30 dezembro 2010

Frederico Füllgraf - Feliz Ano Novo! Crônica politicamente incorreta


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Para Jan Pablo 

Reeditasse sem comentários esta crônica publicada há sete anos, e quem se lembraria? No entanto, o Ano Novo está às portas. Mas as portas aqui referidas são metáfora de tempos sombrios, que meu filho Jan não conheceu. Botafoguense de nascimento, conhece Curitiba e a Ilha do Mel como a palma da própria mão. Contudo, por inusitadas e insolitas razões, Jan é um privilegiado morador de Palermo Viejo, Buenos Aires. E movido não sei por qual intuição, numa quinta feira à tarde de um dos últimos anos, chama um colega da escola, empunha uma velha câmera VHS, atravessa a cidade e – de chofre – entrevista algumas Madres da Plaza de Mayo. Pai, pede-me por e-mail, me ajuda com alguns contatos!  Em janeiro de 2011, Jan completará dezenove anos – o resto era silêncio, mas o leitor associará. 

Pasmado, leio no jornal a confissão de Dr. Henry: sempre desmentida, em 2003 a conspiração é admitida. Fria, burocrática, desata em mim a irrefreável viagem à ré no tempo. Faz trinta anos. Agora alguns rostos são apenas feições embaciadas. O de Cláudio, por exemplo, estudante de engenharia e companheiro da associação de estudantes latino-americanos. Naquele momento o argentino Cláudio é como eu, Ruiz, Alícia, João e Marina: estamos confortavelmente instalados na Alemanha  dos anos 70 e por isso nos sentimos “culpados”, em dívida com “o chamamento”.  Por isso Cláudio se despede à francesa. Meses mais tarde saberemos que trabalha numa fábrica, a 12 mil quilômetros de distância, no labirinto entre La Boca e Avellaneda. É o início de 1976 e depois disso Cláudio Zieschank some do mapa.

Retomo o jornal, mergulho na trama paralela: 7 de outubro de 1976, outono em Nova York. Imagino o cenário. Uma suave brisa toca álamos, carvalhos e castanheiras, despindo-os de sua última folhagem. Enquanto fala com seu interlocutor sul-americano, Dr. Henry levanta-se da poltrona e acompanha pela janela da suíte, a elipse de uma folha em queda-livre, que vai juntar-se ao cintilante e fofo tapete ocre-bordô em formação no Central Park; ali aos pés do Waldorf-Astoria. Absorto, com as mãos cruzadas às costas, por um momento deixa-se cativar pela lerdeza dos elementos. Intui que o ciclo se completa. Reincorporado, volta-se abruptamente para seu interlocutor, disparando seco: “Quanto mais rapidamente vocês agirem, tanto melhor!”. O almirante César Augusto Guzzetti retorna à embaixada argentina em Washington e de lá transmite a senha para seus pares: “Se conseguirmos acabar com eles antes que o Congresso americano volte a reunir-se, em dezembro, eles nos darão as armas e o crédito!”.


Duas semanas mais tarde, madrugada do dia 23 de outubro de 1976 em Buenos Aires, derrubam a porta da casa da família Meijide. Na frente dos pais aflitos agarram Pablo, um garoto com apenas dezesseis anos de idade. É Graciela Meijide, a mãe, que me narra o episódio – faz sete anos, mas sua emoção é de ontem. No vinco das rugas em seu bonito rosto, percebo a falsa velhice de oitenta e cinco meses de vigília.  Enrique Fernández Meijide, o pai, mergulha em duas mil e quinhentas noites de insônia, para dar forma ao choque, ao terror, à náusea, à cólera represados. Troca a arquitetura pela poesia,  para dar um sentido à própria impotência: “Te fuiste por el lado de las sombras / Sin mirar hacia atrás. Juntando el miedo, / que te sobraba, / con todo el nuestro. // Intentando dejarlo a nuestro cargo / porque debías parecer sereno. / Cinco gorilas / y vos en medio…”.

E eles virão sempre de madrugada: primeiro, os paramilitares de uma certa Triple A, depois, tropas regulares; se é que neste ofício de carniceiros se pode falar em “regularidade”… Em deferência à tradição cristã, no final do ano batizam o operativo de “Missão Natal Feliz”.  

Outubro de 1983. Caminho em ziguezague entre as valas reabertas do cemitério de La Chacarita. Somos trinta pessoas que seguem um coveiro errante, guiado por uma bússola falha: segura nas mãos o mapa oficial das covas com nome, sobrenome, data de nascimento e morte dos finados. Neste mapa, não há, contudo, registro de “NNs”, os non nominati varridos da geografia, expropriados de identidade, engolfados pelo anonimato silente. Cláudio, Pablo e os demais vinte e nove mil, novecentos e noventa e oito desaparecidos não existiram – diz a “história oficial”. Por isso, na Praça de Maio as Madres e Abuelas caminham em círculos, repetem há anos o rosário da dor, insistem em devolvê-los à vida.

O Poder se cala e então os fantasmas tagarelam através das frestas desta história adulterada e pervertida, como o personagem do paisano em “La Ciudad Ausente”, de Ricardo Piglia:  (…) Eu vi coisas tais, que preferiria começar outra vida, sem recordações, se já estive a ponto de deixar minha mulher e os filhos, tomar um trem, ir-me a Lomas (…)Fuzilavam-nos a dois metros de distância e atiravam os corpos em poços, depois andavam com topadoras, abrindo valas, e às vezes aos mesmos desgraçados obrigavam a cavar a tumba para matá-los em seguida. Via-os como num sonho, nus, os cristãos cavando a própria sepultura (…). 

Último ato. Há uma estância em Bariloche, aos pés da Cordilheira. Dr. Henry adquiriu-a em troca de sua vilania. Pressionou a Argentina para livrar-se de suas paisagens, após assinar a ata do extermínio de seus filhos. Sugeriu que entregassem a Patagônia para pagar uma dívida mil vezes quitada. Obsceno, aqui instalou seu pouso de guerreiro. Dr. Henry: fugitivo do Holocausto e mago da Solução Final no Prata. Dr Jekill & Mr Hide. Sabotou uma conferência de paz em Paris e meio milhão de vietnamitas morreram em vão; junto com eles, vinte mil norte-americanos. Para garantir o poder a Nixon. Determinou a invasão do Timor Leste e a soldadesca de Suharto perpetrou uma carnificina. E nenhum mea-culpa. Consentiu o assassinato do general Schneider no Chile e preparou o golpe contra Salvador Allende. Disse: “Não vejo por que agüentar um país que se torna comunista devido à irresponsabilidade de seu próprio povo”.

Dr. Henry não sente remorsos. Prêmio Nobel da Paz e Criminoso de Guerra... 


Para o mercado, as bênçãos; para os adversários, o extermínio. O médico e o monstro. 


Para o Village Voice não passa de  “Milosevic do Big Apple”: durante os bombardeios dos EUA morreram 350 mil civis no Laos. No Camboja foram 600 mil; sem contar os mutilados e para sempre aleijados. O indignado Christopher Hitchens dedicou-lhe The Trial of H.K., mas o Império não permitirá que arrastem Dr.Henry (aliás: Heinz Alfred Kissinger) à Corte Internacional.  

Se apesar da neve, todavia o chão esquentar demais em Nova York, a besta encurralar-se-á em seu último refúgio – Natal em Bariloche, mas no céu nenhuma estrela.  

