19 julho 2018

Frederico Füllgraf - Sedex aos sábados



Conto 

Enquanto observava, pela primeira vez, o sobrado antigo, de dois pavimentos, bem conservado, com janelões altos e porta gradeada, cercado baixo, de frente para a calçada, varreu a quadra com o rabo do olho, pois sentiu vontade em demorar-se, mas sem chamar atenção. 

Nesses tempos, parar no meio da calçada e observar uma casa, sem outro motivo que não o estético, poderia desencadear reações algo surpreendentes na vizinhança, tais como chamar a polícia.

Pois, que se danassem! Ele gostava de contemplar aquela casa. 

O reboco cinza-escuro do frontispício lhe conferia uma tonalidade soturna, apenas ligeiramente ateada pelo verde das bananeiras adultas que impregnava suas venezianas, fechadas. Apesar disso o conjunto lhe transmitia aconchego.

Mas aquela casa não queria caber ali.
Ela, sim, cercada de más companhias, numa babel de traçados que constituíam o terceiro estilo, como o descrevera Alejo Carpentier: um convívio de edificações dessemelhantes nas ruas do Novo Mundo, que era ao mesmo tempo tudo e nada, do bom ao péssimo gosto. A falta, enfim, de qualquer estilo.

Não, a casa não pertencia àquela rua! Essa certeza verdadeiramente atiçou sua obsessão em desvelar seus interiores.


Duas semanas depois, caminhando pela redondeza, sentiu saudades da casa e decidiu-se pelo trajeto mais tortuoso, apenas para desfrutar aqueles momentos fugazes de lembrança embaciada. Lembrança daquela casa pendurada em algum alcantilado do Mediterrâneo.

Mas então ouviu tossidas na calçada, e era uma tosse feminina. 

Intrigado, percebeu que os soluços emanavam do interior do próprio sobrado, cujos janelões agora estavam abertos sobre o dia. 

Deteve-se ao lado de um poste, dissimulando e, pensando naqueles pratos parabólicos que cavalgavam os ângulos mais inusitados das casas, ajustou ao máximo suas orelhas ao eixo de uma das janelas. 

Podia jurar que era mesmo Violetta acometida por um de seus surtos de tuberculose, no primeiro ato! Obviamente, Alfredo aproveitaria sua fragilidade para aproximar-se dela e declarar-se. E ela o desencorajaria, dizendo que nem sabe como é amar, quanto mais lidar com sentimentos fortes...

Não cabia dúvida, aquela era a Callas! 

Se lhe dessem mais um minuto, apostaria que era a montagem de Luchino Visconti, de 1955, no Scala de Milão, com Giuseppe Di Stefano no papel de Alfredo... 

Tivesse trazido a máquina fotográfica e poderia despistar com um bom motivo para atrasar seus passos na calçada. Mas tinha que seguir caminho, afinal ele não era da Avon, nem das Testemunhas de Jeová, muito menos tinha uma Enciclopédia Britânica para anunciar à porta e empurrar goela abaixo de alguma dona de casa desprevenida!

Imaginou que suspeitassem que fosse algum tarado - ou "assediador sexual", como diz o jargão em moda - riu-se e, a contragosto, saiu caminhando, mas não sem virar-se e lançar um olhar furtivo à porta da entrada. Não era preciso decorar o número, era apenas uma obsessão.

Acendeu um cigarro e tomou o rumo da esquina.

A verdade é que ele estava perigosamente apaixonado por aquela casa. E começou a passear suas fantasias.

Em sua terceira passagem, manhã de sábado - desses finais de maio, aprazíveis, com céu azul espelhado - percebe que a confeitaria, localizada do outro lado da rua, colocara mesas e cadeiras na calçada. 

E decide abancar-se, mas de tal modo, que seu campo de visão emoldura perfeitamente a sonhosa vivenda. 

Pede um café e um Domecq, e também a enfastiante gazeta.

Dissimulando leitura, mas vazando a borda do jornal com um olhar de esguelha, não lhe escapa o instante em que uma mulher – ele apostaria que teria seus trinta e sete, no máximo, quarenta anos – coloca alguns vasos de plantas no peitoril de uma das janelas, que se põe a regar.

Enquanto a observa, por um átimo ela ergue a cabeça, olhando vagamente em sua direção. 

Entre duas, três miradas furtivas, ela se afasta da janela - será que percebeu sua indiscrição? 

Ele volta a acoitar-se atrás do jornal, mas não se contém e, mirando de soslaio, percebe a mulher atravessando rapidamente os fundos da sala, com uma toalha enrolada na cabeça, mas vestindo apenas uma calcinha – santo Deus, que escultura! 

Contudo, minutos depois, já vestida, ela reaparece na rotura e recolhe os vasos. 

Da sala, atrás dela, seu ouvido apurado distingue o coro dos mascarados, do 3º. Ato. Em La Traviata, o coro dos mascarados era uma cena de festa - será que ela estava lhe mandando uma senha? 

Teriam passado dez minutos, excruciantes, e ela retorna uma terceira vez, mas apenas para fechar a janela. 

Jururu, o sujeito dobra o jornal, ergue-se da cadeira, paga sua conta, vira a esquina e desaparece no turbilhão.

(Aqui impõe-se um corte da cena para um fast motion, recurso de dramaturgia barata, como nas novelas daquela nefasta rede da Lopes Quintas: crepúsculo, nuvens rápidas, escuridão, luzes na cidade...).

