30 setembro 2024

Frederico Füllgraf - Diário da Namíbia

Reinhard Maack, Schutztruppe, 1914

Crônica de viagem


Quando meu guia Siegphried - prenome hilário, grafado com “ph”, mais para Otelo que para personagem de Wagner – com sua estampa de rastafari, parou à entrada de uma gruta informativa, colada às paredes rochosas ao pé do Monte Dâures, intuí que estávamos próximos dela. 

Caminhando pelas trilhas do vale, ao lado do bravo Siegphried, eu tentava aprender o estalo de língua (simbolizado por exclamação que antecede certas  palavras, característico dos idiomas bosquímanos), para pronunciar corretamente seu sobrenome (“!Karuchab”), quando ele acenou para um painel redigido em Inglês, advertindo os caminhantes para a transcendência histórica e a imperativa preservação daquele patrimônio da Humanidade, que a poucos passos dali costuma desafiar olhos e mentes, extasiados, com silente beleza milenar.

À sombra do anteparo rochoso, bebi o resto da água mineral prestes a ferver no fundo da garrafa aquecida pelo sol, acendi um cigarro e despistei minha ansiedade. 

Fazia um ano que iniciara minha pesquisa sobre ela, e me preparara para este encontro. Mas, qual o significado de “Don’t pour / spray liquid on them” ? 

Quando o guia aludiu aos atentados de turistas ocidentais contra as pinturas rupestres, com restos de Coca Cola, para “realçar” cores consideradas esmaecidas demais para suas máquinas fotográficas canibais, não me contive e, pela primeira vez desde tempos imemoriais, as pedras avermelhadas do vale de Tsisab ecoaram um sonoro palavrão em Português.

Segui os vinte passos do guia até o refúgio de pedra, como quem ingressa em território sagrado e, de repente, ela se desvelou muito maior e bonita do que eu havia imaginado: a mitológica White Lady. 

Exultei, tremi dos pés à cabeça. 

Obstinado, eu tinha conseguido alcançá-la! Apesar dos obstáculos, da pressão de agenda e do orçamento de produção apertado demais para aquela travessia de Curitiba até o deserto de Namib; via Congonhas, caos aeroportuário, enchente na Marginal, Cumbica, Johannesburgo e Windhoek...

Os quatrocentos quilômetros de estrada da capital até a incandescente Omukuruwaro, Dâures ou Brandberg (“montanha incendiada”, em dialeto Herero, Damara e Alemão, respectivamente), em parte rodados debaixo de sol com 45 graus, foram motivos para festa. Eu não os sentira mais, já estava sob o efeito do transe do deserto, a alma entregue à trilha sonora de certa ancestralidade que transpira da paisagem esculpida; ora doce, ora inclemente. Mas, com uma intrigante sensação de “Walt Disney was here!” Depois, enquanto caminhávamos pela paisagem tórrida, subitamente me lembrei: claro, “Rei Leão”! Como o castelo de Neuschwanstein, do doidivanas Ludwig, plagiado integralmente para cenário de Cinderela, passaram o scanner em toda a Namíbia - dos bichos, pelas montanhas, ao céu, sempre azul - para o storyboard de um filme hollywoodiano que faturou bilhões em todo o mundo.

Mas preciso alertar que eu não viajara até aqui por interesse arqueológico e, sim, por obstinação cinematográfica, a tudo decidido para fechar uma estória – a aventura do topógrafo, dublê de geógrafo e geólogo, alemão, Reinhard Maack, iniciada aqui, entre o Namib e o Kalahari, na África Austral, durante a 1ª. Guerra Mundial, e concluída na década dos anos 60 nos sertões do Paraná; agora reconstruída fragmentariamente em filme para o DOC TV.

Homem, cuja biografia sinaliza a passagem de várias mulheres por sua intimidade, parece ter dormido sempre com seu teodolito ao lado – tão forte sua atração por montanhas; e por quedas, no sentido mais metafórico da palavra. 

Suas conquistas mais famosas estarão sempre contextualizadas por situações extremas: enfrentamentos, prisões, fugas. Teimoso, já vivendo no Brasil, em 1941 duvidou que o Pico Marumby fosse o ponto orográfico mais elevado do Paraná e enfrentou uma escalada de dezesseis dias com chuva, espinheiras, a vertigem das escarpas, barro e tombos, até conquistar o pico por ele batizado de Paraná; o “Kilimandjaro do sul” na acepção de “Vitamina”, o “papa” do montanhismo paranaense. 

A epopéia de Maack custou-lhe três anos de prisão na Ilha Grande, acusado, segundo o prontuário policial da época, de “espionagem para o 3º. Reich", mediante a “transmissão de sinais de lanterna de mão para submarinos alemães, na baía de Paranaguá”. Que Maack alimentava simpatia pelo "Führer" e seu "Reich" nazista era notório, mas que manifestara aquela simpatia de modo tão primário e risível, mais soava como  teoria da conspiração, pobre em figurinos e contra-regra.

Vinte e três anos antes, Maack fugira de um campo de prisioneiros inglês, na então colônia, que antes de "Namíbia" se chamava “África Alemã do Sudoeste”, assumindo a identidade falsa de “Hans Ritter”, passando à clandestinidade, e no final de 1917 entrincheirando-se no Monte Brandberg, que esquadrinhou em seus mínimos detalhes, com a pachorra de agrimensor das Schutztruppen do Kaiser.

Durante o mapeamento desta montanha mais elevada do sul da África, descrita pelos bushmen como milenar “montanha dos deuses”, ocorre o imprevisto: uma patrulha inglesa topa com Maack e três companheiros armados, balas dançam e ricocheteiam pela garganta do Tsisab. Os alemães conseguem escapar e, entre tombos e rachaduras de chapas fotográficas, ao pé da montanha incendiada, Maack depara-se com a gruta misteriosa.

Sem nenhuma chapa fotográfica inteira para seu lambe-lambe, o topógrafo esboça a lápis o gigantesco painel de 5,5 m de largura por 2,0 m de altura. 

Em seu diário de campo especula intensamente sobre o significado desta mais exuberante pintura rupestre de toda a África. Seus desenhos inspirarão uma editora alemã a publicar, em 1930, o primeiro livro sobre arte rupestre bosquímana. 

Em 1947, o abade francês Henri Breuil visita a já então famosa « Gruta de Maack » e batizará seu personagem central com o controvertido nome de «Dama Branca ». Breuil identifica traços « egípcios » e até « cretenses » (minóicos) na técnica do painel, sabichando que a pintura só poderia ser de origem "extra-africana", talvez da mão de « pintores-viajantes » - eurocentrismo rasteiro, fácil de entender, pois Breuil atuava como perito a convite do Apartheid sul-africano, capaz de negar a existência de uma alma em corpo de africano negro.

Sítio característico de cerimônias sagradas dos bosquímanos, com uma idade estimada entre 4 mil a 2 mil anos, a «Dama Branca » é uma vibrante coreografia. Seu centro é ocupado por uma figura dançante, rodeada por um círculo de três caçadores e vários animais. Seus realces em branco contrastam as cores básicas do ocre, vermelho e preto, utilizadas na fase ainda monocromática da pintura rupestre. Na mão esquerda segura um arco e um punhado de flechas, mas na direita, em atitude de invocação, ostenta uma espécie de cetro – o cálice do enigma jamais desvendado...

