29 dezembro 2011

Pablo Neruda - Ode à tipografia


Ilustrações: divulgação



Tradução: F. Füllgraf




Letras amplas, severas,
verticais,
feitas
de linha pura,
erguidas
como o mastro
do navio
no meio
da página
cheia
de confusão e turbulência,
Bodonis
algébricos,
letras
cabais,
finas
como lebréis,
submetidas
ao retângulo branco
da geometria,
vogais
elzevires
cunhadas
no miúdo aço
da oficina junto à água,
em Flandres, no norte
traçado por canais,
cifras
da âncora
caracteres de Aldus,
firmes como
a estatura
marinha
de Veneza
em cujas águas-mães
como vela
inclinada,
navega a cursiva
curvando o alfabeto:
o ar
dos descobridores
oceânicos
agachou
para sempre o perfil da escritura.
Desde
as mãos medievais
avançou até teus olhos
este
N
este 8
duplo
este
J
este
R
de rei e de rocio.
Ali
se lavraram
como se fossem
dentes, unhas,
metálicos martelos
do idioma.
Golpearam cada letra,
erigiram-na
pequena estátua negra
na alvura,
pétala
do pensamento que tomava forma
do caudaloso rio
e que ao mar dos povos navegava
com todo
o alfabeto
iluminando
a desembocadura.
O coração, os olhos
dos homens
se encheram de letras,
de mensagens,
de palavras,
e o vento passageiro
ou permanente
levantou livros
loucos
ou sagrados.
Debaixo
das novas pirâmides escritas
a letra
estava viva,
o alfabeto ardendo,
as vogais,
as consoantes como
flores curvas.
Os olhos
do papel, os que miraram
nos homens
buscando
seus presentes, 
sua história, seus amores,
estendendo
o tesouro
acumulado,
espargindo prontamente
a lentidão da sabedoria
sobre a mesa
como um baralho,
todo
o húmus
secreto
dos séculos
o canto, a memória,
a revolta,
a parábola cega,
pronto
foram
fecundidade,
celeiro,
letras,
letras
que caminharam
e se acenderam
letras
que navegaram
e venceram,
letras
que despertaram
e subiram,
letras
que libertaram,
letras
em forma de pomba
que voaram,
letras
vermelhas sobre a neve,
pontuações,
caminhos,
edifícios
de letras
e Villon e Bercéo,
trovadores
da memória
apenas
escrita sobre o couro
e também sobre o tambor
da batalha,
chegaram
à espaçosa nave
dos livros,
à tipografia
navegante.




Mas
a letra
não foi só beleza, 
e sim, vida,
foi paz para o soldado,
baixou às soledades
da mina
e o mineiro
leu
o panfleto duro
e clandestino,
ocultou-o nos recônditos
do segredo
coração
e acima
sobre a terra,
foi outro
e outra
foi sua palavra.
A letra
foi a mãe
das novas bandeiras,
as letras
procriaram,
as estrelas
terrestres
e o canto, o hino ardente
que reúne
aos povos
de
uma
letra
agregada
a outra
letra
e a outra
de povo em povo foi sobrelevando
sua autoridade sonora
e cresceu na garganta dos homens
até impor a claridade do canto.


Mas
tipografia,
deixe-me
celebrar-te
na pureza
de teus
puros perfis,
na redoma
da letra
O,
no viçoso
alguidar
do
Y,
no
Q
de Quevedo
(como poderia passar
minha poesia
em frente dessa letra
sem sentir o antigo arrepio
do sábio moribundo?),
à açucena
multi
multiplicada
do
V
de vitória,
no
E
escalonado
para subir ao céu,
no
Z
com seu rosto de raio,
no P
alaranjado.


Amor,
amo
as letras
de teu cabelo,
o
U
de teu olhar,
os
S
de tuas curvas.




Nas folhas
da jovem primavera
refulge o alfabeto
diamantino,
as esmeraldas
escrevem teu nome
com iniciais frescas do rocio.


Meu amor,
tua cabeleira profunda
como selva ou dicionário
me cobre
com sua totalidade
de idioma
vermelho.
Em tudo,
no estalão
do verme
se lê,
na rosa se lê,
as raízes
estão cheias de letras
retorcidas
pela umidade do bosque
e no céu
de Isla Negra, à noite,
leio,
leio
no firmamento frio
da costa,
intenso,
diáfano de formosura,
despregado,
com estrelas capitais
e minúsculas
e exclamações
de diamante gelado,
leio, leio
na noite do Chile
austral, perdido
nas celestes solitudes
do firmamento,
como em um livro
leio
todas
as aventuras
e na erva
leio,
leio
a verde, a arenosa
tipografia
da terra agreste,
leio
os navios, os rostos
e as mãos,
leio
em teu coração
onde
vivem
entrelaçados
a inicial
provinciana
de teu nome
e
o arrecife
de meus sobrenomes.


Leio
tua fronte,
leio
teu cabelo
e no jasmim
as letras
escondidas
elevam
a incessante
primavera
até que eu decifro
a enterrada
pontuação
da papoula
e a letra
escarlate
do estio:
são as exatas flores do meu canto.