E faz-se noite de uma sexta-feira. 

Mal recortado contra a luz bacenta de um poste, o vulto de um homem se aproxima da entrada do tal sobrado onde canta a Callas.

A poucos passos do cercado, a figura hesita, acende um cigarro, dá algumas pitadas, nervosas, e joga fora a guimba. Ato contínuo salta o cercado e aproxima-se da porta. 

Estaria delirando? Do interior da casa alcançam-no fragmentos de Fredegunda, na inconfundível partitura de Gasparini...

Mas a voz de Galsuinda...  Não, aquela era uma voz ao vivo! 

Apertando um embrulho avantajado contra o peito esquerdo, o espectro estende o braço direito à campainha. Lembrou-se do título do filme, reprimiu o riso e tocou duas vezes.

Lá dentro, o volume da música se encolhe. 

Sente-se ridículo, mas colando o ouvido esquerdo à porta, denota passos aproximando-se. 

A luminosidade do olho mágico se dissipa; alguém tenta observá-lo do lado de dentro.

- Quem é? - pergunta uma voz de mulher.
- É um Sedex, senhora! – responde o vulto.
- A essa hora! – reage a voz , já virando a chave na fechadura.

Pela fresta da porta entreaberta, a primeira imagem que se impõe ao campo de visão da mulher é a de uma grande caixa. 

Mal a registra e a caixa desliza ao chão, Mas o que a mulher vê, agora, é uma arma apontada para sua cabeça. 

Seu gritinho estridente quebra-se entre a soleira e a sala atrás dela, enredando-se nos queixumes de Fredegunda.

Mas então é a vez do assaltante assombrar-se.

- Não pode ser! Malizia... - você, aqui?
- Malícia?
- Quieta, já explico! 

Com a mão esquerda enfiada numa luva de lã escura, o assaltante tapa a boca do belo rosto estatelado na soleira da porta.

- O que foi Clarice – machucou?      
                                        
Uma voz feminina ecoava dos fundos da casa. E não era Maria Callas!

- Clarice, pois sim! E quem é essa outra? – cobra-lhe, apavorado, o assaltante, brandindo seu revólver. – Responda, mas nenhum pio a mais, ouviu!

- É minha mãe, mora comigo, está tomando banho, é uma senhora de 70 anos... – diz, quase implorando, a mulher que, virando-se, choraminga na direção do corredor: - Está tudo bem, mãe, é uma entrega que chegou de repente. Está tudo bem!

Ainda brandindo sua arma, o assaltante ordena.

- Agora, pegue o pacote!
- Entrega? – questiona a rezinga que se espreme atrasada através da porta entreaberta do banheiro, no fundo do corredor: – Quando o correio era do governo, era ordem do Getúlio pra não importunar as famílias depois da missa das seis, mas hoje... – crendiospadre!

Ela o contempla, incrédula, se abaixa, apanha o pacote com as duas mãos e o carrega até a primeira poltrona da sala. 

Mas detém-se, e só agora presta atenção na figura do homem que se completa à sua frente: veste calças jeans, uma camisa escura, bem passada, e por cima dela um paletó marrom, de marca. É alto, deverá ter a idade dela, talvez um pouco menos, tem porte atlético. Seu rosto é de traços retangulares, bonito, seu nariz é suave, mas seu queixo é decidido, e em seus olhos escuros cintila uma chispa de cinismo que a qualquer momento poderia desatar alguma maldade.

- E agora, o que deseja? Pode levar o que quiser, mas vá embora, por favor! – implora a mulher, virtualmente cochichando, mas de esguelha pescando o telefone em cima do console.

Atento aos olhares dela, ele a encurrala, manda-a desconectar o telefone fixo e entregar-lhe o celular, cuja luz azul já cintilou três vezes no bolso da blusa dela. “A bela terá marido ou namorado?”, pergunta-se.

- Não quero nada da sua tralha! Não vai abrir? – ele insiste com um aceno impreciso do revólver ao misterioso pacote em cima da poltrona.

- O que significa tudo isso? – ela espanta-se, recuando de costas até o sofá. E abrindo a embalagem, o que salta de seu interior é a ramagem de uma bela orquídea plantada num vaso de cor ocre. 

Com o vaso nas mãos, o encara com lábios trêmulos, que esboçam um sorriso interrogante.

- É um presente! Achei que iria gostar, outro dia vi você regando orquídeas no peitoril da janela...

- Você anda me seguindo, é? Quem é você, afinal? Eu vou quebrar a janela e chamar a polícia, viu!    

- Nossa, que surpresa! – diz a anciã que se aproxima pelo corredor, com a mão na boca, sinalizando vergonha diante do desconhecido, porque veste apenas um penhoar .   
       

Com gesto imperceptível, a arma escorrega para os fundilhos da calça e o visitante inusitado já vai estendendo a mão à idosa, perplexa.

- Este é o ... – titubeia Clarice.

- Léo! – ele atalha a mulher, emendando uma mentira descarada. – Léo, amigo da Sandra, amiga da Clarice... Eu vinha para a cidade, e a Sandra pediu que eu entregasse aquela orquídea, ali, à sua filha... Desculpe a hora, mas é que, com uma flor ali dentro... Poderia murchar, sabe como é...

Clarice mantém os olhos pregados no sujeito. É uma expressão ambígua. Sente vontade de estraçalhá-lo. Mas por outro lado...