Mas haverá sempre um idiota disposto a abraçá-lo.

04 novembro 2010

Frederico Füllgraf - O beijo de Bóreas, Parte II

Isabella Miranha,Yuri Comás: morte em Munique


"Pai da Botânica Brasileira"
Cento e setenta anos após a aventura de seu tetravô, o advogado Alexander Von Martius, instalado em endereço nobre do Odeonsviertel, setor histórico de Munique, incumbiu-se da administração do acervo biblio e iconográfico da expedição, recolhido em regime de comodato à Biblioteca do Estado da Baviera. Emocionado com a eventual imortalização de seu ilustre ancestral em telas e monitores, abre o acervo para a pesquisa de pré-produção do filme que eu queria fazer.
Manusear os manuscritos originais, rabiscados, de uma obra clássica, é uma experiência emocionante, e sua monumentalidade inibe. Após a morte de Spix, ocorrida em 1825, provavelmente por causa de uma malária mal-curada, Martius dedicou com persistência avassaladora os dois terços restantes de sua vida à tabulação de dados científicos e à publicação do imenso acervo coletado no Brasil. E ei-lo, sistematizado. Em "Passado e Futuro do Homem Americano" (Munique, 1838), Martius ousou traçar um perfil antropológico do índio brasileiro, mas com olhar europeu, fatalista. Já com a  "Natureza, Doenças, Medicina e Remédios dos Índios Brasileiros" (Munique, 1844) compilou o primeiro receituário fito-terapêutico e de medicina popular do Brasil, constituído de aprox. 130 plantas medicinais em uso no início do séc. 19.

Do ponto de vista estético, porém, suas duas obras mais exuberantes são a "Historia Naturalis Palmarum" - atlas em três tomos e ilustrações in folio, no qual o botânico inventariou mais de 120 espécies palmáceas brasileiras - e a "Flora Brasiliensis", cuja edição completa o próprio D. Pedro II ajudou a financiar, e que entre 1840 e 1906 contou com a participação de aproximadamente 60 especialistas internacionais, tais como o desenhista de plantas, Johann Buchberger. A instituição das "províncias botânicas brasileiras" – estabelecidas em  nova ordem taxonômica, e agrupadas em 40 famílias - além da publicação de mais de 20 obras científicas nos terrenos da Botânica, Zoologia, Medicina, Antropologia, Geografia e Lingüística, certamente faz de Martius o maior brasilianista do séc. 19, logo celebrizado como "pai da Botânica brasileira.".

Através de sua obra geográfica e botânica, Martius soe apresentar-se como cientista - objetivo, sisudo, quase frio. Ao longo da expedição, no entanto, irromperá em cena, mas como tímido personagem coadjuvante, o Martius-pessoa; subjetivo e apaixonado. Emocionantes são suas cartas, cujos originais, trocadas com Goethe, manuseio em Munique, e numa delas ele informa ao autor de "O Jovem Werther" que em território da atual Bahia acabara de batizar de Goethea Cauliflora uma plantinha da família das malvas - um  gesto de gratidão pelas informações contidas na  “Morfologia das Plantas”, da autoria de Goethe, que participa desta expedição como correspondente entusiasmado.

A música e uma história de amor

Ana Maria Kieffer

Jovem com formação e um excelente ouvido musical, Martius tocava violino, que o teria acompanhado durante a expedição. É bem possível que tenha atravessado o Brasil, vez por outra executando um Mozart ou alguma obra sacra, mas sentiu-se seduzido pelos Lundus e as Modinhas, nativos, cantados em arraiais e saraus, nas fazendas. Memorizava as melodias populares, muitas delas de autores anônimos, e de ouvido escreveu suas respectivas partituras, contribuindo para sua eternização: “Eu nem suspirar sabia, Antes de te conhecer, Mas depois que vi teus olhos, Sei suspirar, sei morrer...” Algumas foram anexadas à edição alemã da "Viagem pelo Brasil", e pela primeira vez adaptadas e gravadas em CD (2) pela cantora lírica, paulistana, Ana Maria Kieffer, e seu conjunto de música popular do Brasil-Império. Fundadora de certa “Confraria Von Martius”, grupo de artistas e intelectuais brasileiros, apaixonados pela Viagem pelo Brasil, Ana Maria recebeu como se fosse um presente, meu convite para compor a trilha sonora do filme, cuja produção foi interrompida porque em 1992 seus principais investidores alemães resolveram empatar seu dinheiro na ex-Alemanha Oriental, sucatada.

Outra janela subjetiva prevista no roteiro do filme foi a revelação dos originais de “Frei Apolônio” (3), romance que Martius escreveu como espécie de “interface entre a divulgação científica e a imaginação literária” (4). Enredo fortemente autobiográfico, seu personagem central é um naturalista estrangeiro em visita à Amazônia, apaixonado por uma índia brasileira. “Frei Apolônio” nasce durante a caminhada de Martius pela selva, onde presta atenção aos afazeres das mulheres; brancas, mestiças e índias. Sendo médico, observa sua manipulação de plantas medicinais, sua capacidade de cura de variadas doenças, mas é sobre a intimidade das mulheres índias que recai o olhar furtivo do personagem do romance; e quase sempre com o recorte psicológico do buraco da fechadura; certamente porque Martius era luterano, devoto, ou porque sua antropologia rudimentar já lhe exigia distanciamento do objeto do desejo. Os originais do livro foram trancados a sete chaves pela Família Von Martius, mas descobertos na mesma Biblioteca por pesquisadores bávaros, em 1967. A decisão de esconder o livro do público não se deveu ao temor da devassa da intimidade de Martius, mas aos próprios defeitos de composição literária, na qual, segundo Nicodemos Senna “o contexto invadiu o texto...abrindo-se um abismo entre a imagem e sua expressão”


O beijo de morte de Bóreas

Spix, Martius e os dois curumins chegaram a Munique debaixo de espessa nevada, a poucos dias do Natal de 1820, e foram a grande atração das colunas sociais bávaras. Os castelos e casarões não tinham calefação, mas os indiozinhos foram obrigados a tirar a roupa,  expostos à curiosidade pública e à sanha dos pintores, como “os calados selvagens do Prof. Martius”. O paroxismo: como a garota Isabela pertencia à tribo Miranha, do Alto Rio Negro, e o menino Iuri, ao grupo dos Comás, das margens do Rio Purus, sequer conseguiam comunicar-se, recolhendo-se em terrível sentimento de desproteção e mutismo.

Martius, contudo, exultava: havia conseguido apresentar a Sua Majestade, Max, o Rei Maximiliano, dois selvagens em carne e osso, admiração tributada pelo rei com a concessão dos títulos de nobreza - "von" - aos dois viajantes. A índia Isabela foi rapidamente “adotada”  pelas jovens filhas do rei. Deram-lhe roupas finas e tentaram ensinar-lhe alemão e a etiqueta - “Guten Tag, mein Name ist Isabella!“. Mais isolado, Iuri adoeceu antes que Isabella também caísse com febre. Questionava-se a velha copeira de Martius, se era o frio ou, por acaso, a tristeza que estavam deixando as crianças doentes. 

