No filme “A lista de Schindler”, há uma cena particularmente comovente, protagonizada pelo contador Itzhak Stern, que entrega a Oskar Schindler a lista datilografada e assinada por cada um dos 1.200 judeus salvos pelo empresário alemão, e diz, citando o Talmude dos rabinos:"Aquele que salva uma vida, salva o mundo inteiro”.
O empresário chileno, Jorge Schindler Etchegaray, salvou a vida de aproximadamente cem dirigentes da esquerda chilena após o golpe civil-militar de 11 de setembro de 1973, mas rejeita qualquer atributo de heroísmo.
Nomen est omen, rezava um adagio latino, pretextando que no nome de um indivíduo estava escrito seu destino. Alemão o primeiro, descendente de suíços o segundo, a coincidência das atitudes de Oskar e Julio Schindler parece sugerir que seu sobrenome seja portador de um misterioso DNA da solidariedade humana. Etimologicamente falando, Schindler vem do antropônimo medieval germânico,“schinteler”, que quer dizer “telhadeiro”. Pois, dar um teto foi exatamente o que fizeram Oskar e Julio, ao abrigarem seus protegidos: um, os judeus perseguidos pelo nazismo, o outro, os comunistas caçados pela ditadura Pinochet.
Na epopeia do chileno repete-se a lição ensinada pelo alemão: salvar seres humanos das garras de regimes totalitários requer criatividade e circunspecção. Junto com sua esposa Emilie, Oskar Schindler literalmente comprava judeus condenados ao extermínio, subornando comandante da SS, aos quais pretextava a necessidade de mão de obra escrava. Julio Schindler - um ex-executivo da Corfo-Corporación de Fomento de la Producción de Chile, no governo Salvador Allende, sumariamente defenestrado de seu cargo pela ditadura militar – empregou um simulacro ainda mais criativo. Homem com posses, poderia ter abandonado o Chile, rumo ao exílio, mas resolveu ficar e resistir, criando uma rede de farmácias para socorrer dirigentes do Partido Comunista, esfacelado pela repressão.
Com lançamentos em Santiago e Concepción – as maiores cidades do Chile, onde ainda funcionam duas das farmácias abertas há quarenta anos – o livro “La Lista del Schindler Chileno”, escrito pelo jornalista Manuel Salazar, narra a epopeia protagonizada entre 1974 e 1978, por aproximadamente cem homens e mulheres perseguidos pelos órgãos de repressão da ditadura chilena, que se reinventam como modestos empregados de drogaria, acima de qualquer suspeita, socorridos por Julio Schindler e seu amigo, o farmacêutico Ramiro Rios. De passagem pelas farmácias, dois militantes são sequestrados, até hoje desaparecidos, mas a rede de fachada não é descoberto pela DINA de Pinochet. Apesar disso, pressagiando que sua prisão eram dias contados, em 1979, Julio Schindler, hoje com 75 anos de idade, escapa com sua família para Frankfurt, na Alemanha, onde dirige a agência de viagens “Chile Touristik”.
Em breve contato telefônico com o Jornal GGN, na véspera do lançamento do livro em Concepción, Julio Schindler advertiu: “Era um projeto que virou uma rede de sobrevivência. Dando trabalho e uma fachada legal aos nossos companheiros, suas vidas foram salvas. Mas não foi obra de um homem só, aquilo foi um trabalho coletivo", esclarece o chileno, fiel às suas convicções ideológicas.
Quarenta anos de discrição
Julio Schindler sempre quis tornar pública a aventura, mas aguardou o momento oportuno para fazê-lo com a concordância do PC chileno, do qual se afastou há mais de trinta anos. Com o depoimento de Schindler como alavanca da narrativa, o jornalista Manuel Salazar saiu a campo, colhendo sessenta entrevistas com ex-protagonistas da epopeia, cuja maioria sobrevive até os dias de hoje. No início apenas fascinado por uma estória completamente desconhecida no Chile, durante as entrevistas Salazar sentiu a vibração e verdadeira dimensão do significado da clandestinidade coletiva.
