21 janeiro 2012

Silvia Beatriz Adoue * - A Escrita com o Corpo, ou a última metáfora de Rodolfo Walsh

 Foto Rodolfo Walsh, esposa, Lilia Ferreyra: domínio público


(Texto gentilmente cedido pela autora)

Su muerte sí, su muerte fue gloriosamente suya, y en ese orgullo me afirmo y soy quien renace de ella. [2]
Rodolfo Walsh
No es un arma guardada que rememora los disparos, sino un hacer violento, en los cuales la escritura agrede la molicie y espanta los oropeles Daniel Camels
Su cadáver estaba lleno de mundo. [4]
César Vallejo.




Na quinta-feira 24 de março de 1977, a um ano do golpe militar, Rodolfo Walsh passa a limpo a Carta abierta de um escritor a la Junta Militar (in: LINK, 1998) e um conto sobre um homem, Juan, que atravessa o Rio da Prata, excepcionalmente seco, a cavalo, enquanto o rio volta a crescer [5] .
Walsh não publicava ficção desde 1967, quando apareceu Un oscuro día de justicia [6] (1993), o último da série dos irlandeses, que ele pretendia continuar [7] . Mas o conto que agora tem entre mãos, Juan se iba por el río, havia sido pensado em 1967 como o primeiro capítulo de um romance, a “novela séria”, que queria escrever e que ele chamava de “novela geológica”, elaborada por camadas.
El primero de sus temas recoge una tradición oral que los prácticos y baqueanos del Río de la Plata transmiten de padres a hijos: es la historia de un hombre que, a fines del siglo XIX, consiguió atravesar el río a caballo, durante una bajante prodigiosa. [8] (in: LAFFORGUE, 2000: p. 50.)
Nessa retomada da ficção escolhe uma trama das muitas que vinha ruminando por anos, uma história de cavalos e de água. Seu pai, ele contou numa nota autobiográfica, falava com os cavalos, tinha sido morto por um, que o esmagou ao cair após enfiar a pata num buraco. Havia deixado outro cavalo para a família, chamado Mar Negro, que Walsh mesmo levou numa longa viagem para a terra de um parente que poderia ficar com ele (in: LAFFORGUE, 2000: p. 241 et FERREIRA, 1985).
Assina a Carta abierta de un escritor a la Junta Militar com seu nome, sobrenome e número de documento de identidade. Faz muito tempo que não publica seus escritos assinados. Desde que se enquadrou na organização Montoneros, e ainda antes, quando militava no jornalismo da resistência, sua assinatura sumia, indicando ora que o texto era resultado de uma elaboração coletiva, ora que era assumido pelo coletivo da organização. Mas em 1977, e depois da sua polêmica com a direção de Montoneros, começa a escrever o que ele chama de “cartas pessoais”, que circulam entre poucas pessoas e que ele assina. A polêmica de Walsh aponta para o sectarismo e o militarismo da organização, que vem se afastando da população que pretende dirigir. Propõe um “retorno” às massas, desmontando os vínculos de aparato e reconstruindo a confiança a partir de uma relação mais estreita com os não militantes. (in: BASCHETTI, 1994)
Chega a escrever três “cartas pessoais”: Carta a Vicky (in: BASCHETTI, 1994), Carta a mis amigos, (in: LAFFORGUE, 2000) e Carta de un escritor a la Junta Militar. Na que inicia a série, ele expõe seus sentimentos ao ser informado, pelo rádio, da morte da sua filha, também militante montonera. O assunto é a própria dor, que não pode ser contada senão recorrendo a voz de um desconhecido passageiro de trem suburbano, ouvida de relance. A dor, então, pode ser formulada e compartilhada. A segunda, é o relato da morte de Vicky reconstruído por Walsh a partir do testemunho de um soldado que participou do cerco à casa onde ela se encontrava. Na terceira, faz uma análise minuciosa da destruição do país operada pela Junta Militar, a um ano do golpe. A assinatura indica o compromisso pessoal e o texto convoca o leitor a divulgar a carta: tenga la satisfacción de un acto de libertad[9] Assim retoma a proposta da sua polêmica com a direção de Montoneros, ao retornar à relação corpo-a-corpo, olho-no-olho, que tinha sido substituída pela hierarquia e pela concepção militarista que reduz a ação política a um automatismo. Walsh a transforma num ato de liberdade, não de um herói, mas de um homem ou de uma mulher que se atrevem a contradizer aquilo que os poderosos impõem. O que supõe uma decisão pessoal, carregada de subjetividade, que se aproxima a outras decisões pessoais e a outras subjetividades. Vozes que ele recolhe do quotidiano, do indivíduo que se achega a apresentar um testemunho.
Está morando desde o ano anterior numa casa em San Vicente, um subúrbio do grande Buenos Aires, com a sua companheira. Comprou a casa com a identidade de um professor de inglês aposentado. Fez uma horta, plantou alfaces. Na sexta-feira, 25 de março, disfarçado de aposentado, com chapéu de palha, botas e carregando uma pasta de plástico onde leva alguns exemplares da Carta... que acaba de escrever, dirige-se à estação de trem. Na bota, um revólver de pequeno calibre.