Compassiva, a  escritora Henrique Leonhardt (5), colocou-se no lugar dos curumins, imaginando a perspectiva: tudo era assustador para as crianças, sempre acocoradas ao lado de suas camas. Leonhardt  preencheu com emocionante tentativa de reconstituição ficcional o silêncio reservado por Martius aos dois índios. Iuri e Isabella nunca tinham visto uma casa, não estavam habituados aos móveis, estranhavam os cheiros e o sabor das comidas. E o que dizer desse pesado sotaque bávaro, desafiando o seu jejum - Essen, ihr müsst essen, Kinder, sonst ruf’ ich die böse Hex’! (Comer, vocês tem que comer, crianças, senão eu chamo a bruxa malvada!).

- Abram estas malditas janelas!, vociferava Martius, toda vez que acedia ao quarto, gelado, em que definhava o menino Iuri. O professor  atribuía seu mau estado de saúde “à falta de ar fresco”. Muito pelo contrário, era o excesso de elementos em perigoso ponto de glaciação, que estava matando o índio brasileiro. O estado de Iuri piorou e Martius mandou chamar o médico da família. Tarde demais: feito um gravatá, colhido nos trópicos e transplantado para o canteiro das tulipas de neve, não resistiu ao beijo de Bóreas, deus dos gélidos ventos do norte: Iuri morreu no inverno de 1821.

Isabella sobreviveu mais um ano. No verão, as meninas brincaram com ela o jogo da amarelinha, e os adultos levaram-na, com aquele chapéu de renda branca, até o Chiemsee, o belo lago aos pés dos Alpes, azulados. Mas Isabella não suportou o terceiro inverno da Baviera, falecendo no final de 1822, e foi sepultada com Iuri no Südfriedhof, onde Martius veio fazer-lhes companhia, após sua morte ocorrida em 1868. 
"Como se deve escrever a História do Brasil"
Em 1844, Von Martius publicou um interessante ensaio, intitulado "Como se deve escrever a História do Brasil". Constatando que a historiografia oficial era totalmente permeada pelo discurso colonialista português, esboçou a matriz de um projeto historiográfico, que segundo seu entendimento seria capaz de conferir uma identidade à Nação, em processo de construção. Segundo Von Martius, seria desejável que os futuros historiadores centrassem seu foco na missão específica reservada ao Brasil, enquanto Nação, e estimulando a idéia da mescla das três raças, assegurassem sua identidade.

Traçando um esboço do país, cuja evolução obedeceria a certa "lei das forças diagonais", cada uma dessas raças seria um motor da História do Brasil. Mas com reservas, porque segundo a concepção de Von Martius, devido à sua maior experiência civilizatória, o branco deveria ser contemplado com maior interesse na liderança nesse processo. Já os negros são enfocados sob o prisma, contraditório, da depreciação, pois representariam um obstáculo ao processo civilizatório - olhar que hoje só pode causar espanto, dada sua conotação racista, mas completamente "natural" no contexto de uma etnografia apenas emergente, em meados do séc. 19. Os indígenas, enfim, apesar de enquadrados sob o ponto de vista de "ruínas de povos antigos", mereceram a valorização do naturalista, que encoraja sua integração à História Nacional sob a perspectiva dos conhecimentos que propiciaram à História Natural do país.

O vôo filosófico e humanista do botânico não agradou à elite da época, que rejeitou, até o início do século XX, a miscigenação que Martius identificava como pilar da identidade nacional. Apesar de suas próprias restrições, a reflexão de Martius “foi uma ante-sala do discurso da miscigenação, fundamental para definir a identidade nacional”, afirma Karen Lisboa, autora de uma das narrativas brasileiras sobre a expedição.

Escravos e natureza de Rugendas

Martius, Langsdorff e Rugendas
Exatamente um ano depois do regresso de Spix e Martius a Munique, Hans Lorenz Rugendas participava da redação do contrato entre seu filho, Hans Moritz (ou João Maurício) Rugendas, e o Barão Von Langsdorff, que na qualidade de emissário do czar, Alexandre I, e de Cônsul da Rússia no Rio de Janeiro, contratava naturalistas e artistas para sua própria expedição ao interior do Brasil, a ser iniciada em maio de 1824.
O mesmo rei Max Josef, ou Maximiliano José I, da Baviera, um grande entusiasta do Brasil, foi informado sobre o projeto de Rugendas, já que havia apoiado a expedição de Martius e Spix, e ali mesmo combinaram que João Mauricio Rugendas deveria ampliar os contatos já existentes no país. Martius acompanhou os preparativos da viagem, e da mesma forma como Humboldt, que residia em Paris e estava debruçado sobre o texto da sua "Nova genera et species plantarum" (7 vols. in fólio, escritos entre 1815 e 1825), ele também solicitou a Rugendas que lhe enviasse desenhos e aquarelas para ilustrar suas obras de botânica.

No início de janeiro de 1822, Rugendas tomou um navio no porto de Bremen, rumo ao Brasil, desembarcando em 5 de março de 1822 no Rio de Janeiro, onde o esperava Langsdorff. Nascido em 1802, quando desembarcou, Rugendas mal completava 20 anos de idade, celebrando seu aniversário em 29 de março de 1822, na Fazenda Mandioca, de Langsdorff.

A fazenda, localizada no hinterland do Porto da Estrela, nos fundos da Baía da Guanabara, se estendia por uma zona de grande diversidade botânica, e já servira como refúgio para Auguste Saint Hilaire, Spix, Martius e outros. Apesar da pujança tropical, o artista plástico não consegue desfrutar relaxadamente dessas belezas naturais, pois ali mesmo começaram seus enfrentamentos ideológicos com Langsdorff; aspecto da permanência de Rugendas no Brasil muito raramente enfocado por autores nacionais.

Ocorre que em sua fazenda o Barão mantinha 200 escravos, negros, por quem Rugendas logo se afeiçoou vivamente. Langsdorff era um homem carismático, mas certamente não um re-descobridor das Américas, na linha iluminista, pró-abolicionista e independentista, recém-inaugurada por Humboldt, e, sim, um empreendedor que apostava na longevidade do sistema colonial. Já Rugendas chegava ao Brasil, marcado pelo espírito do Romantismo alemão e a rebeldia ideológica do movimento "Sturm und Drang" (literalmente:agitação e impulso), de precoce matiz republicano.

O artista se compadeceu das condições de vida cruéis dos escravos, e devido aos seus duros agravos ao regime escravagista, a relação do barão e do jovem artista plástico ficou estremecida antes mesmo que a expedição partisse. Quando atravessavam as Minas Gerais, deixando para trás Barbacena, São João del Rei, Ouro Preto e Sabará, Rugendas e Langsdorff se enfrentaram numa última disputa.

Concluído o trabalho de ilustrador, ao qual estava obrigado por contrato, Rugendas desligou-se da expedição, tomando uma decisão que se pode considerar acertada, pois já era previsível que nem de longe o empreendimento de Langsdorff teria o êxito da expedição de Spix e Martius, realizada cinco anos antes. Adrien-Aimé Taunay, substituto de Rugendas como desenhista da expedição, morreu afogado num rio, e foram tantas as doenças e mortes durante a malfadada aventura, que Langsdorff se viu obrigado a interrompê-la e regressar à Europa, onde ele mesmo desembarcou em estado mental próximo à demência.

