(fotos: divulgação)
Crônica de viagem
Para Liége dos Santos,
companheira dessa inspiradora jornada austral.
A Patagônia é um mito, foi e será território alimentador de mitos. Para mim, até o dia da minha primeira incursão, foi sempre território imaginário, tão distante, misterioso e intangivel como o Grande Deserto da Austrália ou a Ferrovia Transsiberiana, com alguma aura mal afamada de Velho Oeste, isto é: natureza em estado bruto, terra de ninguém, terra sem lei, arrancada aos povos autóctones ao custo de desmedida truculência. E com uma história escrita pelos vencedores. Há muito tempo eu sentia uma espécie de "chamamento", e à medida que fui me internando no território que o espelha, o das narrativas, entendi que esse "chamamento" impulsionou todos os que baixaram a estas terras inóspitas. Como diz Guillermo Saccomano, ensaísta argentino (Narrar al sur) exploradores espanhóis e holandeses, naturalistas ingleses e franceses, religiosos italianos, colonos galeses, estrategistas argentinos e milionários norte-americanos parecem ter coincidido, ao longo de quase cinco séculos, de que ali está o que buscavam: um território geo-estratégico, a chave para desvendar uma charada científica, um recurso natural e uma beleza extasiante que vão se extinguindo no resto do planeta, uma "cidade encantada", na qual abunda o ouro, e também certa noção da "eternidade", que já não espanta mais ninguém.
Embora os 700 mil km2 da Patagônia oriental (argentina) atualmente não abriguem mais de 1,0 milhão de moradores, seu território-país já é citado por Antonio Pigafetta, escrivão-de-bordo de Fernão de Magalhães, durante a circunavegação do estreito homônimo, menos de trinta anos após a “descoberta” do Brasil. E o apressado Pigafetta é o (ir)responsável por grande parte da mistificação etnográfica e paisagística que definirá a historiografia deste mundo finis terre, já que o nome Patagônia remonta à etimologia “patagones” (= pés grandes), que o cronista italiano concedeu aos primeiros índios avistados. Melhor: imaginados pelos espanhóis, porque das grandes pegadas, marcadas na areia de algumas praias, os navegadores teceram logo associações com o tamanho dos pés, e outros membros de seus titulares.
Quando, porém, o primeiro índio Tehuelche subiu a bordo de uma das caravelas, desatando os nós do grande pedaço de couro de camelídeo que usava para proteger-se do frio, o estrago já estava feito, digo, Caliban já estava incorrigivelmente descaracterizado e batizado. Daí, à crença de que neste fim de mundo as árvores nasciam com as raízes para o céu, e os rios corriam cordilheira acima, foi um passo no imaginário quinhentista - motivo pelo qual nos mapas renscentistas o mundo ao sul do Equador figurava de ponta-cabeça, e o Papa relutava em aceitar a humanidade de seus habitantes bárbaros - vai ver, tinham as vergonhas fora do lugar!
E começa a viagem
Naturalmente, de qualquer parte do planeta pode-se alcançar distintos pontos da Patagônia de avião, mas neste caso ela se se esconde. não se revela. Eu fiz a viagem de carro, a partir de Buenos Aires, descendo a costa atlântica, e retornando pela Cordilheira dos Andes.
Geógrafos e geólogos brigaram durante um século inteiro, até definirem o mapa da atual Patagônia, compartilhada pela Argentina e pelo Chile.
Do ponto de vista físico, ela compreende, na Argentina, o imenso território de 800 mil km2 ao sul dos Rios Limay e Colorado, estabelecendo uma fronteira ecossistêmica com a pampa, ao norte e, em sentido oposto, derramando-se até a Terra do Fogo e o Canal de Beagle, no sul. Em sentido leste-oeste, a Patagônia Argentina, ou Oriental, esparrama-se desde o Oceano Atlântico (com 1.770 km de costa) até a Cordilheira dos Andes (com 1.920 km de cadeias montanhosas), sobre o território das províncias de Neuquén, Rio Negro, Chubut, Santa Cruz e Terra do Fogo & Antártida. Em território chileno, a Patagônia estende-se da província de Aysén, ao norte, até o Estreito de Magalhães, no extremo sul. Geograficamente, portanto, aproximadamente dois terços da Patagônia encontram-se em território argentino e um terço em território chileno.