Walsh veste o disfarce do homem que alguma vez foi. Afinal, não podemos nos disfarçar senão daquilo que, de alguma maneira, também somos. Ele assume a aparência daquele que foi mais de vinte anos atrás, quando suas opiniões políticas não se traduziam em ação. Um homem que cuidava da sua casa e se interessava pelo xadrez e a literatura policial, um tradutor e editor de relatos de suspense. Em 1956, a voz de um soldado que havia se entrincheirado junto à janela da sua casa o tirou da rotina dessa vida tranqüila. O soldado, a quem o azar havia colocado do lado das tropas leais ao governo militar que tinha derrubado Perón, foi atingido por uma bala. Sentindo-se abandonado pelos colegas e agonizando, sussurrou como para si mesmo: No me dejen solo, hijos de puta [10] . A voz do soldado surpreendeu Walsh. Ele pensava que um soldado “costuma” morrer dizendo¡Viva la Patria! [11] , como os livros contam que morrem os soldados, mas o soldado não se sentia morrendo pela pátria, não tinha identidade espiritual com a causa que defendia com o corpoO incômodo que lhe produziu aquela frase destoante levou Walsh a indagar, enquanto jornalista, pela sorte dos que morreram durante o levantamento. Para isso, teve de trocar de nome, abandonar a casa familiar, a rotina do trabalho e o xadrez com os amigos do bar. A voz do soldado o lançou para além dessa vida tranqüila, cada descobrimento o levava a um compromisso mais profundo. Num princípio, um compromisso pessoal na defesa da verdade que obtinha das testemunhas das injustiças, mas, depois, um compromisso militante para com todos os humilhados e ofendidos. Nisso consistiu para o autor escrever Operación Masacre (2000b), relato dos assassinatos de ‘56: um compromisso que parte da sua própria ação literária, o de recolher a voz desses humilhados e ofendidos. Não falar no seu nome, em representação, mas dar curso a sua enunciação. Assim inaugurou um registro estético e uma maneira de fazer jornalismo.
Modificou sua condição de escritor e sua escrita. Como escreve Walter Benjamin:
Agora, é claro que as opiniões importam muito, mas a melhor opinião nada aporta se não faz algo de útil com aqueles que a sustentam. A melhor tendência é falsa se antes não mostra a atitude a ser seguida. E essa atitude, o escritor apenas pode mostrá-la onde ele demonstra alguma coisa, ou seja escrevendo. (in: BACCEGA, 1998: p. 45)
Em 1965, publicou Esa mujer (in: WALSH, 2000a). Nesse conto, narrado em primeira pessoa, um intelectual visita um militar. O militar sabe onde se encontra o cadáver de Eva Perón, seqüestrado pelas Forças Armadas. O intelectual quer o cadáver. É a forma que ele encontra de ir ao povo, se unir à sua indignação e não mais estar sozinho.
Algún día (pienso en momentos de ira) iré a buscarla. Ella no significa nada para mí, y sin embargo iré tras el misterio de su muerte, detrás de sus restos que se pudren lentamente en algún remoto cementerio. Si la encuentro, frescas altas olas de cólera, miedo y frustrado amor se alzarán, poderosas vengativas olas, y por un momento ya no me sentiré solo, ya no me sentiré como una arrastrada, amarga, olvidada sombra [12] (in: WALSH, 2000a)
O cadáver escamoteado é metáfora da verdade. Um corpo no lugar de uma escrita. Mas o corpo também escreve. O conto é relato de um acontecimento real, ao qual a escrita lhe dá sentido. Walsh esteve mesmo na casa do militar e negociou com ele. Mas é no conto onde ele estabelece as suas lealdades e explica seus motivos: escrita sobre escrita, ação e registro, quando o registro também é ação e a ação se articula como uma escrita, suporte que é de metáforas poderosas.
Mas isso foi há muito tempo. Já estamos no caminho para a estação e Walsh encontra com o dono da imobiliária que lhe vendeu a casa, quem lhe entrega a escritura. Ele a guarda na pasta de plástico. Não dá tempo para retornar e deixar os papéis na sua casa, os horários não lhe permitem esse luxo.
Walsh e sua mulher pegam o trem e descem na estação Constitución, na capital. Ali despedem-se: ele tem um encontro. O encontro está “envenenado”. Um companheiro o entregou na mesa de tortura. O escritor caminha pela rua San Juan, em direção a Entre Rios. Em Sarandí, um grupo de policiais e marinhos o emboscam. Walsh responde ao fogo com o revólver calibre 22 que guarda na sua bota. O pequeno calibre da sua arma não é páreo para o armamento dos marinhos e policiais, mas serve para alguma coisa: está decidido a não se deixar prender vivo. Como fez sua filha, em setembro do ano anterior, escolhe não se entregar.
Antes poderia ter saído do país, o que não teria sido desonroso. Mas preferiu permanecer e trabalhar na ANCLA, a Agência de Notícias Clandestina, desde onde fazia, junto com sua equipe, tarefas de informação e contrainformação. E na Cadena de Notícias, rede de circulação de notícias de caráter horizontal. Prefere escrever as “cartas pessoais” e retomar a ficção com Juan se iba por el río. O seu jeito de ir pelo rio é o de se internar mais e mais no território do seu país, como tinha feito com seu pai, na sua infância, atravessando a cavalo as lacunas do Sul da província de Buenos Aires (FERREIRA, 1985).
Talvez já nem esteja enxergando direito, continua atirando até que acabam as balas. E talvez pense nas cartas ou tenha lembrado dos papéis da casa que carrega na pasta. Também é possível que lembre de Vicky nessa hora. Mas também é provável que esteja pensando num último galope desatado, pelo leito de um rio subitamente convertido numa pampa sem limites.
Depois, é visto mal ferido por prisioneiros na Escuela de Mecánica da Armada, junto a uma grande quantidade de papéis roubados da sua casa de San Vicente, cujo endereço é descoberto pelos papéis da imobiliária que leva na sua pasta. Somem com seu corpo e com os seus escritos inéditos. Ambos perigosos, ambos juntos, indissoluvelmente unidos, para sempre.


