a caravana do Gal. Sergio Arellano Stark aproximara-se por terra e pelo ar, cuspindo chumbo. Entrou para a História como a “Caravana da Morte”, fuzilando vinte e seis jovens mineiros, estudantes e jornalistas, apenas em Calama. Os algozes não chegaram com ordem judicial de prisão, não interrogaram suas vítimas: desembarcaram, abrindo fogo. Em seguida, dispersaram os cadáveres mutilados, esquartejados, pelos quatro pontos cardeais, para que servissem de carniça aos chacais – tamanho o ódio daquele senhor general, cujo sobrenome em alemão significa “forte”.

Desde então, vinte e seis mulheres chafurdam na areia do deserto em busca de alguma articulação que combine com o osso que, após exame de perícia, guardam em suas casas como relíquia de seus amados – filhos, pais, maridos, namorados - que algum dia desejam sepultar com dignidade.

São as “colectadoras de huesos” do Atacama, cuja escatologia é um teimoso e comovente culto à memória – fresta nos grãos de areia do deserto, por onde espreita a indelével História.

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