Em uma cena ficcional, por mim escrita e gravada para o DOC TV, Maack, já vivendo no Brasil, ironiza o abandono de sua dama : «intocada, luxuriante mulher fatal... ». No entanto, através de leituras prévias à expedição ao deserto, eu já desconfiava que tinha que experimentar a desilusão in situm e transferir a decepção ao espectador excitado, rasgando o véu de mistério, que encobre a desejada africana: é que a « dama », apesar de teimosas fantasias europeias, é um cabra macho!

A mortificante revelação é um detalhe observado por arqueólogos mais atentos que Breuil: um discreto cinto, cuja parte frontal sustenta uma bolsa de proteção escrotal. 

Concorre para a desmistificação da burla (Dama Branca, uma Drag Queen do deserto??) o imperativo histórico, segundo o qual, mulheres não eram toleradas no centro dramático de um ritual de caça (aqui explícito), tido, durante milênios, como enclave exclusivamente masculino. Já, na periferia, também da « Dama Branca », abundam seios fartos, de mulheres em papel de meras figurantes da ação.

De volta do deserto, mas ainda intrigado, leio que « damas brancas », como as de Castle Huntly, Branch Brook Park, Durand-Eastman Park, Willow Park e a esfinge de Metedeconk, são todas e, literalmente, miragens femininas para inglês ver. 

Até desenlaçar-se um cinto viril, que não é o da castidade...

(Fotos:  Frederico Füllgraf; divulgação)

28 setembro 2024

Frederico Füllgraf - A Nebulosa de Magalhães - Mini-conto etílico-galático

Imagem inferior: Estátua à F. de Magalhães, Punta Arenas, Chile.
Frederico Füllgraf

Miniconto

Depois que o fidalgo Fernão, a quem em terras castelhanas chamavam Hernán, descobriu o Estreito no calcanhar do Novo Mundo que leva seu nome, aprumou sua nau e tomou o rumo das Ilhas Molucas, das quais, sempre teimosamente, quis tomar posse em nome de El Rey. 

Mas os nativos não o deixaram – trituram-lhe o crânio com uma borduna. Magalhães não resistiu e nunca mais o viram em Portugal.

Após desencarnar, sua nau tomou direção aleatória. Assim conjeturou este escrevinhador após seu segundo Vat69, mirando o céu noturno, tentando entender as piscadelas da miríade sideral.

E sentenciou: quatrocentos e oitenta anos mais tarde, certamente, Fernão ingressara no umbral do Tempo, do Mundo das Luzes. 

Na passagem por Alfa Centauri, seu escrivão genovês, Pigafetta, despencara de estibordo em plena infinitude da Criação. Cheio de dor, a Fernão não restara outra que velejar sozinho. E então registrara em seu diário uma avistagem de tirar o fôlego. 

Distraído não se sabe por quê fenômeno celestial, repousara seu diário sobre o peitoril do convés, e ali o esquecera. O diário também despencou no Cosmo, serpejando em direção a um grande Buraco Negro.

Captada por um possante radiotelescópio fincado nas escarpas do Valle del Elqui, nos Andes, a mensagem na página aberta dizia: “Este sol brilha mil, multiplicado por mil vezes mais do que nossa velha lamparina da Via Láctea. Sua luz cegou-me. Tudo são brumas”.

“Imagine-se a seguinte imagem”, escreveu ele: “Em Calicuta das Índias alguém suspende uma torrada com geleia diante de uma vela. No mesmo instante, mas em Portugal, mediríamos os restos das chamas da vela, sendo com isso capazes de determinar o tipo de marmelada que em Calicuta fora aplicada à fatia do pão!”.

Fernão não sabia que sua velha nau, com rachaduras no madeirame e velas estropiadas, tinha navegado 150 mil anos-luz.

Sempre distraído, como naquela manhã, à entrada do labirinto da Terra do Fogo, agora acabara de descobrir a indistinta constelação que lhe rendeu a homenagem de Nebulosa Magalhães.

Por fugazes instantes, foi divagação que capturou meu atrevido imaginário, enquanto flanava ao longo da costanera do Estreito, em 2016, o rosto varrido por ventos errantes no literal fim do mundo.






30 dezembro 2023

Frederico Füllgraf - A história perversa do biquini

Mosaico Dieci Ragazze, Villa Romana del Casale, Sicília - séc. III DC


Ensaio

Um ano depois do silêncio das armas da II Guerra Mundial, Louis Reard, estilista francês, teve o que a infiltração anglicizante do nosso vernáculo chama de insight: lançaria uma peça de vestuário de encher os olhos com as prendas do corpo feminino: curvas, saliências, altiplanos e vales, preservando, s´il vous plais!, as fagueiras e vaporosas vergonhas venusinas. 

Discreto, passou madrugadas em vigília, desenhando maquetes de seu invento revolucionário, mas sentiu que lhe faltava um nome forte com apelo exótico. Eis que, em julho de 1946, faltando quatro dias para o lançamento da nova criação, explodem as bombas atômicas “Baker” e “Abel” no Atol de Bikini, centro do Pacífico Sul, e de bandeja os EUA oferecem a Reard o nome que rasgaria a boca do balão, do jeito que as bombas tinham rasgado ao meio o atol – la mode du terreur!

A aventura nuclear de Antony Guarisco

Deparei-me com esta estória intrigante anos atrás, durante a pesquisa para o roteiro do telefilme Burning Sand, para o qual tinha entrevistado em Nova York, Antony Guarisco, marine norte-americano durante os testesa nucleares no Pacífico, que em 1987 liderava o movimento nacional dos Atomic Veterans. 

Desde a década dos anos 70, estes soldados reclamavam reparações dos sucessivos governos em Washington - reparações pela morte de aprox. 200 mil veteranos que participaram dos testes nucleares entre as décadas de 1940 e 1960, porque tinham sido enganados pelas autoridades, forçados a assinar “salvo-condutos”, cheques em branco, isentando o Pentágono de “todas e quaisquer responsabilidades por eventuais danos à saúde”. A malícia infernal já estava subentendida na própria declaração, mas os rapazes assinaram; alguns por patriotismo, outros por ingenuidade, outros ainda por esdruxularias equivalentes.
42 mil marines norte-americanos usados e irradiados como ratos de laboratório
durante os testes no Pacífico
A sound of frying eggs was in the air and for minutes I could see my own 
bones trough the flesh of my hands.. – um som de ovos fritos crispava o ar 
e por minutos pude ver meus próprios ossos através da carne da minha mão …” 

 
Campanha por reparações: Antony Guarisco diante 
da Corte Internacional de Justiça, Haia.

Quando conheci Guarisco, ele já se arrastava pelos corredores do hotel apoiado numa bengala, os ossos triturados pela doença terminal que matara a maioria de seus camaradas. Impossível esquecer sua frase dirigida para a câmera, com seu testemunho sobre a explosão da bomba Baker, no atol de Bikini: “A sound of frying eggs was in the air and for minutes I could see my own bones trough the flesh of my hands.. – um som de ovos fritos crispava o ar e por minutos pude ver meus próprios ossos através da carne da minha mão …”. 