[1] Este trabalho é subproduto de um estudo mais extenso, em andamento, sobre Rodolfo Walsh: RODOLFO WALSH, el criptógrafo –Literatura y realidad.
[2] Tradução da autora do artigo: Sua morte sim, sua morte foi gloriosamente sua, seguro-me nesse orgulho e sou quem renace dela. Walsh refere-se ao sentido da morte da sua filha, após relata-la aos seus amigos (Carta a mis amigos in: BASCHETTI,  1994: p. 191).
[3] Tradução da autora do artigo: Não é uma arma guardada que lembra os tiros, mas um fazer violento, nos quais a escrita agride a molície e espanta os enfeites. (CAMELS, 2001).
[4] Tradução da autora do artigo: Seu cadáver estava cheio de mundo.
[5] O original e único exemplar deste conto permanece seqüestrado pelos militares que vasculharam a sua casa em San Vicente em 25 de março de 1977.
[6] O publicou na revista Adán, uma revista “masculina”, entre fotos e matérias mais ou menos eróticas.
[7] Em entrevista a Piglia, em 1967, fala sobre as suas idéias para continuar a série (in: PIGLIA, 1993).
[8] Tradução da autora do artigo: O primeiro dos seus temas recolhe a tradição oral que os práticos e conhecedores do Rio de la Plata transmitem de pai para filho: é a história de um homem que, no final do século XIX, conseguiu atravessar o rio a cavalo durante uma grande decida do nível da água.
[9] Tradução da autora do artigo: tenha a satisfação de um ato de liberdade.
[10] Tradução da autora do artigo: Não me deixem sozinho, filhos da puta.
[11] Tradução da autora do artigo: Viva a Pátria!
[12] Tradução da autora do artigo: Algum dia (penso em momentos de ira) irei procurar-la. Ela nada significa para mim,porém irei atrás do mistério da sua morte, atrás dos seus restos que apodrecem lentamente nalgum remoto cemitério. Se a encontrar, frescas altas ondas de cólera, medo e frustrado amor levantarão-se, poderosas vingativas ondas, e por um momento já não me sentirei só, já não me sentirei como uma arrastada, amargurada, esquecida sombra.


Silvia Beatriz Adoue, é pedagoga, historiadora e ensaista argentina, há 30 anos radicada no Brasil. Foi metalúrgica, gráfica e professora primária em Grand Bourg (Provincia de Buenos Aires). Licenciada em Matemática pela USP, fez Mestrado em Integração da América Latina no PROLAM/USP e doutorou-se em Letras pela FFLCH/USP com a Tese, “Rodolfo Walsh, o criptógrafo-relações entre escrita e ação política na obra de Rodolfo Walsh”. Leciona na Escola Nacional Florestan Fernandes do MST.

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