Final feliz (para a Ciência...)
Comparados com o verdadeiro saque biológico, perpetrado durante o período colonial pelas potências européias contra os países e povos colonizados, com esta viagem e esta obra, monumentais, Spix e Martius legaram à memória nacional muito mais do que efetivamente levaram do país - missão científica, da qual desgraçadamente o translado doidivanas dos dois indiozinhos da Amazônia resta como esmaecida nota de rodapé da História.

26 outubro 2010

Frederico Füllgraf - Play it again, Oskar!


Fotos: Google.de

Crônica de Berlim


Poetas morrem de overdoses: de versos, droga ou loucura; em casos extremos, de fome, ou de bala do marido da amante. Já Oskar Huth, o ébrio virtuose, derrapou sobre uma partitura e despencou num fosso, entre uma clave e um si-bemol. Em vida foi o que os berlinenses chamam de Original: viajado, erudito, amante da boa tertúlia, e, sobretudo, estradeiro; subentendido não como transgressão criminosa, mas como atributo de pessoa, digamos, algo avessa ao trabalho.
Flaneur, Oskar era um Baudelaire prussiano: tinha no sangue o mapa das avenidas e alamedas, das colunas e estátuas, dos arcos e viadutos e, sobretudo, dos Kneipen; os botecos. Não andava: parecia deslizar pela cidade. De olhos fechados.
Conheci-o, e já beirava os sessenta anos de idade. Irrompeu no bar Litfass, do também saudoso português, Antonio, trajando incombinável, berrante gravata cor laranja sobre camisa cor verde; desarrumação acentuada por um paletó violeta; surrado. Tinha prazer em esfarinhar a má educação, modismo antiautoritário da época, com implacável cerimônia, mas sem empáfia: não resistia ao hábito de cumprimentar as damas, beijando-lhes as mãos – atitude extemporânea, que nele resgatava o desprezado (mas, ai, tão desejado!) Kavalier à moda antiga, com isso reforçando a colorida, etílica e divertida decadência da então cidade intra-muros.
Contumaz, neste mesmo tom fin-de-siécle (do XIX, pois já contávamos 1980), apesar da minha irritação, Oskar saudava-me como “mein Freund vom Oberen Orinoco” / “meu amigo do Alto Orinoco” – rude equívoco territorial que remetia àquela boçalidade geográfica de filmes B, hollywoodianos, nos quais chiquitas-bananas bailavam rumba em Coupakébéna... Carmem Miranda?Oh, nein - gringos jamais! Naquele faiscante átimo bolivariano, Herr Huth reincorporava a odisséia do inebriante Humboldt às “regiões equinociais do novo continente”. Contudo, seu fascínio não brotava unicamente de seus modos educados, fora de ordem, mas de sua aura de alemão marginal, cuja coragem era cochichada em prosa e verso, naqueles tempos (noves fora o Che Guevara) tão carentes de heróis.
Quando inspirado, empertigava-se ao piano sebento, com teclas amareladas pela ação da fumaça dos cigarros de muitos anos, parecendo perfeita réplica do “Pau d´água” - vinil muito tocado nas festas dos meus pais, em minha infância, ilustrado na capa com um pianista bêbado junto a um piano, idem. Deste, Oskar conseguia arrancar harmonias oblíquas para a embasbacada platéia: solenes fugas de Bach, aqueles estertores de Billie Holliday (“He is my maaaan...”), uma chanson lacrimosa de la Piaf...
E nestes concerti buffi jamais faltava uma loura quase fatal, derramada sobre o realejo, como falsete de Greta Garbo, traçando com os olhos John Gilbert ao piano, em Flesh and the Devil. Apostei que um dia ele adentraria o bar em baixo astral e – de staccato a furioso - atacaria de Hindemith; só para contrariar.
Mas Oskar era movido por inabalável bom humor. Quando chegava recém-desperto, com profundas olheiras, roxas, descabelado, e a barba com três dias, desculpava-se com deferência, re-pescando no céu de chumbo os tormentos da noite anterior: “passei da conta, Brüderchen (“irmãozinho”), bebi o rio todo, encharquei até a alma”.- alegoria emprestada do Spree, rio que corria de leste a oeste, por baixo do Muro, impassível à divisão da cidade.
Filho de músico, desde a tenra idade acompanhara o pai a bordo de uma charrete, em missão profissional. Viajavam por Berlim e a província de Brandenburgo, consertando e afinando órgãos de igrejas, devolvendo a alegria a padres e pastores, recebendo em troca seu pró-labore e a promessa de uma vida eterna. Foi assim que a música entrou na passagem terrenal de Oskar, quem como poucos sabia que a eternidade.... - ora, essa se arrebata ao instante! 
Mas o que tornaria sua biografia digna de um longa-metragem foi a 2a guerra, que silenciou seus Lieder, substituindo-os pelo assovio tenebroso de bazucas, tanques e bombardeiros, fechando o céu sobre Berlim.
Antes da minha volta ao Brasil, tínhamos combinado uma entrevista para um semanário brasileiro, tendo como locação a gávea do Obelisco da Vitória (vitória sobre a França, em 1870), que se situava a poucas quadras da casa onde eu morava, no Tiergarten. Isso mesmo: aquela coluna Bismarckeana, empoleirada por um gigantesco e coruscante anjo dourado, que, anos mais tarde, Wim Wenders levou para a história do Cinema como ícone de “Asas do Desejo”.

Indisciplinado, alemão às avessas, Herr Huth não compareceu. Deixou-me babando pela narrativa até o próximo encontro. No bar... Certamente porque o anjo não servia bebidas, mas apenas uns excelsos e insípidos bafejos, sem álcool, sobre a arte de elevar-se às alturas - essas bizantinices esvoaçantes de querubins e aeronautas. 
Ora, cá embaixo, eclodira a grande guerra. Alistado no exército, Oskar desertara em seguida, entranhando-se na clandestinidade. Convencido de que seu paradeiro era farejado, triscou um criativo despiste: entregava cartas e cartões postais a amigos viajantes, com a ordem para aguardarem o bombardeio considerado terminal, de cidades inusitadas, e então postarem os sinais de vida aos seus familiares, espantados e aliviados. Dado por morto, Oskar renascia em cada batalha...
Sobreviveu aos seis anos da guerra como falsário de identidades, passaportes e outros documentos (para judeus, comunistas e clientes menos recomendáveis), só abandonando seu bunker no dia da conquista de Berlim pelas forças aliadas.
Interrogado por norte-americanos, teria lhes recomendado uma “receita histórica” para seu país em ruínas: - Dividam-no em quarenta partes e nunca mais haverá guerra! Os ianques se entreolharam, riram constrangidos, e prometeram pensar na proposta. Eis que, em 1948 a Alemanha estava partida em duas, e Berlim “de quatro”, digo: dividida em quatro “zonas” de domínio militar – geografia e história hoje superadas, mas de autoria reivindicada por Oskar. Que ria treteiro, ajeitando a gravata torta, insinuando solenidade. Divertia-se com a pasmaceira dos cristãos diante de sua fanfarronice, e apostava em sua perpetuação como mito.
E tentando arrancar da música o imorredouro, Oskar, o Airoso, maquinou um invento irretocável, primoroso: um piano com “teclado aerodinâmico”. Revolucionário, porque profundamente ergonômico, seu conceito baseava-se na observação de que, durante um concerto com duração média de noventa minutos, um pianista aplica várias centenas de quilogramas de força ao teclado:  – “o recital foi uma apoteose, já o pianista está um lixo!” - bradava Oskar, a cabeleira despenteada. Substituindo o teclado convencional, fixo, por outro, deitado sobre um colchão de ar, o espirituoso borracho pretendia imprimir a sustentável leveza do toque à arte de conduzir o piano.
Patenteou sua idéia, e uma confraria de amigos criou o “Fundo Oskar Huth”, dotado de 5 mil Euros, em valores atuais, e destinado ao desenvolvimento tecnológico da criativa engenhoca.
Havia, porém, uma condição: nenhum centavo do fundo deveria ser “malversado”, usado para fins que não os “estritamente pianísticos”. Crônica bêbada há muito anunciada, a subversão do teclado morreu na casca, digo: na canjebrina. Mal interpretando a cláusula do contrato, Oskar confundiu fundos com sumidouro: certa noite mergulhou no leito abissal de uma garrafa e dele não mais retornou. Imortalizou-se na arte da fuga.