Um dos navios que se vê ao largo, literalmente foi aos ares, por segundos suspenso no céu, devido à onda de pressão da explosão da bomba, detonada 30 m abaixo da superfície da água.

A cena de terror fora vivida por Guarisco e seus companheiros numa praia do Atol de Bikini, sem proteção física alguma contra o “grande raio-X”, o eclipse da luz e das trevas. O objetivo da missão era “testar as condições de combate da tropa após um ataque nuclear soviético" (sic!)

Ficção? História, e das escalafriantes! 

Nunca mais vi Guarisco. Há poucos anos liguei para sua esposa e soube que ele tinha morrido de leucemia.

Revisionismo atômico

O filme, com financiamento inicial do Film Office Hamburg e roteiro premiado pela finada Embrafilme, baseado em meu livro A bomba pacífica (Brasiliense, 1988), há anos aguarda conclusão, porque a Fundação do Cinema Brasileiro pagou apenas a primeira parcela do contrato e literalmente afundou em 1989. Depois, a Guerra Fria deixava de ser fashion, as usinas nucleares e seus gêmeos siameses, as bombas, também atômicas, caíram em desuso em escala global, e a estória do filme mofa no limbo. Mas talvez o projeto seja salvo pelo gongo da História. Mas, o que interessa aqui, é a "sacada" de Louis Reard.

Relação macabra

Nos anos 1950, a relação macabra entre a fonte inspiradora e o trapinho homônimo – a bomba e o biquíni – repercutiu desfavoravelmente para Reard. Mas argumentando pela tangente, ele afirmou que havia emprestado o nome do sumário traje de banho ao atol, e não à bomba. A verdade é que ele tirou enorme vantagem dos testes com a arma terminal, cuja devastação parecia pescar no inconsciente coletivo fantasias associadas ao imperativo histórico de uma urgente devastação da moral vitoriana. Com a reprodução em algodão, de fac-símiles da cobertura de imprensa sobre os testes nucleares, Reard promoveu um marketing literalmente bombástico.

 
 
Acima, à direita, Louis Reard; à esquerda, Brigittte Bardot;
embaixo, fio dental: a deserotização pelo escancaramento

Mas o inventor do biquíni necessitava de um trunfo adicional, pois outro francês, Jacques Heim, havia chegado às passarelas com uma criação semelhante – a do maiô partido em dois, assumidamente batizado de “L’atome”. Reard contra-atacou, promovendo seu biquíni como “o traje menor que o mundialmente menor dos trajes”, e ganhou a guerra dos nomes e das torcidas. 

Se Reard conhecia o mosaico Villa Romana del Casale, apropriou-se da fonte de inspiração sem jamais revelá-la, porque o biquíni de fato não foi sua invenção: o traje já era usado pelas moças sicilianas no séc. III DC.



Economia e libido

Contudo, garimpadas nas lixeiras da História as segundas intenções, eis que uma insólita explicação econômica parece varrer todo o encanto, substituindo nossas fantasias por fatos da fria economia. 

O pano de fundo histórico do biquíni, que aqui funciona como perfeito trocadilho, foi a falta de pano para a confecção de fundilhos. 

Em 1943, em plena II Guerra Mundial, o governo norte-americano obrigou a indústria têxtil ao racionamento de matérias-primas, provocando a redução de 10 por cento de algodão na confecção de trajes de banho femininos. 

O resultado desta operação militar foi uma espécie de “ventre livre” patriótico para o corpo feminino, e foi Reard quem lhe daria a forma no Velho Continente. Sua inovação mercadológica consistiu em reduzir o traje para 30 polegadas de malha, desmembradas em bustier top e um triângulo invertido, down, conectados por um cordão. O biquíni de Reard era tão sumário para a moral da época, que nenhuma modelo parisiense ousou subir à passarela.

Nos EUA, certa “Liga pela Decência” pressionou os produtores de Hollywood para banir o biquíni das telas. Porta-vozes da cruzada vitoriana questionaram a reputação das moças convertidas à moda, afirmando que “o biquíni revela tudo no corpo de uma mulher, menos o nome da mãe dela “. Como eram amáveis as madames 

Impávido, Reard manteve a classe e a ousadia a serviço do marketing, contratando Micheline Bernardini, em cuja cabeça e corpo o biquíni caiu como uma luva, pois atuava como dançarina de nus no Cassino de Paris: após uma sessão de fotos dela em poses reclinantes, a imprensa ajoelhou-se diante dela, embasbacada, e a musa foi soterrada sob uma avalanche de 50 mil cartas de fãs ensandecida/os.

Mas la Bernardini não foi capaz de impor a capitulação aos vitorianos EUA. Desesperado, melhor: de olho grande no mercado yankee, Reard incorporou a carta do eremita do tarô, e teve seu segundo insight: uma femme fatale mal conhecida por “BB”- a estreante Brigitte Bardot. 

Deslocou para o campo de batalha sua mal disfarçada inocência de "E Deus fez a mulher", acentuada pelo trapinho, et voilá! 

O biquíni precisava de curvas para ser valorizado, e BB impôs a queda das últimas barricadas norte-americanas. Entrava em cena em Hollywood o vitorioso trapo que matava a cobra e escondia o… principal. 

Das passarelas para a tela e o vinil, foi um passo. O biquíni foi cantado em prosa e verso, imortalizado no rock de Brian Hyland, do final dos anos 50, “Itsy-Bitsy-Teenie-Weenie/Yellow-Polka-Dot Bikini”.

A empresa de Reard conseguiu manter-se no mercado até 1988. Uma versão sobre os motivos de seu fechamento insinua que Reard perdera a guerra pela miniaturização para o fio-dental brasileiro; aberração, vingança dos inventivos trópicos e golpe fatal nos planos do estilista.

Cinqüenta anos depois é oportuno indagar se a vinculação proposital do maiô partido em dois com a arma de extermínio em massa, não abriga códigos de significados convergentes. 

O primeiro deles é a “onda Shumpeteriana”: em conjunturas de abertura democrática e crescimento econômico, a moda (e a libido) abre-se, liberando o corpo do “supérfluo” (no inconsciente coletivo pós-guerra, masculino, era enorme a demanda pela “abertura do pano” sobre o corpo feminino). 

O segundo, é seu significante profundamente pós-moderno: a visão de Reard é a alegoria do êxtase ilimitado, cujo pêndulo sempre oscila entre Eros e Tanatos, entre o prazer e a morte – o signo marcante de toda a cultura iconográfica e moda militarizadas e ferozmente midiatizadas neste início de Terceiro Milênio.

Por fim, uma pitada de pimenta tupiniquim: as bombas atômicas norte-americanas lançadas sobre o paradisíaco atol de Polinésia – imortalizado nos quadros de Paul Gauguin – foram construídas, durante e depois da 2ª Guerra Mundial, com matéria-prima brasileira: milhões de toneladas de areia monazítica, contendo urânio e tório, das praias de Guarapari, no Espírito Santo, Mãe Ubá e outros costões do sul nordestino. Quem aguardar o filme, verá.