Contudo
quando
desfralda
seus rosais
a escritura,
a letra
sua essencial
jardinaria,
quando lês
as velhas e as novas
palavras, as verdades
e as explorações,
te peço
um pensamento
para quem as ordena
e as levanta,
para o que separa
o tipo,
para o linotipista
com sua lâmpada
como um piloto
sobre
as ondas da linguagem
ordenando
os ventos na espuma,
a sombra e as estrelas
no livro:
o homem
e o aço
uma vez mais reunidos
contra as asas noturnas
do mistério,
navegando,
hora dando,
compondo.


Tipografia,
sou
apenas um poeta
e és
o florido
jogo da razão,
o movimento
do cerzir
da inteligência.
Não descansas
de noite
nem no inverno
circulas
nas veias
de nossa anatomia
e se dormes
voando
durante
alguma noite ou greve
ou fadiga ou ruptura
de linotipia
baixas de novo ao livro
ou ao jornal
como nuvem
de pássaros ao ninho.
Regressas
ao sistema
à ordem
inapelável
da inteligência.


Letras
continuai caindo
como precisa chuva
em meu caminho.
Letras de tudo
o que vive
e morre,
letras de luz, de lua,
de silêncio,
de água,
amo-vos,
e em vós
recolho
não apenas pensamento
e o combate,
mas também vossos vestidos,
sentidos
e sonoridades:
A

de gloriosa aveia,
T
de trigo y de torre
e
M
como teu nome
de maçã.





Ilustração: Obvious_mag

Frederico Füllgraf - Goethe e as folhas da Ginkgo




O poema “Gingo biloba”, escrito em 1815, foi publicado por Johann Wolfgang von Goethe 
(1749-1832) em sua antologia, 'West-östlicher Divan' (livro Suleika), de 1819, no qual dialoga com o “Divã” do poeta persa, Háfiz. Como fonte de inspiração, serviu-lhe a folha de uma Ginkgo que crescia em Heidelberg, cidade próxima de Frankfurt.

Contemplando a folha bi-lobular da Ginkgo, Goethe a associou à imagem das almas gêmeas, por assim dizer inseparáveis, e dedicou os versos a Marianne von Willemer, uma antiga namorada.

Goethe enviara uma folha de Ginkgo para Marianne, e em 15 de setembro de 1815, no local chamado Gerbermühle, em Frankfurt, fez uma récita do esboço do poema que segue, para Marianne e alguns amigos.

No dia 23 de setembro de 1815, num rapto de romantismo, mostrou a Marianne a Ginkgo que ostentava sua beleza nos jardins do Castelo de Heidelberg. Foi quando se viram pela última vez.


Depois, Goethe finalizou o poema e em 27 de setembro de 1815,enviou-a Marianne  – e caiu no mundo...




Dieses Baums Blatt, der von Osten
Meinem Garten anvertraut,
Gibt geheimen Sinn zu kosten,
Wie's den Wissenden erbaut.

Ist es ein lebendig Wesen,
Das sich in sich selbst getrennt?
Sind es zwei, die sich erlesen,
Dasz man sie als Eines kennt?

Solche Frage zu erwidern,
Fand ich wohl den rechten Sinn:
Fühlst du nicht an meinen Liedern,
Dasz ich Eins und doppelt bin?

Português

(trad. Frederico Füllgraf)


Esta folha da árvore que o Oriente 
ao meu jardim resolveu confiar 
com arcanos sentidos desafia a mente
que ao sábio apraz desvendar.

Será um único ser vivente

que a si mesmo em dois apartou?
Ou será um casal que se juntou
E se vê como um só, como diz a gente? 


E tentando desvendar a misteriosa ciência
Ocorreu-me oportuna confidência:
Se em meus cantos não tens percebido 
Que sou um só, mas também em dois partido?


English


This leaf from a tree in the East,
Has been given to my garden.
It reveals a certain secret,
Which pleases me and thoughtful people.

Does it represent One living creature
Which has divided itself?
Or are these Two, which have decided,
That they should be as One?

To reply to such a Question,
I found the right answer:
Do you notice in my songs and verses
That I am One and Two?

Español


Las hojas de este árbol, que del Oriente
a mi jardín venido, lo adorna ahora,
un arcano sentido tienen, que al sabio
de reflexión le brindan materia obvia.

¿Será este árbol extraño algún ser vivo
que un día en dos mitades se dividiera?
¿O dos seres que tanto se comprendieron,
que fundirse en un solo ser decidieran?

La clave de este enigma tan inquietante
Yo dentro de mí mismo creo haberla hallado:
¿no adivinas tú mismo, por mis canciones,
que soy sencillo y doble como este árbol?

Français


La feuille de cet arbre
Qu'à mon jardin confia l 'Orient
Laisse entrevoir son sens secret
Au sage qui sait s'en saisir.

Serait-ce là un être unique
Qui de lui-même s’est déchiré ?
Ou bien deux qui se sont choisis
Et qui ne veulent être qu’un ?

Répondant à cette question
J’ai percé le sens de l’énigme
Ne sens-tu pas d’après mon chant
Que je suis un et pourtant deux ?


Italiano



La foglia di quest'albero,
venuto dall'oriente al mio giardino,
consente di gustare sensi occulti,
edificando il saggio.

Sarà un essere vivo,
che sé in se medesimo ha spartito?
oppure saran due, che vollero apparire come uno?

Per dare alla domanda una risposta,
il senso giusto trovo:
non senti, nei miei canti,
che sono uno e insieme sono doppio?

Japonês