07 outubro 2011

Frederico Füllgraf - Koch-Grünberg, pioneiro do cinema na Amazônia

Taurepang, 1911

Ensaio


Em 1911, quando o boom da borracha, na Amazônia, já descrevia uma curva descendente, o antropólogo alemão, Dr. Theodor Koch-Grünberg, empreendia sua terceira expedição à selva amazônica.

Talvez os céus lhe tivessem dado um crédito de sobrevida, porque, mal completara vinte e quatro anos de idade, vinculara-se à descabeçada e acidentada expedição de Hermann Meyer, iniciada em 1896 em Buenos Aires, rumo à foz do Rio Xingu. Sobrevivente, retornou à Alemanha e escreveu seu doutorado. Em 1903,  partiu para sua primeira expedição pessoal à Amazônia, internando-se em territórios onde cem anos antes o naturalista Carl F. Philip von Martius concluía sua “Viagem pelo Brasil” (http://fuellgrafianas.blogspot.com/2010/11/o-beijo-de-boreas-parte-i.html).

Agora, Koch-Grünberg explorava o Rio Japurá e o Rio Negro, até a fronteira da Venezuela. A expedição durou dois anos e, de volta à Alemanha, o antropólogo a documentou com o livro, Zwei Jahre Unter Den Indianern. Reisen in Nord West Brasilien, 1903-1905. (Dois anos entre os índios. Viagens no noroeste do Brasil, 1903-1905, com farta e fascinante cobertura fotográfica. 


Naqueles dias, um tal Fitzgerald, seringalista peruano, procurava atalhar caminho entre dois rios, o Varadero de Fitzcarrald, para levar sua borrache em menos tempo para Manaus. Nas matas perto dali, nascia a etnografia audio-visual de Koch-Grünberg: as gravações em cilindros metálicos, às quais se somavam as impressões visuais de seu convívio com os índios do Alto Rio Negro, com os quais montou uma espécie de “ateliê das selvas”.



A terceira expedição de KG partiu de Manaus, em 1911, até o Rio Branco e de lá rumou à Venezuela. Em 1913, KG alcançou o Rio Orinoco depois de explorar nesse percurso, a pé e de canoa, várias regiões ainda hoje de difícil acesso. Ao voltar a Manaus, escreveu seu livro mais importante, Vom Roraima Zum Orinoco (De Roraima ao Orinoco), publicado em 1917, mas só outros100 anos depois no Brasil (cf. Livraria UNESP). 

Durante esta expedição, com a duração de dois anos, nascia o primeiro filme na História da Amazônia – “Aus dem Leben der Taulipang in Guyana” (Da vida dos Taurepang na Guiana),
As bem humoradas anotações que seguem, descrevem os percalços da filmagem, realizadas por KG e seu assistente, H. Schmidt, e foram por mim traduzidas da edição original de “Vom Roroima zum Orinoco”.

 Minha afirmação, de que KG é autor dao primeiro fillme amazônico (http://www.cronopios.com.br/site/colunistas.asp?id=2690), suscitou polêmica e contradisse a crença generalizada na Amazônia, reverberada pelo escritor Márcio Souza, segundo a qual o português, Silvino Santos, teria sido o pioneiro, com seu filme rodado em 1912 no Putumayo, contratado pelo “cauchero”, Julio Cesar Aranã.

Theodor Koch-Grünberg

O diário das filmagens

"As chapas fotográficas que me foram fornecidas por uma grande e famosa empresa berlinense, são uma encrenca. A consistência das chapas de Isolar deixa muito a desejar. Ainda que eu proceda com o maior cuidado, revelando somente durante a madrugada e enxaguando o material em água fresca do arroio da montanha, em várias delas a emulsão se desprende em grandes nacos de pele. Bom número de imagens se perde e terá que ser re-fotografada. O banho de sulfato duplo de alumínio e sódio, que eu executo rigorosamente segundo o manual, comprime a camada flácida demais em um sem número de rugas, tornando as fotografias imprestáveis. Toca de forma notavelmente ridícula ao especialista em trópico, quando lê, impresso em três idiomas na embalagem deste material, "a prova de trópicos“, que: "a temperatura do revelador não deverá exceder 20 graus centígrados”. É muito raro encontrar água com  temperatura tão baixa nos trópicos, que pelo menos se mantenha baixa até conseguirmos revelar uma dúzia de chapas.