 
(Ilustrações: Bikini Atoll.com; Villa Romana del Casale)
Recomendado:
BIKINIS AND BOMBS A Senior Project Exhibition, 
The Library Art Gallery at the Florida Gulf Coast University

28 setembro 2023

Frederico Füllgraf - Fitzcarraldo: genocídio e Cinema no coração da Amazônia em trevas

Fotos: divulgação


Ensaio

No início era o cinematographo...

Consta que Silvino Santos, o comerciário e fotógrafo amador português, que no início do séc. 20 se aventurou por Belém e Manaus, terá sido o pioneiro do Cinema da Amazônia e do Brasil, crédito que lhe confere também meu ex-vizinho de escritório no Rio Comprido, Márcio Souza, para o documentário rodado por Silvino em 1912 sobre o Rio Putumayo, no Peru. Mas a informação não procede: o primeiro cinematógrafo arrastado pela jungla amazônica foi o do etnólogo e lingüista Theodor Koch-Grünberg e o primeiro filme ali rodado foi Taulipang, em 1911. Logo depois vem Edgard Roquette Pinto, com seus registros etnográficos realizados em 1912 para o Museu Nacional, durante a expedição amazônica da Comissão Rondon. Com uma agravante para Silvino Santos. Por mais que quisesse, ficou devendo à história o ônus da prova: em 1914 eclode a 1ª. Guerra Mundial, o navio que transporta seus negativos, que deverão ser copiados num laboratório dos Estados Unidos, é colocado a pique, e o filme submerge... O segundo filme do português também se perdeu. Em 1918 os comerciantes Manoel Gonçalves e Avelino Cardoso encomendam a Silvino um documentário com o título Amazonas, o Maior Rio do Mundo, para comemorar a inauguração da primeira produtora da hiléia, a Amazônia Cine Film. Com o pretexto de copiar o filme em Londres, Propércio Saraiva, noivo da filha de Cardoso, desaparece com os originais, deixando Silvino a ver navios nas barrancas do Rio Negro. 
Este é da tragédia somente o antelóquio, a história da “cinemateca submergida” apenas começa a ser escrita.

A conquista do inútil

Quando a câmera abandonou seu enquadramento de plano semifechado, abrindo para a bestificante cena de um barco com cerca de trinta metros de comprimento e fora d’água, sendo empurrado por legiões de figurantes indígenas morro cima, o público delirou. Levantou-se das poltronas do Grand Palais de Cannes, para ovacionar a ousadia do alemão fou, o doidivano Werner Herzog, que detonara sua pré-produção de três anos e rasgara seu contrato com a 20th Century Fox, porque esta condicionara o financiamento da produção à filmagem da cena da transposição da montanha em estúdio. Insurgindo-se contra “as mentiras [leia-se: os artificialismos] de Hollywood”, o diretor contratou seu próprio irmão Lucki Stipetic e rodou esta e outras passagens desaforadas do filme on location, em plena selva amazônica; a um custo humano limítrofe, diga-se. 
Era o dia 5 de março de 1982 e, sacudido por aquela estreia mundial, o personagem Fitzcarraldo ganhou o mundo como mensageiro de seu alter-ego: a História é (ou “há estórias que são...” ?) uma “conquista do inútil”...

Para uma crítica stricto senso, bastaria aquela cena para justificar um resgate de Fitzcarraldo, que comemora vinte e cinco anos e é um dos filmes memoráveis da história do Cinema. Sua evocação estará sempre associada ao modo de produção do fazer cinematográfico de Herzog: ampla liberdade autoral, a escolha de personagens marginais e espetacularistas, enredos complexos, a opção pelo caminho mais difícil e (vide a relação Herzog-Kinski) a aliança com colaboradores idem; um desafio presente em todos os filmes do diretor, que sente prazer no andar de pés descalços sobre o fio da navalha. Como aquela caminhada solitária, por exemplo, flagrada pela TV Alemã no final dos anos 70. Mochila ao ombro, Herzog marcha pelos bosques nevados da Alsácia e quando é questionado sobre motivo e destino de sua peregrinação, responde que prestava tributo à diva-pensadora do Cinema Expressionista, Lotte Eisner, que agonizava na França. E Herzog caminhou uns 850 quilômetros, de Munique a Paris, para homenagear sua musa inspiradora e desconstrutora, apesar de sua obra indisfarçavelmente impressionista e romântica. 

Meu primeiro sobressalto pessoal com seu projeto dramático e filosófico foi em 1981, com notícias oriundas da pré-produção nas profundezas da selva amazônica, acusando o diretor de reinar “no coração das trevas” como o sombrio coronel Kurtz, personagem de Joseph Conrad. Era uma metáfora com versão simplificada por lideranças indígenas e potenciada por algumas ONGs, que reverberou mundo afora como “o imperialista que está violando os direitos humanos”, felizmente desmentida por convincente investigação da Anistia Internacional.

“O louco e o possesso”

O que acirrou ânimos contra o diretor, de suspeita semelhança com as imputações já ocorridas durante a produção de Aguirre (1972), também em locações da Amazônia Ocidental, foi sua obstinação em conduzir com “mão de ferro” e a qualquer custo - como a renúncia ao apoio condicional de Francis F. Coppola - um projeto autoral penosamente estruturado. Pesa aqui o conturbado, mas insistente relacionamento com o falecido ator Klaus Kinski, protagonista da maioria de seus filmes (Woyzeck, Nosferatu, Aguirre, Fitzcarraldo e Cobra Verde), que num flash do set de filmagem de Aguirre, reproduzido no documentário "Meu inimigo mais querido “(2000), salta à jugular de Herzog com uma faca em punho; cena tenebrosamente real, como se fosse making-of. Mas a recíproca foi a verdadeira, pois em seu diário de campo sobre os sets de Aguirre e Fitzcarraldo, Herzog confessa ter ameaçado Kinski de morte em mais de uma vez. Mas o ator não era um problema particular de Herzog. Dia sim, dia não, o talentosíssimo e irascível Kinski conseguia mergulhar o set no completo caos, com ataques de fúria, gritos, desmandos e ameaças. Comovidos com a sorte do sofrido Herzog, dois  caciques indígenas lhe cochicharam ao pé-do-ouvido, que estavam dispostos  a "dar cabo do excruciante espírito“. - Políiicia, chamem a polícia!!, bradou o paranoico Kinski nas profundezas da desassistida floresta e o set veio abaixo com estrepitosas gargalhadas.

Lembrando a neurótica relação Rimbaud-Verlaine, mas sem nenhuma conotação homoafetiva, a sociedade Herzog & Kinski foi congenial, versão trash daquela teia estroinada dos rufiões franceses; com direito a bate-bocas, pancadaria, facadas e tiroteio. Questionado por um repórter, por que, afinal, depois de tantas brigas, os dois continuavam trabalhando juntos, Kinski debochou: “Because he`s crazy. And so am I... that`s why.” E Herzog endossou: “It`s a perfect combination of the mad people, of the mad men”. 