- Não quer servir uma água, ou um cafezinho para o... – é Léo, né? – assevera-se a idosa, parada na soleira do corredor, mirando a filha, e já ajuntando – O sr. me dá licença, que eu vou botar um agasalho... 

E despede-se, retornando ao corredor.              
                                        
Clarice não cabe em si de ódio pela ousadia do intruso, mas fazendo vistas grossas, encaminha-se à cozinha. 

Ele a segue, atento a todos seus movimentos.

Aquela pausa do cafezinho era a mais angustiante na vida de Clarice, que deixa intocado o seu. 

– Não vai tomar, filha? 

A velha bebe um chá de cidreira e logo se despede porque vai viajar pela manhã, cedo; a outra filha mora fora da capital, explica ela ao gentil entregador da orquídea. 

Derrubada numa das poltronas, a Clarice não escapa um esgar triunfal no canto esquerdo da boca de “Léo”, quando sua mãe se retira para dormir.

- Então era você quem cantava a Fredegunda? – ele alfineta, ajuntando um elogio: - Que bela voz!

- De onde conhece essas óperas, todas? – ela indaga, dissimulando interesse, na verdade tentando ganhar tempo.

- Ah, nem queira saber! – responde o sujeito, com um bafejo de aborrecimento: - Foram três anos de internação...     

Olhos esbugalhados, ela se oprime apavorada contra o espaldar da poltrona, cravando as unhas da mão esquerda na palma da direita.         
       
O assaltante ajunta: - Um dia, meu psiquiatra, cansado das longas sessões inócuas, trouxe uma coleção de óperas, dessas promoções de jornal à cata de leitor, e disse, “tome, vê se descobre aí o seu arquétipo!”. Ele era Jungiano... - diz, com humor corrosivo.

Por momentos, Clarice cogita se o sujeito não lhe estava mentindo, mas volta a assombrar-se quando, educado, ele pede licença para olhar a coleção de discos dela, na qual descobre “O rapto de Lucrécia”. 

Desculpando-se por lhe ter mentido, porque na verdade se chamava Tarquínio, diz: - Minha ópera preferida! 

Apavorada, ela deduz  com seus botões, conferindo as horas no relógio de pulso"Bingo! Logo imaginei! O Tarquínio estuprador da ópera! Este é o mote, o prelúdio do meu assassinato!”.

– Mulherzinha venenosa, a Fredegunda! Interesseira como a maioria dessas que andam por aí... Piranha, se me perdoa a expressão! E barraqueira! – graceja “Léo-Tarquínio”.                
- E quem é… Malícia? – Clarice o interrompe, bombeando coragem com a lembrança de Laura Antonelli naquele filme homônimo, no qual, perseguida por um filho de seu senhorio, vira o jogo, arrebatando-lhe aquela lanterna de luz cegante...

– Malizia com “z”! – ele corrige-a.

E ajunta: - Foi um susto! Ela é uma mulher virtual, com um rosto igualzinho ao seu, e seios com esse mesmo contorno de pêssegos dadivosos...   

- O que está querendo dizer? – abespinha-se Clarice.

- Brincadeirinha, desculpe! – desconversa “Léo-Tarquínio”.

“Pêssegos dadivosos!”.

De soslaio, ela percorre o próprio decote em busca de algum chamariz que justificasse o rude atrevimento daquela frase. Obviamente, aquele sujeito andava espiando. E se fosse um voyeur agressivo? Mas seus seios... 
Por acaso os teria achado pequenos demais? – rumina com seus botões, enquanto reluta em responder-lhe por que costumava cantarolar aquelas óperas. Quem sabe, respondendo, ganharia sua confiança, e nem que tivesse que manter a vigília durante aquela noite insana, o venceria pelo cansaço. 

– Sou mezzo soprano, metade do ano trabalho em Sevilha – ela resmunga, finalmente.

- Sevilha? Eu sabia, eu sabia! – “Léo-Tarquínio” desopila-se, visivelmente regozijado, mirando de soslaio o corredor, com medo de acordar a respeitável senhora.

- Andou bisbilhotando até mesmo o meu trabalho? – Clarice se enfeza.

- Não, nada disso, é a casa! Mas você não vai entender, pelo menos hoje não vai... –   responde com um olhar que se projeta para muito além do rosto dela. 

Agora, pastoreando-o nas guirlandas da fumaça de seu cigarro, entretém Clarice com a cínica moral da história de Lucrécia, a bela esposa de Colatino: Tarquínio tivera que violá-la porque ela resistira à sua corte... E era de fato a única mulher fiel em toda a Roma antiga!

E sobrevêm instantes de mortificante tensão. 

Resolvida a despertar daquele pesadelo, Clarice vai ao banheiro. Quando retorna, na cozinha apanha dois cálices e uma garrafa de vinho. 

“Léo-Tarquínio” continua a deblaterar sobre “Lucrécia” e a fidelidade das mulheres. Distraído, não percebe quando Clarice dissolve um poderoso sonífero em seu vinho, mas no momento do brinde ela se confunde, troca a ordem dos cálices, e é Clarice quem desaba na poltrona.

Por momentos, “Léo” a contempla e culpa o vinho por seu súbito decaimento, mas também sua brutal invasão da privacidade daquela mulher, por quem começava a sentir imensa ternura. Termina de ouvir “Lucrécia” e culpa-se. Depois toma Clarice nos braços, carrega-a até seu quarto e cobre-a delicadamente com a manta de lã negra, que serve de colcha.