Nas pistas de Darwin, Tschifelly e Chatwin
Aimé Tschiffelly
Meu primeiro olhar sobre a Patagônia foi guiado por Liége Santos - namorada, com quem dividi o volante do carro - e um estrangeiro, o escocês Bruce Chatwin.
Depois de ler sua crônica "In Patagonia" – espécie de narrativa “cubista”, como pretendia seu autor, mas aceita com muitas reservas na Argentina - a viagem para o subcontinente fantástico era apenas uma questão de tempo. Apesar da abordagem "novelesca" e deformadora do observado por Chatwin, emocionou-me seu despojamento, determinado a percorrer o inóspito a bordo de desconfortáveis trens, ônibus, ou como carona de caminhoneiros, em meados da década dos 70.
Nesta primeira incursão, Liége e eu iniciamos nosso roteiro a bordo de um atrevido fordinho Fiesta (o jeep 4x4 que havíamos encomendado por fax, já havia sido alugado), baixando a costa atlântica pela Ruta Nacional (RN3), que desde Buenos Aires cruza 700 km do pampa até Bahia Blanca. E aqui, sem sabê-lo ainda, nos internamos no território de um viajante mais antigo: a rota costeira descrita em "Sur" (This way southward;: A journey through Patagonia and Tierra de Fuego), do suíço Aimée Félix Tschiffely.
Professor de matemática em escolas britânicas na Argentina da década dos anos 20, e viajante obsessivo, Tschiffely quebrara o recorde mundial com uma cavalgada com duração de três anos, de Buenos Aires até o centro de Manhattan, em Nova York. De volta daquela odisseia, já em 1936 decidiu embrenhar-se em sentido oposto, rumo à Patagônia.
Os românticos boliches (botequins) foram substituídos pelos Cafés ou lojas de conveniência 24 horas, arranjados e decorados segundo o figurino globalizado, mas permanecera o hábito dos nativos de comer uma parillada, o churrasco argentino, que à beira da RN3 é servido ao lado de quase todos os postos de gasolina, como em Azul. Aqui, debruçado sobre o mapa rodoviário, cujo labirinto tentávamos decifrar, fomos invadidos pela doce indiscrição de um nativo e sua família que, preocupados em apontar-nos o caminho correto, enterrariam para sempre o preconceito brasileiro do "argentino descortês": em seu carro nos "escoltaram" até o primeiro cruzamento, para evitar que fôssemos desviados para Bariloche. E nos mandaram abraços e beijos; obviamente retribuídos.
O aprendizado das cores
Até a Sierra de la Ventana, tudo parece encaixar ou perder-se harmonicamente no imenso tapete verde, até que numa curva inopinada surge do nada um grande "remendo" amarelo de girassóis translúcidos, dando as costas ao poente - Van Gogh que nos perdoe, mas os girassóis do pampa são mais luminosos que os da Holanda! Principalmente quando projetados contra a abóbada celeste, de matiz azul diáfano, com suas bizarras formações de nuvens comprimidas ou rasgadas pelo vento, que já sopra forte.
Gaviões e falcões são freqüentes companheiros de estrada, voando em círculos elegantes até - pasme-se! - serem caçados por bandos de valentes andorinhas.
Bahia Blanca, ruidoso centro provinciano de 500 mil habitantes, no extremo sudoeste da província de Buenos Aires, mantém abertas as feridas de uma Argentina outrora pujante. Seu mais alto índice de desemprego do país, e a miséria em sua periferia escondem gloriosos tempos que não voltam mais. No decadente, mas charmoso salão do Hotel Muñiz, ainda é possível respirar lufadas imaginárias das glamourosas décadas de 1930 e 1940, quando este era o ponto de animadas tertúlias de ricos estancieiros e exportadores de lã e frutas; as “manzanas de Rio Negro” de nossas infâncias.
De Bahia Blanca a Viedma são outros 300 km, com a travessia da província de Buenos Aires para a de Rio Negro, e o cruzamento da desembocadura do Rio Colorado; a fronteira molhada do norte da Patagônia.
Aqui o viajante tem duas opções: seguir pela RN 3, cortando caminho até San Antonio Oeste, no Golfo de San Matias, ou tomar a Ruta Provincial (RP) 1, acompanhando o Rio Negro até sua desembocadura no Atlântico, em El Pesadero.