21 outubro 2010

José Carlos Gallas - Dísticos capilares

Fotos: divulgação


Poema inspirado pelo Encomium Calvitii, o panegírico aos calvos escrito por Sinésio de Cirene, um dos primeiros bispos da igreja. Sinésio sustenta que uma cabeça calva, por assemelhar-se à perfeição geométrica da esfera, está mais próxima da perfeição de Deus do que uma cabeça cabeluda. Adejam no início deste poema algumas das pombas de Raimundo Corrêa.

Tomba um, tombam dois, enfim centenas
de fios de cabelo, devido apenas
à contínua ação da gravidade.
E assim, ainda em plena mocidade,
a glória capilar, que não espera,
cede ao avanço da lúcida esfera.

Glorifiquemos, enquanto nos resta,
o cabelo que já não cobre a testa
com sua antiga e completa plenitude.
A troça aos calvos, que tão amiúde
vês nos quadrantes todos desta vida,
não deve por ti próprio ser ouvida.

Já nos disse Sinésio de Cirene
quando escreve, acertado e solene,
que dos formatos todos da natura,
aquele que por graça e formosura
da perfeição de Deus está mais perto
é o globo, um redondo corpo certo!

E assim, sempre que um gárrulo hirsuto
gracejar do teu calvo cocuruto,
tu dirás, desdenhando o inútil pente,
que tem razão Sinésio certamente:
"Não há nada que tal estado mude;
gloriei-me cabeludo enquanto pude."


Nota sobre o autor
Dizer que conheço J.C. Gallas, seria exagero, porque nunca nos apresentamos. Faltou a oportunidade: é que ele vive às margens do Rio Paraguai, na férvida Cuiabá, e eu, às vezes em Curitiba, noutras, on the road...
Uma década atrás, começamos a trocar nossas predileções literárias numa saleta de bate-papo da Internet e, embalados por aquela genuína afinidade eletiva, da qual falava o viajado J.W. Goethe, nos tornamos amigos. Moda em desuso, Gallas é um profundo conhecedor dos clássicos, e também um exímio tradutor, mas capaz de imitar o original ao ponto de torná-lo o perfeito fake, sem que ninguém o perceba - cuidado!Devia escrever um romance policial sobre ladrões de pergaminhos, escondidos no Pantanal!
(F.Füllgraf)

09 outubro 2010

Sabine Lange - O molho de chaves (excertos) 2a. parte: A virada



Trad. F.Füllgraf

Então chegou a época em que deveria acontecer a Wende; a virada.
O dia esperado, em que aquela grade seria alçada e no qual as leoas poderiam finalmente se juntar. O dia em que fosse servido o bolo, o grande bolo, pelo qual a fome já tinha deixado para trás a própria fome, desde tempos imemoriais desembocando num grande vale branco, feito de neve. Aquela pista, muito comprida, que todos pretendiam percorrer, mas que alguém, tantos anos atrás, havia dobrado, inflectido para baixo, feita calha de chuva, de repente aquela baliza foi levantada – vejam!
                                      
Eram os dias em que as eclusas deveriam ser abertas, para que se esparramassem as águas represadas e provocassem algum acontecimento. De preferência, tudo. Até mesmo os diminutos regatos, que costumavam correr e desaparecer sob as pequenas pedras seriam chupadas de volta. O que era isso?

Finalmente estreara um grande filme; um filme abrangente, total. Um filme projetado sobre as águas. E ele deixa afundar os barcos, para que as pessoas também pudessem vê-lo com a perspectiva invertida, de baixo para cima. Da direita para a esquerda. 

A notícia da virada chegava de todos os quadrantes, e eu estava sentada no meio de tudo isso. No olho do furacão. Eu assistia TV e intuí um acontecimento insuperável. Intui que agora meus olhos transbordariam. E mais do que isso. Não conseguia acreditar. O que eu via, crescia feito inchaço de uma bolha de ferida prestes a estourar. Para qual lado você quer saltar.

Mas que gentileza - os dentes já tinham apodrecido e caído das gengivas e, finalmente, alguém se lembrava de trazer a bandeja com as castanhas!...
Agora eu sabia que alguma coisa estava para acontecer, que eu jamais esquecerei em minha vida. Espere - um comunicado! Para todos, por favor! Damas e cavalheiros, ninguém pediu que morressem! Que se torturassem à toa! Tudo tinha sido PREMEDITADO. Tivessem exercitado a paciência... Porque ainda vão precisar de tudo. Juventude, beleza, e sua saúde. Calma, porque agora chegou a hora.

Aquilo era um negócio de bom tamanho para uma leitura ao vivo, de tão inacreditável. Mirei para a TV como John sempre olhava. Com aquela mirada de Gäntschow. Como se visse alguma coisa que me chamasse atenção. John, chamei-o, venha aqui um pouquinho. E John veio da cozinha, calçando pantufas. Ele trazia enrolada uma fatia de Presskopf.4 Quéquihá? – ele grunhiu.

Ele também está recebendo bilhetes, exclamei. Veja - bilhetes, ele também! Tirou do bolso da calça! E esbugalhei os olhos. E fiquei escutando. E não conseguia acreditar.

Então berrei. Aproximei-me do televisor, me abaixei e imprequei contra a imagem na tela. Leia direito, seu babaca! Por acaso não sabe ler? Ali não está escrito, ´a partir de hoje, todo mundo pode atravessar a fronteira´, nem a partir de mais tarde, mas a partir de agora, já... – mas será possível!
Ali está escrito o seguinte: Na madrugada que passou não toquei punheta.
E também está escrito: Seres humanos não valem nada. É o que está escrito.

Deitei-me nos braços de John e chorei. E disse, John, agora podemos ir até nossa avó. John apanhou a garrafa de Gamza – ei, que vinho porreta é esse que vocês têm aí, e, a propósito, eu acho vocês umas pessoas bacanas. Todos vocês. E John derramou a metade do vinho que restava na garrafa sobre o televisor.

Eram as 18:53 do dia 9 de novembro de 1989, e mal tínhamos começado a jantar. Uma semana depois atravessei o muro, no Checkpoint Charlie. 5 Fazia um dia de frio úmido e eu sentia arrepios nas pernas. Eu vinha acompanhada de um amigo, e achei que as casas tinham aspecto imundo, de tão pichadas. Fiquei desapontada, com enorme estranhamento. Tínhamos sido convidados para o café da manhã na casa de amigos, em Kreuzberg 6; amigos que há muitos anos tinham escapado ao Ocidente. Quando me despedi, furtivamente apanhei uma banana do prato, e quando os amigos já tinham alcançado a porta, apanhei mais uma. Motivo pelo qual durante todo o caminho da volta me torturou a consciência pesada.