“Léo-Tarquínio” retorna à sala, mas então voltam a assaltá-lo aquelas recordações lavadas pelo tempo. 

Medindo passos entre o corredor e o vestíbulo, estuda as linhas nas tábuas corridas do assoalho, perscruta os caixilhos das janelas, a disposição do pé direito. 

Observando-a atentamente, podia perceber-se no acabamento daquela casa intenções que ora diluíam, ora somavam fronteiras: poderia repousar sobre os penhascos do bairro espanhol de Nápoles, por exemplo. Também era possível imaginá-la como o último teto de uma ladeira de Barcelona, com intenção de afogar-se no mar defronte. Talvez vigiasse solitária sobre as areias de Saint Jean de Luz. Nem espantaria os pescadores de San Sebastián, do outro lado do golfo, se lhes mostrasse a foto, pois diriam no es por azar, porque constituía cópia perfeita da taberna do contramestre Facundo, com vista sobre o porto, onde se bebe o brandy e se fazem longas pausas de silêncio entre as conversas. 

Com seu acabamento de intenção hispânica, por cujas fendas espreitavam inspirações afrancesadas e toscanas, ninguém se surpreenderia se dissesse que era a casa de infância de Jorge Luís Borges, em Palermo Viejo. Não era a imagem frívola do tal chateau en Espagne, mas se tivesse que descrevê-la em atitude discreta, eu diria que a casa habitava certo páramo de sonho, sem dúvida, mediterrâneo.

E agora ele sorria com a recordação daquele jogo de tarô-bêbado, na noite do ano novo, em Búzios. Porque Sevilha se encaixava na descrição da amiga francesa que o surpreendera, dizendo, “Ouuulalá! Em vidas passadas você foi um magicien, algo assim. E viveu em algum lugar poderoso do Mediterrâneo, mas foi expulso do reino, pas que...- Oulalá, seduziu a mulher do sultão?”.

"Desterro", "vidas passadas"... Não conteve o riso. 

Na mente, nenhuma lembrança consciente! Mas por quê essa anamnese, essa certeza excruciante daqueles finais de tarde no terraço sobre o imenso mar? Tânger, Faro, Málaga, ou Siracusa? Que tal se...

Estirado sobre o sofá. encafifado, se fora a casa, apenas, que o incitara à loucura do assalto, adormeceu.

Despertou ao raiar do dia.

No banheiro tentou expungir as olheiras violáceas com a água gelada da torneira. Em seguida, foi à cozinha e preparou o café da manhã. 

Aturdida, a velha senhora o surpreendeu, pondo a mesa. Percebendo o sofá algo desarrumado, perguntou por Clarice. 

Sem aguardar a resposta, correu ao quarto da filha, mas percebendo que ela continuava vestida e maquiada do jeito que estivera na noite anterior, aquietou-se, reincorporada em seu pudor.

Então soou a campainha. Era o táxi.

Constrangido, “Léo-Tarquínio” também esboçou movimento de quem já estava indo, mas a anciã insinuou que ficasse à vontade, e se despediu.

Sonada, Clarice apareceu na sala, escorando-se no vão da porta, descalça.

Depois, abancados, cada um em uma poltrona, sentindo o olhar dela, que alternava severidade com lenta suavidade, “Léo-Tarquínio” disse, jocoso: - Viu, não precisou se suicidar como a Lucrécia! 

Toma! – ajuntou, com novo sorriso macarrônico, apontando o revólver ao rosto da mulher, em cujas bochechas começavam a escorrer pérolas de água da arma de brinquedo.    

Rindo-se, apanhou sua jaqueta dobrada sobre o espaldar de uma das poltronas e vestiu-a.

Quando lhe deu o beijo de despedida, à porta, disse com expressão brejeira: 
- Talvez sua amiga volte a lhe enviar um Sedex urgente no próximo sábado. 
Despachada, ela provocou com um sorriso malicioso: 
- O carteiro sempre toca duas vezes?

E ele sumiu domingo afora.


Fotos: tmpMaroccan_Castle_6, divulgação


25 março 2018

Frederico Füllgraf - Um copião para Alexander Kluge - notas sobre um desencontro produtivo

Fotos de cima para baixo: Theodor Adorno
com Alexander Kluge (1958); Fritz Lang (anos 1960);
A. Kluge (anos 2000).





                                                                                                  Para Luciana Vilas Boas


Neste momento, ele deverá ter lido a carta que lhe mandei; uma versão ligeiramente personalizada da estória que vou contar, e que começa assim: 


“Lieber Alexander, você não é culpado pelo rumo que minha vida tomou...”

No início da narrativa de “O caminho de Tula”, romance em construção, meu personagem, Hannes, filho de emigrantes europeus, criado no Brasil, relembra sua passagem pela agitada Frankfurt do pós-1968.

Um belo dia pedira licença na distribuidora de livros, seu primeiro emprego naquele território das descobertas, pretextando uma consulta urgente ao dentista. Era uma mentira que encobria sua ansiedade por ver e ouvir, em carne e osso, uma aula do mítico filósofo, Theodor Adorno, cujos livros estavam entre os mais solicitados nas encomendas diárias das livrarias. Contudo, ao baixar do bonde, à entrada da Universidade Johann Wolfgang von Goethe, deparara-se com uma curiosa barreira policial que o impedia de realizar seu sonho. O que acontecia ali? O célebre autor da “Dialética do Esclarecimento” e crítico feroz da moral impostora mandara chamar os homens da lei porque um grupo de moças interrompera seu vôo semanal para esferas do elevado pensamento com um atentado bastante mundano e ardiloso, cujas armas foram alguns pares de peitos nus; nus e belos advertira um dos policiais, mas não concedendo a Hannes o estatuto da dúvida, porque não o deixara cruzar a barreira
.