Foi o que fizemos. Distante 65 km de Viedma, alcança-se a lobería (reserva de leões ou lobos marinhos) Punta Bermeja, onde termina o asfalto da RP 1, devendo-se percorrer aproximadamente 180 km de estrada de rípio (cascalho e muito pó) para chegar-se ao trevo rodoviário de San Antonio Oeste, com o reingresso na RN 3.
E no meio do caminho, lá estava a deslumbrante Bahia Creek, paisagem escarpada com praias desertas de areia negra, vulcânica. Refúgio que incita ao recolhimento contemplativo, Bahia Creek é a iniciação do viajante no aprendizado das cores da Patagônia, cujos espectro e matizes não existem sob o céu tropical. A magia do pôr-do-sol insistia em deixar marcas para o resto da vida. Ela, a namorada, tirou a roupa, desnudando-se; sua pele acariciada pelos últimos raios de sol, beijada pela maresia gelada e pintada com as cores de um arco-íris austral - olhos grandes e suspiros de deslumbramento no meio do público admirador das fotos...
Percorridos à noite e sem a devida atenção ao nível do combustível, os 180 km restantes da RP 1, podem transformar-se em pesadelo, pois até San Antonio Oeste não há postos de gasolina, nem mesmo viv'alma que possa prestar auxílio.
A única atração desta pacata cidadezinha de 11 mil habitantes é a Praia de Las Grutas, que por sua localização no saco do Golfo San Matias, tem as águas oceânicas mais quentes e transparentes da Argentina, próprias para o mergulho. A curiosidade histórica é que em seu apogeu San Antonio Oeste foi o entroncamento da Rede Ferroviária Federal Argentina (Km Zero: Plaza Constitución, Buenos Aires) com a Ferrovia da Patagônia, iniciada aqui em 1908, e concluída em San Carlos de Bariloche em 1934, tornando-se o principal porto de exportação da cobiçada lã dos rebanhos ovinos da Argentina.
El Desierto
O ingresso na Estepe Arbustiva Patagonica, popularmente conhecida por el desierto, é um vislumbre de eternidade.
Contudo, quando a viu em 1832, Charles Darwin disse: “terra maldita!”. Muito depois admitiu seu arrebatamento. Já Guillermo H. Hudson, argentino de origem também inglesa, visita a Patagônia em 1860. Em seu livro, "Días de ocio en la Patagonia", tenta fazer Darwin entender "que viajantes do deserto descobrem em si mesmos uma calma primordial (familiar ao mais simples dos selvagens), que talvez seja o mesmo que a Paz de Deus..."
É o fim da tonalidade verde. Em seu lugar, desdobra-se um infindável tapete incendiado de manchas, nas tonalidades amarela, mostarda, salmão, ocre, bordô e sépia, refletidas por plantas de nomes exóticos como molinum spinosum, xerófilos, poa , festuca e stipa. São as únicas espécies vegetais capazes de oferecer resistência às brutais intempéries da estepe; o sol inclemente, as nevascas do longo inverno, as rajadas do vento incessante.
A "península grávida"
A 20 Km de Puerto Madryn está o acesso à Península Valdés, santuário da fauna marinha, único no mundo. Valdés é uma experiência inesquecível, que rompeu as fronteiras da Argentina e ganhou continentes. As baleais Franca Austral (12-16m), os elefantes marinhos (machos: até 4.0 t de peso), os leões marinhos de um e dois pelos, e os pinguins magalhânicos adotaram-na como refúgio de reprodução, acasalando, parindo, alimentando suas crias, e transformando Valdés na "península sempre grávida".
O ponto de concentração dos elefantes marinhos é a praia alcantilada de Caleta Valdés Sur. Antes das alterações climáticas em curso, manadas de elefantes marinhos dirigiam-se para Valdés em outubro, agora já se pode vê-los em setembro, ou até mesmo em agosto.
Seu comportamento no mar é freqüentemente monitorado por uma fundação argentina conveniada com a ONU. Exímios nadadores e mergulhadores (submergem até 800 m de profundidade e têm fôlego para 40 minutos), os elefantes marinhos de Valdés constituem a única colônia da espécie no mundo, cuja população está aumentando. Sua perda de peso chamou a atenção da fundação, e constatou-se que nadam e mergulham muito mais tempo na caça às lulas, depredadas por armadas de barcos de pesca piratas em águas continentais argentinas.