Minha primeira viagem me levou à Suécia. Eu desejava tanto subir a uma balsa branca, dessas que eu tinha visto, olhando desde Arkona! E que se podia ver também desde Königsstuhl, em Sassnitz.  Quando me encontrei no convés do ferry, achei estar vendo Arkona, e também Königsstuhl, em Sassnitz..

Minha segunda viagem foi para Edinburgh, onde fui visitar uma amiga que eu conhecia do Acervo, uma professora universitária, que eu admiro muito. Foi uma viagem maravilhosa, e nos perdemos em conversas gostosas. Achei Edinburgh uma cidade encantadora e os Highlands me impressionaram para tirar o fôlego.
Quando retornei, meu periquito australiano estava morrendo. Eu o entregara à guarda de amigos. Eles eram músicos. Quando cheguei para apanhar minha ave, eles estavam ensaiando.

Tocavam um ritmo afogueado, do gênero Klezmer 7. Durante o ensaio tinham colocado um pano em cima da gaiola. Quando levantei o pano, o periquito estrebuchava, esticado na areia do fundo da gaiola. Tinham matado o periquito de tanta música! Olhei para a ave e pensei: se eu pudesse sentir o que ela está sentindo! Depois cavei uma pequena cova em frente da casa, debaixo de uma roseira. Levei dias sem conseguir me consolar. Eu não sabia o quanto estivera ligada àquele pássaro.

Até hoje consigo sentir o peso da leve vibração em meu dedo indicador quando ele vinha voando e pousava em minha mão. Mas do que é que eu estou falando! Talvez eu quisesse dizer que aos poucos minhas viagens foram resvalando para o esquecimento, mas que o pequeno pássaro continua a voar; ele sempre volta a levantar vôo em meus pensamentos.

Nunca mais voltei a pôr os pés na igreja. O pastor fora transferido de paróquia. Por causa da bebedeira. Por causa de bebedeira? Eu sempre tive saudades das sonoridades do órgão. Toccatas e Fugas. Na verdade ao órgão nunca consegui tocar a contento aquelas músicas, mas executei-as sempre de forma rasante e com paixão. Um leigo em música jamais teria notado qualquer deslize. Eu chegava a preencher a igreja toda com o som das minhas execuções. Eram belos aqueles momentos em que eu tocava e vibrava, misturada aos sons. Jamais esquecerei o reverendo que me entregou a chave da igreja e me ajudou a alojar um usuário do Acervo Fallada, que viera do Ocidente, mas sem credenciamento algum.

Só agora fiquei sabendo que o cômodo, que já servira como sala de aulas de catecismo, tinha sido uma lavanderia, antigamente. Na verdade era uma genuína propriedade rural que, mais de cem anos atrás, a Igreja tinha comprado para instalar a sede de sua paróquia. Disseram-me ainda que a lavanderia da fazenda, que era a maior das salas, era geminada com a cocheira dos cavalos.

Mas agora me lembro de uma terceira viagem que fiz. Fui à Suíça. Passei por cidades como Küsnacht, atravessei Chur. Eu queria visitar a mãe de John. Ela morava numa mansão às margens do Lago Lugano. Todos os seus aposentos estavam repletos de peças de arte. As salas tinham aspecto amortecido, com tapeçaria alta, móveis em estilos barroco e Jugendstil. Mas não tenho certeza disso. Ela possuía um piano de cauda, o que imediatamente me ligou a ela. Ela era bonita, elegante e jovial. E era loquaz; loquaz de um modo quase maternal. Mas não consegui gostar dela – por que é que ela o deixara andar por aí daquele jeito, com aquela calça surrada e as sandálias mais do que gastas? Por que não lhe deu o que ele precisava, quando viajava para uma cidade desconhecida. E para país estrangeiro.


* Sabine Lange – poeta e escritora da ex-RDA, que de meados dos anos 1980 até o final dos anos 1990, dirigiu o Acervo Fallada, do escritor Hans Fallada, morto em 1947, autor, entre outros, do romance “Jeder stirbt für sich allein”, a ser lançado no Brasil em janeiro de 2011, sob o título “Sós, em Berlim”, pela Editora Record. A primeira edição completa da novela “Schlüsselbund” (O molho de chaves) foi publicada na Suécia pela Ed. Rugerup.

Notas

1 – Polícia de Segurança de Estado (MfS - Ministerium für Staatssicherheit), mais conhecida pela abreviatura StaSi, a polícia política da ex-RDA. Como lembrarão muitos cinéfilos que viram o filme “Das Leben der Anderen” (A vida dos outros, Oscar de melhor filme estrangeiro em 2007), em seus 40 anos de existência, com seus 200 mil agentes e uma rede de mais de 150 mil informantes “voluntários” (alcaguetes, dedos-duros), para uma população que não passava de 18 milhões (um agente para cada 60 habitantes), esta polícia, espécie de Gestapo do Socialismo Real, bisbilhotou, achacou, desestabilizou e arruinou a vida de dezenas de milhares, e matando algumas dezenas de cidadãos na ex-RDA.

2 – Kätelkuhl – cava gigantesca com conjunto de lagos, na região de Feldberg, Estado de Mecklenburg, Alemanha.

3 - Gäntschow – alusão ao personagem Johannes Gäntschow, protagonista do romance “Wir hatten mal ein Kind” (Uma vez tivemos um filho), de Hans Fallada.

4-  Presskopf – prato típico na ex-RDA, espécie de “cabeça de porco no mocotó”, na verdade tipo de lingüiça barata.

5-  Checkpoint Charlie – antigo posto de controle norte-americano, usado como passagem pelo Muro de Berlim, desativado, mas tornado atrativo turístico após a queda do muro.

5 – Kreuzberg – antigo bairro de classe média e de operários (nos pátios dos fundos), na Berlim entre-guerras, que após a divisão da cidade, em 1961, permaneceu no setor ocidental, cujas ruas mais importantes foram então todas cortadas pela construção do muro. Na década de 1960, com seus prédios e casarões malcuidados e semi-arruinados, Kreuzberg era um bairro com imóveis baratos para compra e aluguel, atraindo grande número de trabalhadores turcos, com suas famílias, além de estudantes e intelectuais, cujos bares, restaurantes e comércio ao ar livre lhe emprestaram um toque de “Quartier Latin da Prússia”. Após a queda do muro, Kreuzberg retornou ao antigo centro geográfico da capital, tornando-se território de especulação imobiliária voraz, e atraindo ao cenário novos moradores, yuppies endinheirados, mas também gente como o cineasta Wim Wenders e sua produtora, Road Movies.

7-  Klezmer – tradicional gênero musical iídiche.

14 setembro 2010

Frederico Füllgraf - O chulé de Penélope Cruz

 
Fotos: divulgação

Crônica

Esta é uma crônica de percepções muito íntimas, que me arrisco a revelar, vividas no  gozo estético da sétima arte, tornado interrupto. Democrata convicto, concedo o direito à réplica a quem duvidar das minhas aptidões olfativas, mas – excluídos os portadores de deficiências como nariz empinado e outras empáfias do sistema psico-otorrinóide, característico dos maus administradores da coisa pública - desafio qualquer cinéfilo a submeter-se à mesma experiência naso-perceptiva. Admitido o próprio espanto, ninguém se esquivará em dar-me a mão à palmatória.