O atentado


Início de primavera com maus presságios, nem bem iniciara sua “Introdução ao pensamento dialético”, Theodor W. Adorno fora interrompido por um de seus estudantes, que lhe exigia uma “autocrítica”. Autocrítica - eu? – indignara-se o velho professor, marxista da mais fina cepa. Uma resma de panfletos fora lançada aos ares da sala, cujo título decretava: “Adorno está morto!” Tumulto nas galerias! Facção radical do movimento estudantil, o “Grupo de Base da Sociologia” cobrava de Adorno e seu ex-aluno, Jürgen Habermas, que “abraçassem a luta de classes”. Para não deixar barato, um engraçadinho rabiscara no quadro negro um verso rimado: “Enquanto o Adorno, querido, repetir sua eterna mesmice, pro resto da vida teremos capitalismo e burrice!“. E então o atentado carnal: quando algumas moças despiram blusas e sutiãs, exibindo seus bem talhados seios, ameaçando beijar e bombardeando o distinto pensador com uma chuva de flores, o ex-colega de Herbert Marcuse e patrocinador de Walter Benjamin juntara seus livros e agendas, esparramados sobre o púlpito e, protegendo o rosto com sua bolsa de couro, deixara o anfiteatro sob lágrimas.

Poster do SDS: "Todos falam sobre o tempo, nós não!"
(queriam dizer:"falamos na luta de classes")

Este é o relato póstumo de uma das moças que durante trinta e quatro anos mantiveram segredo de suas identidades, até que Hannah Weitemeier, uma delas, hoje respeitável marchand e senhora muito bem casada, admitiu em sua primeira entrevista sobre o incidente, que nem aluna de Adorno era, mas pau mandado do SDS, a federação de estudantes socialistas. Incidente do qual inicialmente se suspeitara, fosse o despertar do feminismo, ele foi execrado como “grande sacanagem com o venerável professor”, até pelas mais aguerridas mentoras do movimento – por acaso os provocadores do tumulto tinham se esquecido que Adorno era descendente de judeus, perseguido pelo nazismo?

No meio da confusão, tudo o que Hannes conseguira distinguir naquela fatídica manhã de 22 de abril de 1969, foram a calva e a pancinha proeminente do incensado pensador, que em entrevista aos meios de comunicação queixava-se da traição de seus estudantes, principalmente aquelas... “amazonas, loiras” – logo ele, o Catilina libertador dos grilhões do capitalismo e da libido reprimida!

E esse foi o primeiro contato esbanjando carnalidade, mas destituído de toda aura acadêmica, de Hannes com a lendária “Escola de Frankfurt”, cujas luzes naquela manhã piscavam como neon profano de um castelinho de striptease, anunciando, debochado, a “dialética do insuspeitado nu”.

O café com Adorno

O que Hannes não poderia imaginar é que, tivesse sido mais persistente, cativando os policiais com um pouco de charme latino, e se aproximado do laureado mestre, teria ganhado aquele dia duas vezes, registrando para a posteridade o insólito encontro com Adorno, e redescobrindo a pista de seu herói, do qual se tinha desgarrado.

Com sua auto-estima em baixa, tudo o que Adorno precisava naqueles momentos era um abraço que lhe brindasse afeto e não a rude luta de classes.  Kommen Sie – venha comigo! Sem pestanejar, o aplaudido professor o teria conduzido até sua sala no Instituto de Pesquisas Sociais, pedido à sua secretária que lhes servisse um café e, dando-se conta que tinha diante de si um admirador, sul-americano e simplório, ali mesmo teria derramado seu desabafo – essa esquerda, de classe média e boquirrota, é um porre, meu jovem! Quer dizer então que o sr. veio à Alemanha para “estudar cinema”? – Adorno o teria acuado na poltrona, mas para já emendar que, fazia uns doze anos, naquela sala entulhada até o teto de livros e manuscritos, fora padrinho de um ritual de iniciação que todo aspirante à sétima arte celebraria como intercessão divina, um delicado mimo dos anjos, porque apresentara seu amigo, Fritz Lang - IMDb – aquele mesmo, o diretor de Metropolis (1927) - IMDb - a um jovem doutorando, chamado Alexander Kluge. Doutorando em Direito, teria então ressaltado Adorno, que não pensava grande coisa do cinema, e por isso recomendara a Kluge que tratasse de construir uma sólida carreira de jurista, com direito a um provento idem. Aquela prosa de pai ou mentor, bem intencionado, que sabe muito bem: quando seu tutelado diz, “jawohl, Herr Professor!”, está mentindo, porque, atravessada a porta, sai à rua para fazer exatamente o contrário. E foi o que Kluge fez: sequer pendurou as chuteiras da jurisprudência, porque jamais chegou a usá-las, nem num escritório de advocacia, quanto mais num tribunal, e jogou-se de corpo e alma na arena do cinema – que os leões o estraçalhassem!