Em companhia de meu filho Jan, com quatro anos de idade, visitei a península pela primeira vez em outubro de 1996, em missão de pré-produção de um filme documentário para a TV Suíça. Seu tema era a observação científica do comportamento destes textuais paquidermes, que além dos leões marinhos constituem um dos pratos prediletos das baleais Orca.
Espetáculo raro, porque de duração alucinantemente rápida, e já transformado em atração turística de forte apelo voyeurista, pode-se testemunhar aqui o ataque das Orcas aos filhotes dos elefantes. Mas comparado à matança, a pauladas, de 250 mil a 300 mil lobos marinhos pelos caçadores ingleses na Terra do Fogo, entre 1910 e 1960, o ataque de uma Orca pode ser definido como exemplo cruelmente ecológico de desenvolvimento auto-sustentado das espécies.
Em Puerto Pirámide, na entrada da península, floresce um segmento turístico comercial para a observação de baleias. Vendida ao visitante como "turismo ecológico", a observação ou "avistagem" ameaça reverter-se no seu oposto anti-ecológico, por constituir-se em assédio estressante para os animais.
A chegada a Puerto Madryn (45 mil habitantes) mexe com os emoções.
A tintura aveludada do seu mar azul e dos alcantilados de pátina beje-amarelada não têm registro em nossa memória espectral, e nos deixa psicologicamente desarmados; experiência que se repetirá no contato com os grandes lagos da Cordilheira dos Andes.
Madryn foi onde começou a colonização galesa, em 1865, graças à qual a Argentina ganhou territórios na Cordilheira dos Andes, até então virtualmente dominada pelo Chile; mais exatamente por um punhado de fazendeiros chilenos.
Localizada no Golfo Novo, ao sul da Península Valdés, a pequenina cidade costeira é formada por enseadas com formosas praias de areia negra (mas águas de temperaturas polares!), e tem excelente estrutura hoteleira. Uma curiosidade que incita às gargalhadas, mas capaz de rapidamente adaptar brasileiros aos costumes nativos, são os biombos armados na praia pelos veranistas argentinos, para proteger-se do vento, que sopra sem parar, levando de roldão guarda-sóis, cadeiras de praia, chapéus e o próprio veranista...
Em 1997, a secretária de turismo de Madryn comprara uma briga feia com o governo federal, ao denunciar publicamente o polêmico plano do presidente contraventor, Carlos Menem, de instalar um depósito internacional de lixo nuclear, fortemente radiativo, em Gastre, no interior da província. Celebrizado por suas “relações carnais” com os EUA, Menem pretendia granjear a simpatia do primeiro mundo, ao receber dele, o que suas populações rejeitavam. Mas a população da Patagônia solenemente repeliu o lixo dos outros, e resistiu com sucesso contra o conluio.
A despedida de Madryn, de sua gente, seu mar e suas cores, é um aperto no coração, que na Patagônia não tem tempo de preparar-se para emoções em cascata.
A próxima chamar-se-á Gaiman, distante 110 km de Madryn. Por indicação dos índios Tehuelches, o lugar (4.000 habitantes) foi fundado em 1865 pelos primeiros colonos galeses no vale do Rio Chubut, por constituir-se no único manancial de água; recurso hoje cada vez mais escasso na região.
Relaxar no final de uma tarde, acompanhado do chá galês, guarnecido de uma infinidade de pães e tortas caseiros, como a mundialmente famosa e imperdível Torta Galesa, numa casa de chá como "Plads & Coeds", é combustível apropriado para uma emocionante viagem à ré no tempo, e comprometer o tempo e a continuidade da própria viagem, rumo ao sul; principalmente se a dona da casa, como dueña Marta, for descendente das linhagens fundadoras dos Lewis, Edwards ou Jones.
Os galeses de Friedrich Engels
Algum mestre taoista disse certa vez, que o sentido de qualquer viagem é o próprio caminho, e na expectativa da experiência romântica, frequentemente nesta trilha o caminhante se depara com uma matéria-prima da História: a tragédia.
É o caso de Gaiman e das outras colônias galesas na Patagônia. Coube a Guillermo Saccomano lembrar-se de um clássico da Economia Política, que no séc. XIX descrevia o trabalho semi-escravo na minas inglesas de carvão, ferro, chumbo e estanho, que consumiram as vidas de milhares de homens, mulheres e crianças.