Preciso advertir que as estranhas sensações olfativas e fantasias daí decorrentes, têm sua própria geografia do cheiro - estão circunscritas às salas de projeção do circuito de cinemas da Fundação Cultural de Curitiba. Suspeito (suspeita à qual associar-se-á o leitor no final da presente), que o fenômeno tem raízes políticas, e deleitar-me-ei em partilhar algumas ilações teóricas sobre o trinômio “cinema-de-arte-administrações municipais-& impactos olfativos na transição neoliberal declarada, para a disfarçada”; ou vice-versa...

Por menos desenvolvido que seja seu domínio dos sentidos, qualquer cinéfilo que adentra a sala escura haverá de concordar  que o choque entre os holofotes da Fox (com sua luz branca e dura das lanternas dos torturadores) e nossas pupilas dilatadas (de “interrogados”,  acossados  contra o encosto das poltronas), lança-nos num buraco negro, sem moldura, infinito, aniquilando nosso sentido de orientação espacial e nossa capacidade de localizar qualquer foco irradiador de cheiros.

Contudo, é exatamente esta blitzkrieg hipnótica nos teatros globalizados de operações audiovisuais, chamados “salas multiplex”, que me fez suspeitar imediatamente de um ato de sabotagem perpetrado por uma dessas distribuidoras hollywoodianas contra a rede de cinemas públicos de Curitiba – suspeita reforçada após assistir a meia dúzia de reportagens da série “Conspirações” do canal People + Arts. Lembrando-me vivamente do extraordinário quebra-cabeças que vincula o assassinato de Marilyn Monroe pelo FBI, aos ETs acidentados no Arizona, elucidado e escondido pela  “brava CIA”, teci minha teoria da conspiração e saí do cinema convicto de que o chulé de Penélope Cruz e a catinga do sovaco de Humphrey Bogart não passavam de ovos podres escondidos pela Universal debaixo das poltronas dos cinemas de arte curitibanos...

Quem duvidar, olfatará!
Minha primeira experiência ocorreu há seis anos, no ex- Cine Ritz, vitimado pelas obras de ampliação de uma dessas marcas de roupa barata, de consumo de massa. Denúncia desdenhada, atualizo e re-publico a presente pela terceira vez, agora em cadeia global... Ansioso para rever Greta, paixão inalcançável, fatal, da minha juventude, fui assistir Flesh and the Devil, no qual la Garbo contracena com John Gilbert ao piano. Na vida real, Gilbert era caidaço por Greta e foi, como tantos outros pretendentes, cruelmente esnobado por ela; minha fantasia inclusive. Embora já na abertura sensuais guirlandas de fumaça dançassem sobre o cachimbo de Gilbert, perturbou-me a sensação de cheiro milimetricamente sincronizado de mictório masculino, do acre odor de latrina sem descarga, ao invés do buquê achocolatado de tabaco “Half & Half” usado por Gilbert. No escuro, passei em revista panorâmica o auditório na tentativa de flagrar a repentina palidez, o surto de tosse simulado, o cínico olhar blasé, típico dos réus-autores de “puns” flagrados em elevadores, mas nenhum rosto suspeito com o olhar de soslaio dos réus confessos, cruzou minha perspectiva...

O desconforto aumentava com cada tragada de Gilbert, cujo fumo emanava os odores de palha de milho molhada. Cheguei a sentir-me acuado quando percebi que as ondas de catinga invadiam furiosamente a sala, de fora para dentro, por trás da tela, por baixo da cortina da entrada, por todas as frestas de luz ! Quando, porém, Greta, bebendo apoiada sobre o piano de Gilbert, abriu o braço esquerdo, numa de suas raras gargalhadas, sacudindo a sala com nova onda de pressão mal-cheirosa (desta vez com aroma de axila mal desodorizada), decidi abandonar, humilhado, a diva à sedução de meu rival-otário. Apressei-me em ganhar os degraus da escada, rumo à liberdade e ao ar fresco, à beira da calçada, que não deixei de perscrutar com olhar severo, em busca do cadáver de alguma ratazana atropelada pelos carros estacionados ao lado do bueiro.

Decidido a matar a charada fedorenta, pensei em interpelar a administração da Cinemateca de Curitiba, então coordenada por um amigo de longa data.  Recuei, intuindo  que a notícia balançaria a vaidade do amigo; o que não era uma boa idéia. Pensando melhor, percebi que o mais prudente seria  “dar um tempo”  para o cinema-cabeça... Mas a curiosa notícia de que todos os closes de Nicole Kidman no re-lançamento de Batman Forever eram sincronizados com rajadas irisadas de Kenzo Bambus, doce-amadeirado, sobre o público de certa sala multiplex, re-alojou minha conjetura de que a originalíssima campanha de marketing estava sincronizada simultaneamente com o descrédito dos cinemas-de-arte da nossa administração municipal – yesss !


Resolvi então diluir as lembranças fétidas do filme-de-arte, mas também prevenir-me contra a tentação leviana do consumo do filme-de-ação. Mal sabia eu que minha imunidade estava com os dias contados. Arrebatado pela carne trêmula da escultural Penélope Cruz, em Volaverunt, de Bigas Luna, retornei a um cinema da fundação cultural; desta vez ao venturoso Cine Luz. O aviso à entrada - “Ar condicionado com defeito !” - insinuou-se como o primeiro alerta de que arrastar-se “ao Luz pela Cruz” já estava marcado pela sina do calvário...

Éramos não mais que vinte gatos pingados, distribuídos pelas 150 poltronas de falso couro, pegajoso, mal disfarçado de pele de antílope. Portas fechadas, sala escurecida, bastou a tenra insinuação do primeiro intercurso da fogosa castelhana, e a primeira onda odorífera esbofeteou o rosto dos espectadores, já coberto pela brotoeja da transpiração: cheiro inequívoco de toalete masculino mesclado com lufadas de lingerie feminina, com prazo de lavagem vencido... Com os seis sentidos em estado de alerta máximo, levantei-me da poltrona em plano sincronizado com a imagem do galã com pinta de toureiro, tirando as botas dos pés inchados... – momento em que a sala rangia debaixo de violenta rajada de odor, desta vez de chulé...

Desconfiado do sincronismo, exortei o público para uma busca da fonte geradora da insuportável fedentina, que suspeitei ser de origem criminosa, provocada, sem dúvida, pelo braço audiovisual do Pentágono. Qual não foi nosso estupor, ao perseguirmos à risca, a pista invisível mas indelével dos malfazejos odores, e batermos com os narizes nas portas das latrinas escancaradas! Justificou o bilheteiro que há mais de dois anos faltavam verbas para o material de limpeza e óleo lubrificante para as dobradiças enferrujadas das portas; verba que sobra, multiplicada por milhões, para a contratação de suspeitos consultores de “projetos especiais” da dita fundação, do eixo Rio-São Paulo... Algum espertinho da fundação teria sugerido ainda que, portas assim, vaivém, lembrariam os saloons do velho oeste e confeririam um visual hiper-real aos cinemas...