Sem saber que ele tinha mandado às favas o Direito, quinze anos mais tarde eu fiz o mesmo, traindo a família e chutando para o alto a carreira de geólogo. Com uma ligeira diferença: a frase imaginária arremessada ao universo por Kluge, assim, de bobeira, teve efeito demolidor; mas com a disciplina como causa, que eu não tive. Nela é possível enxergar uma dupla de trocadilhos. O primeiro emprego de Kluge foi como assistente de Fritz Lang, que em 1958 retornava à Alemanha após vinte e cinco anos de exílio, para filmar “O tigre de Eshnapur” e “O sepulcro indiano”. Contrariando todas as expectativas, o tigre dos estúdios em Berlim não o estraçalhara, mas lhe infundira imenso “tédio”, Kluge confessaria anos mais tarde; talvez porque Lang já fosse um tigre desdentado, sem a garra dos tempos da gloriosa UFA. O segundo trocadilho ocorre com a volta do leão à carreira do cineasta, que não era o leão da Metro e, sim, de Veneza, em cujos festivais Kluge tornara-se o matador, amansando várias estatuetas do felino, de prata e de ouro, com as quais, ao final dos anos 1970 sua carreira estava consolidada.

As camas art-déco


Contudo, nesta flexão da espiral de causos narrados com grande noção de responsabilidade cabe perguntar qual era, afinal, a missão de Hannes? Como ensaio de resposta, permito-me alertar minha querida editora, mulher a quem devo um balaio de oportunidades, a um incidente de percurso: feito Leopold Bloom tupiniquim durante sua labiríntica odisséia por Frankfurt, o personagem Hannes se esquece de perseguir Alexander Kluge, a cujos rastros se aferrara desde que, na Curitiba do final dos anos 1960, assistira aquele filme emblemático, “Despedida de ontem” (Yesterday Girl, 1967), protagonizado por Alexandra Kluge, irmã e xará do diretor, dublê de médica e atriz de ocasião, com aquela expressão de beleza desolada em seu rosto.




Alexandra Kluge

Diz Hannes que se esquecera de Kluge porque, cheio de curiosidade e dispersivo, fora abduzido para suas primeiras lições na arte da contemplação do belo, fora das telas: mulheres bonitas, porém assaz determinadas, cuja cartilha embruxada rezava que fazia mal à alma feminina dormir duas vezes com o mesmo homem. Sem dar-se conta Hannes deambulara por Frankfurt como personagem de um lerdo e brumoso sonho de noite de verão, sempre abandonando o Club Voltaire de madrugada como pupilo de um muito peculiar e solitário curso de iniciação artística, que consistia em decifrar os estilos de época das camas das suas amantes – jugendstil, art-déco, tatamis, colchões plebeus estirados no chão - quando estas desfaleciam nuas ao seu lado após se embebedarem com a Taça de Circe. Aquilo o confundira pra valer, mas era o Zeitgeist de suas educadoras.
Então, o inevitável conflito, não com as donas das camas, mas entre o personagem e seu autor: Hannes queria estender-se na descrição de sua luxúria, inventando pretextos que o redimissem do fracasso de sua missão já estabelecida no Brasil - encontrar Alexander Kluge a qualquer preço. Tudo muito constrangedor! Por isso interferi quando, subitamente, dei-me conta de que o relacionamento com Kluge e sua arte, antes de nada mais, pertencem a mim: até segunda ordem suspendi as inferências frívolas do personagem, e matutei se meu herói desrespeitado por Hannes não mereceria um livro à parte – eis a elipse com segundas intenções cochichada, quase inaudível, para minha querida editora (aqui advertida para a publicação, pela concorrência que não dorme em serviço, de “O quinto ato”, de Kluge).

Mas a crônica ainda não faz sentido – o que esses causos, todos, têm a ver com o título? O que eu precisava ter esclarecido é que a estória dentro desta estória começa em um final de tarde friorento, em Curitiba, quando Christo Dickoff me levou até a Cinematográfica Guaíra, ao pé de cujas salas localizadas num pavimento elevado de um sobradão, antigo, se descortinava a Praça Tiradentes, em sua babélica quadratura.

Mauro Alice



Eu trazia nas mãos um punhado de cartazes do Jovem Cinema Alemão que me tinham sido confiados pelo diretor do Instituto Goethe para divulgar uma mostra. Em nossos corações e mentes de cinéfilos, Godard, Truffaut e Resnais eram nomes e endereços devidamente assimilados como ícones da Nouvelle Vague. Mas Junger deutscher Film – o que era aquilo? Lembro-me do espanto ao soletrarmos nomes tão infreqüentes como Volker Schlöndorff, Jean-Marie Straub e um tal Alexander Kluge. E estudando-os com olhos lampejantes, Mauro Alice, aquele senhor elegante e montador da Vera Cruz, em férias na sua Curitiba natal, decolara para uma viagem na memória, pontificando sobre o Expressionismo Alemão, Fritz Langs e Caligaris, tudo para mim tão fantástico e intangível, que meus olhos não queriam desgrudar dos lábios do italiano.

Mauro não vacilou um instante: com uma velha Arriflex, 35 mm, montada sobre um tripé, desafiou-me para dividir com ele a “direção”. Na verdade, mero ensaio de “natureza morta”, umas pinceladas da câmera sobre uma superfície de papel, sem cenário vivo, ou atores para orientar - e estavam filmados os cartazes dos filmes alemães. Aquele fora um ato batismal: minha iniciação técnica no cinema. O que era um “close”, um “tilt”, um “contra-plongée”, um “travelling” foram noções que a partir daquela tarde reforcei com a leitura de um livrinho de “primeiros passos”, de Maurício Rittner, que eu teimava em decodificar a bordo do ônibus sacolejante, rumo à escola. Sim, eu não passava de um garoto.