Herzog incomodou seus sets com audácia, brio, intrepidez e nobreza. Já a especialidade de Kinski era o terrorismo psicológico e sua disposição em reduzir ao pó qualquer interlocutor que ameaçasse sua tirânica aura, como Herzog, a quem injuriou como “sujeito miserável, odioso, mesquinho, coberto dos pés à cabeça pelo fedor da cobiça e a gula por grana, tipo maldoso, sádico, traiçoeiro, achacador, covarde e descaradamente mentiroso“. Mas foi ninguém menos que Kinski quem “comprou“, resoluto, a “passagem“ e vestiu a camisa, do começo ao fim, para as desvairadas “viagens“ de Herzog às profundezas do inferno – e isto, apesar de sua escolha para o personagem do cauchero peruano, somente após o abandono do papel por Jack Nicholson e o adoecimento no set do seu substituto Jason Robards. Em suma: a inspirada cumplicidade estética entre „o louco (Herzog) e bad boy (Kinski)“ foi a que fez navegar Aguirre e salvou Fitzcarraldo do colapso.

“Fáustico desbravador de fronteiras” soa algo patética, mas é uma das adjetivações da crítica alemã que cai como uma luva na persona de Herzog.  Suas exigências sempre beiraram a fronteiras do suportável e se refletem em toda sua obra, d´O enigma de Kaspar Hauser por Aguirre (subtítulo: “A ira de Deus”) a seus documentários  sobre a escalada do pico Torre Catedral, na Patagônia, ou do inferno nos campos de petróleo, durante a 1ª. Guerra do Golfo; todos de uma beleza que vai do estoico, pelo comovente ao apocalíptico. Que Herzog faz sucesso domo encenador de óperas, principalmente do “fáustico” Wagner, não surpreende, apenas ironiza a obsessão do diretor por rasantes no olho do furacão. Quem os pilota são anti-heróis de causas perdidas, no máximo de “conquistas inúteis”. Fitzcarraldo é o Aguirre reembarcado: este é o espanhol delirante à caça do Eldorado e aquele, o seringalista obcecado em construir a Ópera de Manaus, sua releitura e farsa. O que os define e une é sua obsessão.

O agente Wickham

Mas há um outro, talvez o principal motivo para o resgate de Fitzcarraldo, cujo realismo é escamoteado pela aura do filme cult. 

A História por trás da estória - nunca referida, nem pelo making of Burden Of Dreams (Perseguir o sonho) de Les Blank, muito menos por Herzog - é a brutalidade da “febre da borracha” na selva amazônica, no final do séc. 19. 

“Descoberta” por monsieur Charles Marie de la Condamine durante sua expedição de 1736 ao Equador, mas conhecida há séculos como cahuchu ou caoutchouc por quase todas as tribos originárias da Amazônia, ou como pau de xiringa pelos conquistadores portugueses, a hevea brasiliensis e o látex dela extraído (substância perecível  e pegajosa, devido à ação da temperatura) são redescobertos como produto de utilidade industrial com a invenção da técnica de vulcanização pelo britânico Charles Goodyear em 1842; época em que a vila de Barra do Rio Negro fundada pelos portugueses, se reinventa como a cintilante Manaus da febre do “ouro branco”. 

O certo é que o ocaso do ciclo da borracha já se escrevia desde 1876, como crônica de um desastre anunciado. Seu autor: Henry Wickham, aventureiro fracassado do British Empire, boçal e imperialista convicto. Este desembarca em Santarém e mediante a arregimentação de indígenas ingênuos, consegue coletar 70 mil sementes de seringueira, que são escondidas em 819 cestos com castanhas do Pará e contrabandeadas pelo capitão Murray a bordo do cargueiro Amazonas para Liverpool, e de lá para o Jardim Botânico de Kew, na Inglaterra. Wickham fez seu primeiro pé-de-meia recebendo 10 libras esterlinas por cada lote de 1.000 sementes viáveis. Essa operação de contrabando e imperialismo biológico mudaria o curso da História Mundial na véspera da 1ª. Guerra mundial, quando as primeiras sementes da seringueira germinavam em solo da Malásia e da Índia, quebrando os barões da Amazônia.

A História como opereta


E la nave va..., ao encontro de mais uma imagem inenarrável e mitológica.
A bordo do Molly-Aída e gramofone em punho, Fitzcarraldo ouve eletrizado a voz de Caruso e contempla possuído(r) a misteriosa floresta que emoldura o rio. Mas este que está embarcado é o diretor de óperas Werner Herzog, que nos conta uma versão glamurizada de Fitz, como é glamour já decadente aquela Manaus das “Veias abertas...” de Eduardo Galeano: “mansões de arquitetura extravagante e decoração suntuosa, com madeiras preciosas do Oriente, azulejos de Portugal, colunas de mármore de Carrara e móveis de ébano francês" (nota de coluna social, não registrada por Galeano: também francesa era a água mineral Perrier e em alguns casos os senhores barões, tão incultos quanto neo-ricos, mandavam lavar sua roupa suja em Paris).

No entanto, aqueles cartazes que anunciam a apresentação do tenor Caruso no Teatro Amazonas, inaugurado em 1896, são uma tremenda cascata de Werner Herzog. Ironia da história ocorrida: com medo do cólera, Caruso ficou em Belém e Manaus ficou a ver navios. 

A História de fato começa a ser escrita em 1888, por um tal de Isaías Fermín Fitzcarrald, da Amazônia profunda do Peru, cenário ao qual convergem unidos por desencontros, acasos e obsessões, personagens tão dessemelhantes como o fotógrafo alemão Georg Hübner, seu amigo e antropólogo, também alemão, Theodor Koch-Grünberg, o cônsul britânico em Santos, Roger Casement, e Silvino Santos. 

Em 1888, Hübner e seu conterrâneo Charles Kröhle vão tentar a sorte na Amazônia peruana. Sua motivação é comercial, mergulham na floresta com a expectativa de reconhecimento. Seu projeto é a construção de um acervo fotográfico inédito de “regiões em parte desconhecidas e de tribos selvagens para além dos Andes” (Hübner), capaz de torná-los fotógrafos imprescindíveis para acompanhar os naturalistas em suas expedições na floresta. Em 1895, Hübner se estabelece em Manaus, dando início ao mercado da fotografia paisagística e etnográfica da Amazônia e à sua sólida amizade de mais de vinte anos com Koch-Grünberg.

O "paraíso do diabo"

Obsessões movem montanhas. E Isaías Fermín Fitzcarrald tinha a sua: descobrir uma passagem entre dois rios da Amazônia peruana, que viabilizassem o acesso ao Rio Acre-Purus e, através dele, a navegabilidade até Manaus, com o escoamento da vasta produção de borracha para os mercados europeus. 