Estava mapeado, enfim, o foco das malcheirosas emanações em estado gasoso que, a cada dia, tornam a freqüência de um “cinema-de-arte” municipal em experiência desprovida de gozo - para a gozação dos franqueados das salas multiplex e dos pastores do Bispo Macedo! Apreensivo, aguardo a notícia fatal: desinfetado e desratizado, mais um cinema da cidade é libertado da sedução da carne e do bafo do demônio, para dar as bem-vindas ao Senhor... Em que templo, diabos!, voltarei a adorar minhas musas?

Sobre a Lilli Marleen de Frederico

Manoel de Andrade
Poeta e ensaísta

Eu já tinha ouvido “Lilli Marleen” na voz de Marlene Dietrich, mas não imaginava que aquele poema, transformado em música, tivesse uma trajetória tão fantástica e nem que Hans Leip tivesse sido um escritor tão fecundo. Quantos vultos famosos da história europeia estiveram, direta ou indiretamente, relacionados com essa célebre canção!!! A  interculturalidade com que o texto é escrito leva-nos a caminhar pelos fronts históricos e geográficos da Segunda Grande Guerra, bem como pelos seus bastidores,  chocando-nos com o terror da censura nazista sobre a cultura. Era a ironia da própria guerra trazendo, depois do bombardeiro alemão de Belgrado, o som radiofônico de uma canção ouvida e apreciada, a despeito da proibição de Goebbels, pelo prestígio do General  Rommel e seus soldados nas areias da África. Como um rastilho de pólvora a parceria poético-musical Leip&Shultze começa correndo acesa, no idioma de Goethe, pelas trincheiras nazistas e aliadas, mas seu encantamento vai explodir também nos ouvidos dos soldados russos. 

          O rigor intelectual com que Frederico Füllgraf vasculhou e constatou, pela crítica documental de suas fontes, a autenticidade dos fatos, conduz o leitor pelos estranhos atalhos desse fantástico fenômeno musical, para nos apresentar uma admirável pesquisa sobre quase um século de vida do tão discutido poema-musical alemão. Seu ensaio envolve-nos com a história do um jovem soldado, saudoso da namorada, que lhe inspira, no campo de batalha, seus primeiros versos. Esse romântico enredo de guerra lembra o grande poema “Espera-me” que o poeta e dramaturgo russo Konstantin Simonov, escreveu, em 1941, no front de guerra contra os alemães à sua querida Valentina Serova. Traduzido para muitos idiomas, e para o português, com incomparável beleza lírica, por Hélio do  Soveral, Espera-me  ou Espera por mim é um dos mais conhecidos poemas da Rússia. A sensibilidade de Cleto de Assis escreveu a essência comovente dessa história no seu site Banco da Poesia:
http://cdeassis.wordpress.com/2009/06/19/poema-de-amor-e-guerra/
        Abro aqui um parêntesis, fugindo do estrito significado musical do texto, para considerar as grandes motivações que o fenômeno da guerra tem trazido à criação poética e musical, propiciando produções ou veiculando versos de infinita beleza. Por certo a Ilíada e a Odisseia não existiriam sem a Guerra de Troia, nem a Itália teria seu grande poema épico se o início das Cruzadas não inspirasse Torquato Tasso a escrever Jerusalém Libertada. A Chanson d’Automne, de Paul  Verlaine, não seria tão conhecida se não fosse  enviada também por rádio, como uma senha, à Resistência Francesa anunciando o desembarque aliado na  Normandia e determinando o fim do Terceiro Reich, que pretendia durar mil anos. Que honra maior poderia ter um poema, abrindo com o lirismo e o suave encanto dos seus versos, as portas da liberdade do continente europeu dominado pelo nazismo?  E neste contexto as comparações se derivam para as canções que inspiraram a resistência revolucionária nas guerras civis que abalaram o mundo e se celebrizaram com o nome Marselhesa, na França revolucionária e como  Le chant des Partisans, entoado pela Resistência, na França invadida pelos exército alemão. Com o mesmo ardor  se cantava Se me quieres escribir e Viva la Quinta Brigada, na Guerra Civil Espanhola. E assim foi, ao som da Bandiera  Rossa e Bella Ciao na Itália,  Nicaragua Nicaraguita, cantada pelos sandinista, Venceremos, no Chile socialista, onde Viva Chile Mierda, de Fernando Alegria, foi o poema mais declamado durante o governo de Salvador Allende.  Aqui, no Brasil, a canção Caminhando, de Geraldo Vandré, foi o hino revolucionário com que a nação inteira  protestou, cantando, contra a ditadura militar.

           Voltando à história sentimental do soldado Hans Leip e seu poema, e considerando a amplitude do texto, creio ser interessante repicar, neste comentário, alguns aspectos marcantes no longo artigo de Frederico Füllgraf.  Primeiramente o encanto musical das emissões diárias da “canção de um jovem sentinela” pela rádio de Belgrado, polarizando a longínqua atenção dos soldados alemães no norte da África. A transmissão, captada também na região pelos soldados britânicos, levou o orgulho militar inglês, sob o comando de Montgomery,  a criar uma sarcástica versão política de “Lilli Marleen” ironizando Hitler  e o partido nazista. O autor nos fala da canção na voz radiofônica da BBC e de meio milhão de discos vendidos, em 1944, na Inglaterra e sua versão adaptada para 50 idiomas. Detalha a biografia conturbada e trágica de Lale Andersen e depois sua turnê pela Coréia e Indochina.  A segunda grande intérprete da canção é Lucie Mannnheim, chegando enfim a Marlene Dietrich, que foi a mascote musical dos aliados correndo os Estados Unidos e a Europa com “Lilli Marleen” nos lábios e as grandes platéias aos seus pés. Os intérpretes da famosa canção se sucedem, no incrível caleidoscópio de informações --- que transpiram normalmente por todos os neurônios do Frederico que conhecemos, ---  passando por Edith Piaf e Bing Crosby, e por interpretações contemporâneas  na voz da cantora francesa   Patrícia Kaas, comemorando, em 2005, os 60 anos do Dia “D”.

        O texto, entre outras tantas revelações e curiosidades, traz uma passagem pitoresca envolvendo Winston Churchill e seu pesadelo com o General Rommel, em torno da sua preferência pela canção. Refere-se também a uma misteriosa versão judaica feita por Stefan Zweig. O ponto alto do texto é a referência a uma edição de 2006 do livro em que a autora, Lilly Freud Marlé,  sobrinha de Freud, revela ser a pessoa que inspirou Hans Leip a escrever o poema que gerou a composição musical “Lilli Marleen”, versão reiterada por outros descendentes de Freud.
               Finalmente é surpreendente constatar que as sementes lançadas há noventa e cinco anos por um simples poema que se tornou canção, tenha se aberto em tantas flores musicais pelos idiomas do mundo inteiro, inclusive uma versão judaica de nome Lili, em homenagem à pára-quedista  Hannah Senesh, morta em Budapeste pela Gestapo,  e geram ainda, ano a ano, tantos frutos “saborosos” para a viúva de Leip e mantenham repletos os celeiros amoedados do compositor Norbert Schultze.
                 Parabenizando o autor pela dimensão crítica e historiográfica do seu trabalho,  ressalto as duas ironias genialmente bem colocadas: a primeira que “Lilli Marleen” foi a única contribuição dos nazistas para o mundo”. E a segunda ironizando a primeira: que uma musa judia seria a inspiradora da mais célebre canção nazista.