Freqüentador assíduo dos “filmes de arte” do Colégio Santa Maria, o Cinema definitivamente me seduzira como promissão, embora em casa todos apostassem em meu futuro como geólogo da Petrobras. Por um fio fui desviado do chamamento, não fosse o movimento estudantil e a decisão do meu pai, assustado com a UNE, de me “tirar de circulação”. E embarcado num cargueiro de minérios, no porto de Vitória, fui circular na margem boreal do Atlântico.


A lata de negativo


Na bagagem eu trazia um talismã: o copião com os poucos metros de película 35 mm, que estampavam aqueles cartazes generosamente filmados e revelados por Mauro Alice. Deslumbrado por dois de seus filmes – “Despedida de ontem” e “Os artistas na cúpula do circo: perplexos” - eu me obstinara que algum dia presentearia aquela lata a Alexander Kluge como prova de minha devoção, mas também com a segunda intenção de cavar uma vaga em sua equipe de produção.


No fundo, quero dizer, na esfera do subconsciente, essa intenção era um pouco mais torta: eu precisava de um mestre, mas não tivera um pai presente; possivelmente estava à procura dos dois em um só.


Uma bela noite, em Kassel, fui ao cinema, e na sala de espera deparei-me com o cartaz de “Os artistas na cúpula do circo...” – aquilo seria uma piada? Como quem não quer nada me aproximei do gerente que afixava cartazes das próximas estréias e, comendo pelas bordas, perguntei se ele sabia onde morava o Kluge. E me lembro perfeitamente que não conseguia fechar minha boca quando o gerente disse, “olha, é fácil encontrá-lo, porque ele mora aqui, em Kassel!”. Ao despedir-me, dei meia volta e perguntei se ele tinha de sobra aquele pôster de “Os artistas...”. Mas claro, respondeu aquele homem gentil, e o presenteou-me.


Meu coração batia forte: o espectro do meu guru parecia ganhar corpo – seria o magnetismo da latinha de 35 mm? Invadido por uma alegria nunca antes sentida, jubilosa e devastadora, já me percebia estendendo cabos elétricos na próxima filmagem d “o cara”, mestre sonhado, mas intangível. Contudo, o sonho que na ante-sala do cinema prometera materializar-se foi bruscamente interrompido dias depois por minha mudança para Frankfurt. E nunca mais vi Alexander Kluge. Que não morava mais, ou jamais morara em Kassel, e que por ironia filmava um filme atrás do outro - em Frankfurt! Nosso encontro nunca aconteceu. Não em Frankfurt. Ocorreu por acaso, oito anos mais tarde, num pequeno cinema de Berlim, onde fui assistir ao lançamento de “A Patriota” (1978).


Terminada a projeção do filme e acendidas as luzes, havia uns setenta, talvez oitenta espectadores na platéia. E lá estava Kluge, à frente da tela, vestindo seu indefectível terno escuro, sempre de elegante corte, mas sem a gravata, com a qual dirigira seus primeiros filmes. Acho que com o passar dos anos passara a detestá-la, e então disse, rindo: “Bem vindos ao meu cineminha privado!” Queria dizer: eu faço mesmo filmes para meu clube do bolinha – um surto de falsa modéstia, porque a maioria de seus filmes, ou foram aplaudidos em cena aberta, ou ovacionados em pé pelo público em festivais internacionais.


O que é, e como narrar a História?


Em “A Patriota”, a ingênua, mas determinada professora de história, Gabi Teichert, investiga as raízes da História alemã. Alta madrugada, uma pá na mão, ela é flagrada pelo porteiro ao cavar buracos no jardim de seu prédio. Alertada ao estrago que está fazendo ela responde com a maior cara dura que “é preciso cavar fundo para descobrir a verdade histórica“. Obviamente, diante de tal disparate o porteiro entende que tem diante de si uma doida varrida, mas trinta anos depois, aquela metáfora e a imagem insólita diante da câmera continuam impregnadas em minha memória.




Na última cena do curta-metragem, “Amor cego” (2001), no qual Kluge entrevista Jean Luc Godard, após a estréia de seu longa, “Ode ao amor” (2001), o diretor suíço-francês diz: “A história jamais foi bem reproduzida pelo cinema, apenas de modo espetacular. Para isso, o cinema teria de ter se tornado adulto e ter se tornado maior, e agora está muito tarde, agora acabou”. Essa crença de Godard é romântica, e por incorporar excesso de páthos é falsa.

Com o passar dos anos, percebi que as personagens, Gabi Teichert e Leni

Peickert, que povoam alguns filmes do diretor nas décadas de 1980 e 1990, eram na verdade alter-egos do próprio Kluge. Este concebe a História real como vasta coletânea de estórias dispersas, e adaptou para sua técnica narrativa o modelo exitoso dos Irmãos Grimm, autores da frase emblemática, “mergulhamos na História alemã e descobrimos um monte de contos de fada”. Por isso os filmes de Alexander Kluge são colchas de retalho extravagantes, que se alimentam de cenas ficcionais, reportagens, figurinhas de gibi, fotos, recortes de jornal, cinejornais históricos, entrevistas e textos; recursos para ativar a própria capacidade do espectador em estabelecer nexos entre imagens vastamente disparatadas.