Aos sete anos de idade, os meninos já penetravam nos túneis, e entre os trinta e cinco e quarenta, suas vidas desvaneciam. Morriam de doenças respiratórias, atrofias musculares, e acidentes. O horário excedia as doze horas por turno, nas profundezas de uma passagem estreita e úmida, transportando nas costas os metais extraídos das galerias. Quando os garotos chegavam em casa, anota o célebre cronista, se atiravam no chão de pedra, junto à chaminé, e desfaleciam em sono profundo. Não tinham forças nem para levar a comida à boca. Seus pais banhavam-nos enquanto dormiam, e dormindo arrastavam-nos para a cama. Febris, esgotados, quando tinham o domingo de folga, permaneciam deitados. Eram poucos os que freqüentavam igrejas e escolas. As meninas sofriam dupla opressão, enquanto trabalhadoras e porque eram mulheres, escorraçadas do trabalho depois de darem à luz a uma criança...
O cronista chamava-se Friedrich Engels – amigo, mentor e co-autor de Karl Marx -, e sua crônica é a tristemente famosa pesquisa intitulada "A situação da classe operária na Inglaterra", publicada em 1845 - narrativa tão fria quanto arrepiante, cujos protagonistas eram estes galeses. “É demasiado tarde para uma solução pacífica”, diagnosticava Engels. Contudo, ao invés da rebelião violenta, os galeses deram as costas à exploração brutal, à perseguição religiosa e à mutilação cultural, como a proibição de sua língua, o Gaélico celta, dos mais antigos do mundo. Optando pelo exílio, aportaram na costa da Patagônia em 1865, em busca da terra prometida.
Paradigma de amizade entre colonos europeus e índios americanos
Mal se instalavam na Patagônia, e testemunharam, pasmos, a perseguição dos nativos pelo exército argentino.
E aqui talvez ocorra a única experiência de convívio pacífico e até mesmo afetivo, entre brancos e índios, em toda a América; crônica na qual índios salvaram a vida de galeses e, inversamente, galeses protegeram os índios das matanças.
Acima: Exército do Gal. Julio Roca na Patagônia, 1865
Inferior: Cacique Casimiro e chefes Tehuelches em Buenos Aires, 1865.
Inferior: Cacique Casimiro e chefes Tehuelches em Buenos Aires, 1865.
Emociona-se dueña Marta, contagiando seus ouvintes, quando pesca no pó do deserto de Chubut o espectro de Sayhueque, elégico chefe Tehuelche, que costumava levar seus antepassados galeses para a caça ao guanaco e ao ñandú, ensinando-lhes a técnica milenar da boladera.
Enquanto fala, o vento assovia em bemol, parecendo recompor a trilha da Campaña del Desierto - eufemismo do holocausto indígena, de 1879, comandado pelo General Julio Roca.
Explica o Guia Turístico YPF (a ex- Petrobrás argentina): "Dá-se este nome à ofensiva militar... que rompeu o nervo da sociedade indígena, pampeana-patagônica, e o correlacionado desfecho violento de um ciclo histórico...".
Leio num jornal argentino, que a população de Bariloche exigia a derrubada do monumento de Roca, cujo bronze está definitivamente maculado por grafites acusatórios e indeléveis: "Roca, el carrasco de la Patagonia!".
O próprio Tschiffely admite que se sentira envergonhado de ser europeu, ao referir-se às façanhas truculentas de seus anfitriões, originários das ilhas britânicas, no sul da Patagônia.
De Chubut à Terra do Fogo, a maioria das fazendas patagônias foi amealhada por uma “troca” perversa: “uma légua de terras por cada orelha de índio!" (Gen. Roca). Nem tão nobres farmers ingleses e irlandeses trucidaram índios, amarrando-os sobre blocos de gelo, flutuando nos rios da cordilheira, praticando tiro ao alvo em suas cabeças. Outros, mais sutis, convidavam os nativos ingênuos para um churrasco de ovelha; regado à estricnina. A nação Tehuelche foi extinta, obliterada da paisagem: os homens sobreviventes, integrados ao exército branco, as mulheres tornadas domésticas semi-escravas, e os filhos, separados dos pais.
Poema industrial
Com sorte, cruza-se com algum carro ou caminhão a cada meia hora. Punta Tombo, a maior reserva natural de pingüins do Hemisfério Sul, encontra-se no final da estrada de rípio que conduz à costa, e pode ser imperceptível. Quem a perdeu, deverá intercalar uma pausa no posto de gasolina de Camarones, e seu bar, atendido por alguns descendentes de índios Mapuche, que batizei de "Patagonia Café" - desértico, sujo, esculhambado, mas comoventemente acolhedor como o "Bagdad Café", no filme de Percy Adlon.