Nascido em 1862 como filho primogênito do marinheiro e imigrante irlandês, William Fitzgerald, Carlos Fermín irrompe em cena em 1888 no assim chamado “oriente peruano”, depois de ser condenado à morte como espião chileno durante a Guerra do Pacífico, escapar do fuzilamento por um fio, perder o amado pai e - sentindo-se impotente para desfazer o estigma que o humilhava – desaparecer nas profundezas da floresta amazônica; sem pistas, por isso dado por morto, por familiares e amigos. Então na floresta começou a circular um causo. Dizia de um “índio branco” nas cabeceiras do Ucayali, que se apresentava aos índios Campas como “filho do Sol”: “Hablaba la lengua de los campas y les dijo que el ´Padre Sol´ lo haba enviado con un mensaje, para que las tribus errantes viviesen como hombres civilizados, formando pueblos con su iglesia respectiva”, conta seu biógrafo Ernesto Reyna.

Durante dez anos o filho de irlandês vive entre os índios, explora seu território, aprende a técnica do sangramento da shiringa e a confecção do látex e, como autoproclamada reencarnação do Inca Juan Santos Atahuallpa, ganha-os como súditos, pregando os evangelhos cristãos – incansável gesto de gratidão ao Padre Carlos (“Padre Sol”), que o reconhecera na prisão, salvara-o do fuzilamento e que, agora, abençoava o método Fitzcarraldo de submissão dos Campas mediante a chantagem: “ou obedeciam cegamente, ou secariam os rios e desapareceria a caça”. Em torno de 1890, Fitzcarraldo se instala festivamente em Iquitos como todo-poderoso senhor das matas de Madre de Dios, cujos seringais nativos se estendiam aos rios Manu, Tahuamanu, Las Piedras e Los Amigos, e têm a seus pés mais de 2 mil peões indígenas, fiéis escudeiros de sua obsessão: a saída para Manaus.
O varadero ou istmo de Fitzcarrald

A bordo da recém-comprada e reformada nau-capitânea “Contamana” (fonte de inspiração do barco Molly-Aída do filme), o Fitzgerald da história real  - cujo sobrenome com fonética irlandesa ninguém ousava pronunciar, rebatizando-o como Fitzcarraldo - parte de Iquitos em abril de 1894 à frente de 2 mil índios e uma frota de lanchas, na qual navegam um rebocador e embarcações menores carregadas de provisões, mercadorias, ferramentas e armas, rumo ao varadero virtual. O que ocorre ali, nos narra o biógrafo Ernesto Reyna, aqui traduzido ao Português (1):

"... Índios Piros e Campas e uma centena de brancos, unidos à vontade férrea de Fitzcarrald, empreenderam a façanha de fazer rolar o casco do barco Contamana por uma estrada de dez quilómetros de extensão, escalando altitudes de até 469 metros. A travessia do istmo demorou mais de dois meses, e Fitzcarrald, com as posteriores reparações da estrada, gastou cerca de cinquenta mil soles. (...)
No relatório de 400 páginas que o engenheiro Juan M. Torres apresentou à Junta de Vías Fluviales sobre o Istmo de Fitzcarrald, é feito um estudo pormenorizado desta estrada, mostrando as dificuldades que Fitzcarrald teve que enfrentar no seu traçado, e a sua capacidade de engenharia para a construir sem recurso a explosivos.
"A doca seca de Fitzcarrald parte da margem direita do rio Serjali, a meia volta antes do afluente do Huaman-Quebrada, e a 332 metros acima do nível do mar, com um curso total N. 70° E, para morrer na margem direita do Caspajali a 352 metros acima do nível do mar, depois de subir ao divortium aquarum das águas dos rios, a 469 metros acima do nível do mar, no quilómetro 7. A sua extensão horizontal é de 11 quilómetros. 615 metros, fora as sinuosidades devidas à configuração do terreno (...) Esta proeza foi considerada por todos como espantosa, e até hoje não foi imitada".

A metáfora da história

A imitação da façanha tardou 87 anos, a repetição da história buscava um novo ator. E é possível que tudo tenha começado certa noite em Karnac (Bretanha), conta  Herzog com ensaiada imprecisão.

Ele buscava uma cenário para O enigma de Kaspar Hauser e na paisagem deparou-se com menires e dolmens gigantescos. Imaginou, então, um “propósito demencial”: transportar aquelas pedras enormes e pesadíssimas, cada uma com 150 toneladas de peso e uma altura de 12 metros; “uma tarefa possível”, afinal, seus escultores o tinham feito séculos atrás, dispondo de meios parecidos, ou seja, alguns milhares de operários e alguns troncos de madeira. E foi assim que a ideia de um barco atravessando uma montanha no braço, foi se impondo à imaginação, porque subitamente lembrou-se de um episódio que tinha ouvido no Peru, no qual um seringalista tinha conseguido uma façanha semelhante.

Um barco que escala e um filme que move montanhas: esta é “uma metáfora monstruosa, animista, deslocadora das leis da natureza [materializada]... antes que a maquinária da ilusão eletrônica dos Spielbergs e Lucas, mormente conhecida por simulação computadorizada, fizesse dinossauros caminhar, alcançando resultados confundíveis com o real! ... Alcançar o impossível na contramão da lei da gravidade: esta foi a (absurda) utopia do fazedor de filmes Werner Herzog; ser „titânico“ mesmo no fracasso, sua esperança estética“, pontua o crítico e escritor Wolfram Schütte (2).

Carlos Fermín Fitzcarrald, o Rey del Caucho e fazedor de história, morreu afogado em 9 de julho de 1897 nas corredeiras  do rio Alto Urubamba.

O efeito Koch-Grünberg

Trama paralela. Outro barco fora d´água, capotado; canoa comprida, cheia de carga. E outra vez, a peleja com a lei da gravidade: um grupo de homens a carrega no braço, cachoeira acima. Ao fundo, uma caudalosa corredeira. É uma foto, sua legenda explica: “Barco virou, Rio Uaupés, Koch-Grünberg, 1904”. 

Justaposta à imagem da Contamana de Fitzcarrald, contará uma nova estória - “montagem de atrações”, diria Vlasevlod Pudovkin. Também esta foto indica certa obsessão, a do antropólogo Koch-Grünberg, forcejando contra o curso do Rio Negro e a maré da História nas entranhas de suas florestas. É sua primeira expedição à Amazônia. Da realizada entre 1898 e 1900, ao Xingu, em companhia de Hermann Meyer, prefere não se lembrar; quase morreram, de fome e vertigem. Não é o primeiro alemão desvairado a embrenhar-se nestas paragens. Em 1820, os obcecados Carl Friedrich Phillip Von Martius e Johann Baptist Spix xeretaram pelo Negro e o Japurá até as raias da Colômbia. A propósito: no Südfriedhof, o cemitério da zona sul de Munique, há uma lápide com a efígie de Éolo, o deus dos ventos glaciais do norte; os que simbolicamente mataram de frio a Isabela e Yuri, os dois curumins arrancados em 1820 destas matas e levados por Martius para a Baviera. Descabeçada Völkerkunde, “etnologia” aquela!

Este, no entanto, é um pesquisador que chega sem nariz empinado, que não arma sua barraca na “clareira da academia”, mas que participa criativamente do quotidiano no interior das malocas. Muito presente e participativo, apesar de extenuado, K.-Grünberg se instala nas aldeias do Alto Rio Negro. Seu diário (Dois anos entre os indígenas, 1903-1905) registra intensa comunicação e interação com os visitados. Não está preocupado consigo mesmo, sua atitude da „jovialidade participativa“ contracena radicalmente e rejeita aquela “observação melancólica”, fatalista, as lamuriantes “auto-reflexões” (narcísicas?) de um Lévi-Strauss.