O resultado da aplicação dessa técnica está sintetizado numa frase do diretor no quinto capítulo de seu livro making-of sobre a produção do filme, “O Capital”, onde resume sua proposta bem-sucedida para uma “renovação radical do cinema”. Diz Kluge: “O cinema antigo rodava uma trama a partir de vários pontos de vista. O novo cinema, em oposição, monta um ponto de vista a partir de várias tramas”. Essa concepção remete a Sergei Eisenstein, que cunhou o conceito de “montagem de atrações”, segundo Kluge, “o grande circo - é isso o que o cinema sabe fazer”.


Quinze anos após sua estréia no cinema com filmes de narrativa convencional, ali Kluge iniciava seu projeto da gradual desconstrução do discurso cinematográfico antigo com a firme intenção de re-educar parcelas do público cinéfilo, mas sem a petulância que adere ao verbo, o que fez com muita criatividade e bom humor. Digamos que ali Kluge estreava sua cruzada estética contra a síndrome da cegueira diagnosticada vinte anos mais tarde por José Saramago em seu romance, com uma furiosa metáfora noir.  Para acirrar ainda mais essa metáfora percebida por artistas e gêneros tão dissimiles, mundo afora, em “O ataque do presente contra o resto do tempo” (1985), Alexander Kluge nos conta a estória de um diretor de cinema, cego, que durante uma filmagem obstinada roda seu mais belo filme. “O presente se enfatua. Mas sem a história pregressa e o futuro, sobretudo sob forma de oportunidade, não existe realidade – este é o ataque do presente contra o resto do tempo”, adverte Kluge na sinopse.


Spanner, o espião voyeur

Uma das estorinhas de “A Patriota” é a do personagem hilário, “Spanner” (“o tenso”), agente dos serviços de inteligência infiltrado nas multidões para espionar “atos potencialmente subversivos”. Ocorre que, à noite, Spanner atua como voyeur, bisbilhotando janelas de apartamentos à procura de mulheres nuas. Tranquila, ao invés de condenar suas práticas perversas, a heroína Gabi Teichert empresta seus ouvidos às confissões do dedo-duro. Ele lhe conta que seu grande problema é sua incapacidade de relaxar, descontrair-se. E, exatamente porque não conseguia relaxar, infelizmente, não conseguia extrair prazer do voyeurismo enquanto observava mulheres com a mesma tensão adotada durante suas missões policiais.


Hannelore Hoger em A Patriota

Qual é a graça desse personagem? Numa leitura alegórica, “tenso” é o apelido de todos nós, espectadores de cinema, que não conseguimos relaxar diante da tela e permitindo que aluviões de imagens e sons arrebentem sobre nossos sentidos, anestesiando-os. Por isso, a perspicaz Gabi Teichert sugere ao agente, dublê de voyeur, um sutil exercício de relaxamento, que consiste em certo número de piscadelas, de pestanejos, ora breves, ora mais demorados – exercício que corresponde exatamente ao processo de montagem de Kluge, quando insere espaços em preto e branco entre as cenas coloridas de um filme, por átimos rompendo a continuidade e, com a rápida brecha criada, convida o espectador para ali enxertar sua própria imaginação, que pode ser outra imagem, ou a retomada do roteiro por outras calendas.

”Somos nossa memória, esse quimérico museu de formas inconstantes, esse montão de espelhos rotos”, dizia Montaigne.

Garrafas ao mar


Não me lembro exatamente sobre o que Kluge e eu conversamos após aquela projeção. Recordo obviamente de seus modos educados, da “técnica socrática” de perguntar, curiosa e atenta ao que seu interlocutor tem para lhe contar, com personalidade aberta a tudo, ao mesmo tempo humilde e comedido, com intervenções sempre terminadas com seu imperecível “ja?” – um “não é?”, respeitoso, que pede licença para a aceitação de suas opiniões.


Estas são minhas recordações daquele encontro, mas na boca um desagradável sabor a culpa e um buraco negro em meu coração – onde estava a maldita lata com o copião, que eu não conseguira mais encontrar?


Mas então aquele telefonema - ninguém vai acreditar!


Era um sábado pela manhã, acho que foi em 2005. Alexander Kluge ligou para meu celular enquanto eu flanava pela feira do Alto da Glória, em Curitiba, o nariz enfiado, ora no meio de couves-flores, ora em pastas de berinjela... Ninguém vai acreditar, mas minha namorada de então foi minha incorruptível testemunha – Kluge ligou, sim. Ligou para lamentar que não poderia colocar no ar um filme de minha autoria (se bem recordo, era sobre a morte do marinheiro, Wilmer, nos Andes), porque, por meses, seu programa estava tomado por discussões sobre óperas, no qual o debochado e terno Heiner Müller foi um de seus entrevistados. Explicando: naqueles dias, Kluge era dono de seu muito particular canal de televisão, Dctp, sediado em Düsseldorf, de onde, como dizia, “envio mensagens em garrafas”. Frase que novamente evocou o paradeiro da lata com o copião...


À moda dos produtores tupiniquins, petulantes e soberbos, Kluge poderia sobejamente ter ignorado minha oferta, mas ligou-me num sábado pela manhã, e para o celular – não apenas o grande iluminista, mas um doce de pessoa!