As farmácias serviam de refúgio para dirigentes considerados calibre grosso pela ditadura. Uma delas, ainda existente em Santiago e localizada em Villa México na divisa das comunas de Cerrillos e Maipú, era atendida por Quintín Romero, ninguém menos que o policiial federal que permaneceu ao lado do presidente Salvador Allende até o instante de seu suicídio, no dia 11 de setembro de 1973. Como muitos outros militantes, depois Romero refugiou-se na farmácia porque logo após o golpe foi exonerado e não tinha como sobreviver.
A organização da vida na clandestinidade
A rigor, a rede de farmácias era apenas um dos “aparelhos” desenvolvidos pela direção do PC, empenhada na sobrevivência mínima de sua estrutura e militância na clandestinidade, tarefa na qual Julio Schindler teve papel de estrategista.
O veterinário Alsino García, por exemplo, tomou a inciativa de criar um centro de atendimento veterinário com seu colega César Martínez, gerente de Pfizer. Na verdade, a empresa servia de fachada para a ativação das células da frente camponesa do PC e se reportava à Comissão Nacional Agrária do partido.
Armando Gatica foi outro “farmacêutico” acolhido por Schindler durante a caçada da ditadura aos hospitais clandestinos mantidos pela resistência, que ilustram uma das cenas emblemáticas do documentário “Miguel Littín clandestino en Chile”, do cineasta chileno homônimo.
Como funcionário do Serviço Nacional de Saúde, Gatica tinha baixado e sobrevivido ao inferno em um dos centros de tortura da ditadura, localizado em La Serena, norte do país. Detido, foi conduzido vendado e encapuzado ao galpão de um regimento do exército, em cujo teto foi suspenso por cordas, violentamente espancado e submetido a choques elétricos no peito, nas genitálias e no ânus, até perder a consciência. Gatica foi salvo graças à intercessão do bispo Francisco Fresno. Por intermédio de um colega soube das farmácias e refugiou-se em Santiago, também acolhido por Jorge Schindler, que o empregou, primeiramente, na farmácia O’Higgins, em seguida entregando-lhe a gerência da farmácia Principal, en Maipú - missão que atrás da fachada significava, primeiramente, alimentar e vestir os esfomeados e maltrapilhos militantes e reconstruir as células clandestinas do PC.
A maioria dos cem militantes salvos por Schindler não se conhecia e para garantir a sobrevivência do grupo, todos cortaram seus vínculos operacionais com o partido.
Destemido, Schindler alugou casas, prestou apoio financeiro, distribuiu medicamentos e chegou a esconder armas dos militantes em operação ou em fuga, como os fuzis AK-47 que, suspeita-se, pertenciam à Frente Patriótica Manuel Rodríguez (FPMR), o braço militar do PC, que em setembro de 1986 tentou assassinar Pinochet.
Em 1979, Julio Schindler abandonou o Chile, notabilizando-se até a queda do muro de Berlim, por sua participação ativa nas reuniões clandestinas de reconstrução do partido, grande parte delas realizadas em Berlim Ocidental.
“O que ele fez é notável!”, afirma, emocionado, Quintin Barrios, que gerencia a farmácia México, a primeira aberta por Schindler e talvez a mais lendária farmácia do Chile.
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Texto publicado originalmente em JORNAL GGN, São Paulo
2 comentários:
Conheci Jorge Schindler com julho de 1969, em Santiago. Sua solidariedade me levou a morar em sua casa em meus primeiros meses de auto-exílio no Chile. Sua ajuda, os gestos fraternos que teve para comigo e a viagem em que me levou para o sul do Chile, estão registradas em meu livro NOS RASTROS DA UTOPIA: Uma memória crítica da América Latina nos anos 70.
Manoel de Andrade
Conheci Jorge Schindler com julho de 1969, em Santiago. Sua solidariedade me levou a morar em sua casa em meus primeiros meses de auto-exílio no Chile. Sua ajuda, os gestos fraternos que teve para comigo e a viagem em que me levou para o sul do Chile, estão registradas em meu livro NOS RASTROS DA UTOPIA: Uma memória crítica da América Latina nos anos 70.
Manoel de Andrade
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