Paciente e respeitoso, somente muitos meses após sua aceitação, é que o antropólogo inicia seu projeto sonhado: o ateliê da selva, chamado Anfänge der Kunst im Urwald – “Inícios da Arte na Floresta”. Distribui enormes quantidades de lápis e papel aos seus anfitriões e incita-os ao desenho. O resultado é espantoso, sublime: argutos observadores e hábeis desenhistas escolados nas filigranas da  pintura corporal e do geometrismo de cestaria, centenas de índios recriam seu universo. Koch-Grünberg exulta, mas os tambores do Putumayo e do Caquetá interrompem a alegria do alemão e de seus amigos.



No coração das trevas

A descoberta de Fitzcarrald causa alvoroço no departamento de Madre de Dios
Em 1903, Julio César Araña sente o cheiro de borracha e de dinheiro. Muito dinheiro. 
Depois de amealhar boa fortuna como comerciante no oriente peruano, resolve mudar de ramo e funda a Casa Araña Hermanos, com sede em La Chorrera, já em território colombiano. Num átimo percebe que está com a faca e o queijo na mão: imensos seringais nativos e mão-de-obra a custo virtualmente zero (3). Lembra-se então de certa “tradição” colonial, a correria, espécie de arrastão, formado por um exército de mercenários, fortemente armados, que cercam malocas indígenas, sequestram os nativos e arrastam-nos como prisioneiros para campos de trabalhos forçados. Senhor sobre milhares de indígenas, principalmente da etnia Huitoto, é assim que Araña estende sua rede de barracões de seringa pelos imensos territórios, que vão do Putumayo (Içá) ao Caquetá (Japurá), alcançando mais de 5 mil km2; em parte localizados em território colombiano invadido. Sem telégrafo, Araña e os demais caucheros comunicam-se com seus vassalos através de sinais sonoros, por tambores.

Mais ao sul, em território boliviano, entre o Acre e o Mamoré, começa outro império, o do caudilho Suárez. Beneficiado pela outorga de terras públicas e concessões econômicas, Suárez se estabelece em Cachuela Esperanza. Entre 1880 y 1886, duplica a exportação da borracha e eclodem as inevitáveis rivalidades com seu conterrâneo Antonio Vaca Diez e o peruano Carlos Fermín Fitzcarrald. Estradeiro, ladino, Fitzcarrald negocia acordos e faz sociedades com ambos os bolivianos. Se apossa dos seringais até o rio Manu e empurra seu mitológico barco Contamana para o lambe-pratos Suárez; senhor do rio Acre até o momento das invasões brasileiras e a entrada em cena de um mercenário espanhol chamado Galvés. 

Apesar da perda do Acre para o Brasil, Suárez continuará ampliando seus negócios. Com a morte de Fitzcarraldo e Vaca Diez, controlará mais de 60 por cento da produção da borracha boliviana e de parte da de Madre de Dios, peruana. Quando as plantações inglesas das seringueiras roubadas começaram a germinar no Ceilão e na Malásia, sinalizando o ocaso da borracha amazônica, Suárez tinha entesourado uma fortuna de aprox. 2,7 milhões de libras esterlinas e suas propriedades cobriam 4,9 milhões de hectares; algo em torno de 4,4 % do território nacional boliviano. Titular de um cargo de senador, o boliviano sonhara com um Reich amazônico de longa duração: nas sedes de seus barracões instalou campos de concentração para jovens e mulheres indígenas, estupradas sistematicamente por “clientes especiais” para a procriação de uma nova “raça seringueira”, escrava. Virtual inspiração de Himmler e Pol Pot, Suárez encharcou a Amazônia profunda com sangue e obscenidade.

A Missão Casement

                                                      Sir Roger Casement

Talvez porque a barbárie de Suárez demorasse em reverberar até a distante Iquitos, o jornalista/editor Benjamin Saldaña Roca concentrou-se na denúncia das atrocidades cometidas por J.C. Araña contra “seringueiros colombianos”, leia-se: os índios Huitoto, anfitriões de Koch-Grünberg. Sua fonte de informação era o reverendo norte-americano Walter Hardenburg, visitante indignado com o que testemunhara nos barracões de Aranã e por isso tomado como prisioneiro  pelo seringalista. 

Alardeado, mas astuto, Araña arquiteta uma manobra: em 1907 viaja a Londres e refunda a Casa Araña com o nome “laranja” de Peruvian Amazon Company, instituindo uma junta diretiva de empresários ingleses. Hardenburg segue-o até a Grã-Bretanha e entrega seu testemunho (Putumayo, the Devil´s Paradise) ao jornal Truth. Este faz circular reportagens sobre um “Congo [belga] com donos britânicos”, causando indigestão e  constrangimento às margens do Tamisa.

Apesar do choque, a Chancelaria inglesa demora quase três anos para designar seu cônsul em Santos para investigar os fatos em território colombiano. Seu nome: Roger Casement. Acompanhado de mais três súditos, durante um ano Casement mergulha no âmago da caligem e não deixa dúvidas em seu The Blue Book of Putumayo (azuis eram todos os relatórios confidenciais do Foreign Office), denunciando: “No início do ano de 1900, a zona de Putumayo foi palco da morte de aproximadamente 40 mil indígenas. As mortes foram atrozes e cruéis: banhando seus cabelos em querosene, foram queimados vivos, torturados até encasularem-se como vermes. Foram, estuprados, sofreram aplicações de cepos, mortes de anciãos, mulheres e crianças. Estas mortes brutais foram lideradas pelo cauchero de então, Julio C. Araña”

Em seu clássico A acumulação do Capital (1919) a legendária deputada e militante marxista alemã Rosa Luxemburg já dedica um parágrafo indignado ao caso Putumayo. "Tive a sensação de não ter lido um livro, mas ter estado presente no sítio da ação", desabafou o não menos célebre escritor argentino, Jorge Luis Borges, abismado com a sordidez e a truculência narradas pelo colombiano José Eustacio Rivera em sua novela La vorágine, de 1924, ainda inédita no Brasil. Rivera descreve a sina de mulheres e meninas indígenas mantidas como prostitutas em cativeiro, submetidas ao pelourinho, à chibata, a afogamentos. Fala de velhos, jovens e crianças queimados vivos em fogueiras. 30 mil assassinatos, 10 mil sobreviventes mutilados. (4)

O cineasta acidental

No auge das denúncias na Grã-Bretanha, uma novidade estrepitosa, capaz de reverter sua sorte, chega aos ouvidos de J.C. Araña : o cinematógrafo. 