[....] Já as gravações fonográficas me proporcionam alegria compensadora. Eu trouxe um cilindro já gravado e costumo tocar as gravações para habituar as pessoas à percepção de que o aparelho reproduz a voz humana. "---- és minha doce, pequena mulher“, da peça "O Conde de Luxemburgo“ de Lehár, e trechos  ("---mas, que coisa, o que é que deu na Rosa“ -  do  charmoso  regional da Renânia, "No Bósforo“, de Paul Lincke, são canções que eles sempre voltam a pedir e não demora até essas crianças com tino musical entoarem as melodias, com divertida  mutilação do texto alemão.

[...] É preciosa a ajuda que o cacique Pitá me dá neste trabalho. Com sofrível acompanhamento de Pirokaí, ele mesmo entoa os cânticos de dança dos Makuschí para o funil [do fonógrafo], também o Parischerá, o Tukúi, o Muruá, um Oarebã, somente dançado de dia, e outro, que é dançado de madrugada. Com suas vozes luminosas, agradáveis, duas meninas entoam canções envolventes, como acompanhamento da ralação de mandioca (...)



 


[...] A meu pedido, o cacique arrasta o curandeiro Katúra à cena. Inicialmente, este resiste a cantar para a ´mákina´, como todos os índios costumam chamar minhas engenhocas mágicas. Desconfiado, Katúra pergunta por que eu quero levar sua voz comigo. Eu lhe prometo presentear uma grande faca. Isso o convence,  mas desde que a gravação seja feita em todo segredo e que, depois, seus cânticos não sejam reproduzidos `às pessoas´. Provavelmente teme [expor-se e]  perder sua influência. Pitá enxota todos os visitantes da maloca [...]  – in:  Theodor Koch-Grünberg,  Do Roraima ao Orinoco, edição alemã, 1917, vol. I, 51-53

"O que devo relatar sobre os dias seguintes ? Eles foram belos, também de paz, não menos laboriosos, é certo, como na minha primeira estada em Koimélemong. – Contudo, não foram os ´selvagens´ que nos fizeram sofrer, nem os mosquitos, que a cada dia surgiram em menor número. Não - foi uma das mais modernas conquistas da civilização, há vinte anos sequer imaginada pelos exploradores – o Kinematógrapho!


Kynematographo

Carregar sua pesada caixa, é um suplício diário e, de entrada, esforço aparentemente inócuo. Apesar de observarmos atentamente as recomendações, a película costuma emaranhar-se após alguns metros. A exposição à luz torna este pedaço de filme imprestável, tendo que ser cortado e queimado, para que os índios não cometam besteira com a sobra [tóxica]. Generosas, essas pessoas aguardam pacientemente debaixo de calor tórrido, suspendem respeitosamente suas danças e seus afazeres, até que eu consiga carregar um novo chassis.  Eu retomo a manivela e a geringonça trava novamente. Assim, muito material, tempo e paciência são desperdiçados. Sem perda de tempo, após sua impressão os filmes têm de ser retirados do chassis, embalados em folha de alumínio e acondicionados em latas metálicas. Quase nu, estou alapado na barraca improvisada de câmara escura, tomando um banho turco, na acepção mais aleatória do termo, pois do lado de fora já se faz meio-dia com 35 graus à sombra. Freqüentemente, só conseguimos repousar muito depois de meia-noite e, mesmo dormindo, continuamos a manivelar [o cinematógrafo]...

(...) Estou completamente estendido no chão, que reflete um calor de chapa de fogão.  Observo as brincadeiras das crianças, ou converso com meninas e mulheres inteligentes, que tomam aulas de alemão comigo. Elas quase torcem a língua na tentativa de repetir a fonética das pesadas palavras, que lhes parecem duras, devido à profusão incomum de consoantes. Suas divertidas gargalhadas parecem não ter fim. Querem saber o nome de tudo em alemão: da lua e das estrelas, de todas as  partes do corpo. Elas me perguntam o nome do meu pai, da minha mãe, da minha esposa e dos meus filhos, se eu resido na montanha ou na planície, quais os animais que vivem sobre a terra, na água e no ar da minha terra natal; se lá as pessoas têm de morrer, se também existem Piasángs (curandeiros) e muito mais. Ato contínuo, me pedem para cantar.  E o cenário é como o de Uaupés. E que belas canções eu canto !  "Annemarie, wo willst du hin / Anamaria, pra onde queres ir“, ¨Saufen ist das Allerbest/ Beber é o melhor que há...“, "Ich ging mal bei der Nacht / Uma vez fui de madrugada ...“ – canções que certamente os missionários não cantam para elas! [...]" (Koch-Grünberg 1917, Vp, Roroima ao Orinoco / Do Roroima ao Orinoco, Tomo 1, 80-81).


Cenas de Taulipang (1911)


Imagens: Philips Universität Marburg, Museum für Völkerkunde Berlin

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