Estranhas aves mecânicas - bombas extratoras de petróleo, chamadas de "cegonhas" - sinalizam ao viajante sua aproximação de Comodoro Rivadavia (150 mil habitantes.).
Em 1997, aqui o litro de gasolina custava apenas ¼ do preço de Buenos Aires, e a medida fora adotada há muitos anos pelo governo argentino para estimular o aumento demográfico da Patagônia. Projetado contra o sol poente, o sobe-e-desce e o grasnar metálico das "cegonhas" silhuetadas, compõem um fascinante poema industrial sobre o deserto amarelo e a seiva negra que corre em suas veias.
Comodoro Rivadavia é a grande encruzilhada do viandante motorizado, e a última oportunidade de tomar uma decisão sábia. Para quem tem pressa, seguir os 700 km pela RN3 até Rio Gallegos, e de lá até a Ilha da Terra do Fogo (mais 900 km), pode significar a perda de vários dias preciosos de viagem, através de uma paisagem monótona, com estrada perigosamente retilínea. As opções são tomar a RP 148, asfaltada, que cruza Chubut em direção a Esquel e Bariloche, nos Andes, ou seguir de carro pela RN3 até Rio Gallegos, e de lá - nova encruzilhada - aprumar na direção sul, para a Terra do Fogo; ou, finalmente, no sentido sudoeste, para o Lago Argentino e o Glaciar Perito Moreno.
Decidimos tomar o avião para Rio Gallegos, e de lá seguimos de ônibus para El Calafate, às margens do deslumbrante Lago Argentino, onde fizemos nossa primeira aproximação com a Cordilheira dos Andes.
Com seus 3 mil residentes fixos, El Calafate é o portal de acesso ao Parque Nacional dos Glaciares, cujas 47 geleiras se entrelaçam com florestas selvagens, lagos, montanhas e rios caudalosos. Sua principal atração turística é a Geleira Perito Moreno, localizada a aproximadamente 80 km do centro da cidade. Diversas empresas de El Calafate transportam turistas até o parque, mas perde-se muito tempo a bordo dos ônibus, ganhando-se agilidade ao alugar um carro, uma motocicleta ou até mesmo um cavalo.
O encontro com a geleira Perito Moreno, desparramando-se dos picos andinos sobre o Lago Argentino, proporciona sensações próximas da vivência mística.
Aqui se aprende que em épocas remotas os lagos gigantescos foram geleiras que retrocederam sob o impacto de antigas alterações climáticas. As geleiras atuais são, portanto, modestos cartões de visita do Período Quaternário. Espetáculo ímpar: a cada 48 ou 72 horas, a comporta de gelo do Perito Moreno estacionada no meio do lago, rompe-se sob a pressão exercida pela água na parede principal, de 60 m de altura e 4,5 km de largura, e desaba...
Agora as geleiras andinas retrocedem sob os impactos do efeito-estufa; desta vez de origem indiscutivelmente antropogênica.
Creio falar também em nome de Liége: uma das experiências mais memoráveis dessa viagem foi nossa caminhada sobre a areia negra das margens do Lago Argentino; distantes dos ruidosos treckings e outros anglicismos da moda.
Cercado por aves raras e oníricas - cauquenes, patos selvagens, cisnes do pescoço negro e flamingos - tem-se aqui um dos encontros mais desafiadores com as intempéries patagônicas. As rajadas de vento que sopram dos Andes, aqui chegam a atingir mais de 100 km horários e a produzir dor de ouvidos; de frio, em pleno verão. Mas a recompensa não tardará, pois Júlio Gutierrez, do "Rick's Café", em El Calafate - que guardava um cartaz original de Casablanca , e que adorava posar para uma foto com seu chapéu à la Humphrey Bogart - prontamente servirá um submarino ou um vinho de boa cepa, acompanhado de jamón crudo.
2 comentários:
A Patagônia é maravilhosa! As melhores paisagens que vi em minha vida!
Depois a hospedagem Buenos Aires foi a mais bela de todas!
Paisagens fantásticas, por vezes quase surreais... Abraços alados azuis.
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