Atuando como comerciário e fotógrafo ocasional em Belém do Pará, é quando a História escolhe o distraído português Silvino Santos  para conduzir a trama de J.C. Araña. Enviado a Paris, sua missão consiste em aprender a operação do cinematógrafo nas oficinas dos irmãos Pathé e o desenvolvimento de uma película resistente ao calor tropical, nos laboratórios Lumière. Retornando ao Brasil, é enviado ao rio Putumayo, próximo à atual fronteira com o Acre, e em 1912 começa a rodar um filme, cuja versão “paraíso" desmentiria a versão “Demônio” sobre os seringais de Araña. Tal foi a afeição de Araña por Silvino, que lhe entregou a mão de Anna Maria Schermuly, descendente de alemães, sua tutelada.

Destituído de seu filme publicitário, cujos negativos jaziam em algum lugar no fundo do Atlântico, J.C. Araña enfrenta a Corte britânica em 1913 com um álibi “cinematográfico” para seu genocídio: ”medidas necessárias para enfrentar a agressividade de índios antropófagos”.  

A propósito: enquanto Joseph Conrad escrevia No coração das trevas, o cônsul inglês no Congo tinha sido Roger Casement. Seu relatório sobre as atrocidades belgas, corroborado pelos relatos do amigo Conrad, custou-lhe a transferência para o Brasil, ainda por cima difamado como homossexual e “degenerado”. Mas essa é outra, uma longa estória: Casement era irlandês de cepa rebelde, um dos fundadores do futuro IRA. Agindo na clandestinidade, conseguiu apoio e armas na Alemanha. Foi enforcado naqueles dias, quando seu arqui-inimigo, o canalha J.C. Araña, baixava chasqueando as escadarias da Supreme Court; solto, porque cidadão não pertencente à jurisdição britânica.

Morte em Vista Alegre - Silvino e Koch-Grünberg

Koch-Grünberg, 1912

Retronarrativa. Amargurado, em 1910 um europeu desabafa em seu diário de campo sobre seu reencontro com o Rio Negro e a Amazônia.

“Minha primeira visita foi há menos de cinco anos...
Quem pisar esta região, agora, não mais encontrará o lugar aprazível que eu conheci. Uma pseudo-civilização pestilenta abateu-se sobre o povo moreno que não tem direitos. Feita nuvem de gafanhotos vorazes, a quadrilha desumana de barões da borracha continua avançando. Os colombianos já se instalaram na cabeceira do Kuduyari e carregam consigo meus amigos para os seringais assassinos. Na ordem do dia estão maus-tratos cruéis, brutalidade e assassinato. Os brasileiros do baixo Cairary não são melhores. As aldeias indígenas estão devastadas, suas casas foram reduzidas a cinzas e seus jardins, despojados das mãos que deles cuidam, foram tomados pela selva.
Assim, uma raça vigorosa, um povo dotado de um magnífico dom, de brilhante intelecto e gentil disposição, serão reduzidos ao nada.
Recursos humanos capazes de desenvolvimento serão aniquilados pela brutalidade desses modernos bárbaros da civilização”.

O europeu chamava-se Theodor Koch-Grünberg e iniciava sua terceira expedição brasileira, Do Roraima ao Orinoco (1911-1913). É nesta expedição que K.-Grünberg realiza em Roraima o primeiro filme (documentário) da Amazônia, em parceria com H.Schmidt. Filmado na aldeia de Koimélemong, Aus dem Leben der Taulipang”(Da vida dos Taurepang, 1911) é o primeiro registro etnográfico gravado em suporte fílmico, com imagens sobre o preparo do milho e da mandioca, a tecelagem do algodão, das recreações e danças do ritual Parisherá. São dos registros desta expedição que o turista acidental Mário de Andrade se apropriará para a criação de seu personagem Macunaíma.

Em 1924, K.-Grünberg retorna ao Brasil para sua última expedição à Amazônia, organizada pelo geógrafo norte-americano Hamilton Rice. 

É quando, inusitadamente, se cruzam os caminhos do antropólogo e de  Silvino Santos, escalado como cinegrafista da missão. Seu objetivo era o levantamento cartográfico e etnográfico das cabeceiras do Rio Branco, entre o Brasil e a Venezuela, com a busca de canais de ligação com a Bacia do Rio Orenoco – missão à qual Alexander Von Humboldt já se aferrara 120 anos antes, descobrindo o Canal de Cassiquiare. 

Mas uma feroz epidemia de malária engolfa a Amazônia. Pressionado pela esposa em Manaus, Rice decide atrasar sua partida para Roraima, onde é esperado durante muitos dias por K. Grünberg,  que morre subitamente na localidade de Vista Alegre, vitimado pela  malária da qual Rice se esconde. O bravo antropólogo é sepultado nas próprias margens do Branco. 

E aqui arrebenta o filme e dá um branco na tela da História: onde estava Silvino naquele momento? E Georg Hübner, o improvisado diretor de produção de K.-Grünberg, quê fazia? Por que não foi feito nenhum registro do antropólogo em Vista Alegre? O fotógrafo e o cinegrafista estavam com Rice em Manaus? 

As coleções etnográficas de K.-Grünberg foram destruídas nos bombardeios de Berlim pelos norte-americanos e britânicos durante a 2a. guerra mundial. Não foi outra a sorte das fotos de Hübner (incluída aí a primeira coleção de fotografia botânica da Amazônia), em grande parte destruídas pelas bombas incendiárias, as famosas blockbusters testadas em Dresden.

Notas

(1)   Ernesto Reyna – El rey Del caucho – Lima, 1942;
(2)   Wolfram Schütte, sobre o livro de Herzog,  Die Eroberung des Nutzlosen - A conquista do inútil, 2004, inédito no Brasil; in http://www.titel-forum.de/, 23.09.2004;
(3)   Grande contingente dos peões de Araña foi contratado durante visitas pessoais do seringalista no Nordeste do Brasil. Peões de Araña ou futuros “soldados da borracha”, sua aventura não lhes deu direito à passagem da volta. Somente uns 6 mil homens conseguiram salvar-se e regressar por iniciativa própria. A maioria, cerca de 30 mil seringueiros brasileiros, morreu abandonada na Amazônia, esgotando suas forças na extração do ouro branco. Morreram de malária, febre amarela, hepatite e atacados por onças, cobras e escorpiões. O governo brasileiro não cumpriu sua promessa de resgatá-los e trazê-los de volta a seus lugares de origem no final da “guerra”. Entre os trabalhadores de Aranã constava ainda um contingente de negros trazidos das Ilhas Barbados pelos sócios britânicos;
(4)   Não menos assombrosa, porém, é a hipocrisia do mesmo Império, que em 1911, no auge das denúncias, decide premiar o agente Wickham com uma medalha de prata, um cheque de 1 mil libras esterlinas e uma espécie de pensão anual de outras 1 mil libras, por seus méritos de contrabandista. Por seus “Serviços em conexão com a indústria de cultivo da borracha no Oriente” em 1920, o sinistro Wickham ascendeu à nobreza com o título de Sir. Em 1926, ano de seu 80º. Aniversário, o petromagnata norte-americano Edgar B.Davis presenteou-lhe um cheque de 6 mil libras, às quais se somaram outras 8 mil, patrocinadas pelo governo britânico da Malásia, em 1926. Dois anos mais tarde Wickham morreu. Como herói do imperialismo da borracha.