09 setembro 2010

Frederico Füllgraf - Lili Marleen, os 95 anos de um mito (parte 1/3)

 
Fotos: divulgação, Bundesarchiv, Wikipedia

 Acima - soldado alemão na 1a. Guerra Mundial; 
meio - Hans Leip e o quartel da famosa lanterna;
embaixo - Lale Andersen e Fitzroy Maclean (segundo da direita)

Frederico Füllgraf
₢ 2010
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No início da tarde de 12 abril de 1941, os tanques do Standartenführer (coronel), Fritz Klingenberg, vinte e nove anos de idade, comandante da 2ª. Divisão “Das Reich”, da SS, são embarcados em balsas infláveis, capturadas, e cruzam o Rio Danúbio, cujas pontes de acesso a Belgrado estavam todas dinamitadas. Sem enfrentar resistência, às 17h00 daquela tarde a SS toma a cidade e hasteia a suástica no prédio da legação alemã. Duas horas mais tarde, o prefeito de Belgrado faz a entrega oficial da capital iugoslava a Klingenberg.


Quando Klingenberg e seus blindados avançavam pelas ruas de Belgrado, a cidade já estava em ruínas. A explicação disso era a “Diretiva 25”, codinome para a invasão dos Balcãs. Enfurecido com a “falta de confiança” da Iugoslávia, que derrubara o Príncipe Regente, Paulo, com um golpe militar, substituindo-o pelo Rei Pedro II, que se negara a aderir ao Pacto Tripartite (Hungria, Bulgária e Romênia), às sete da manhã de 6 de abril de 1941, Hitler ordena a execução do Strafgericht, literalmente “tribunal de punição”.


Trezentos caças-bombardeiros Junkers Ju 87, os temíveis Stukas, assomam ao céu sobre Belgrado, precipitando-se sobre a cidade ao som de sirenes horripilantes, semeando o terror entre a população desesperada, antes ainda que a primeira bomba fizesse vítimas. Findo o ataque, pelo menos quatro mil pessoas jaziam mortas sob os escombros fumegantes.


Assim caia Belgrado, na versão oficial, esforçadamente empírica, do Centro de Publicações de História Militar do Exército dos EUA¹, e como todas de seu gênero, econômica em relatos testemunhais. Na verdade, eu “cheguei” à tomada de Belgrado por vias literalmente tortuosas, no encalço de uma tal brigada “SS Germania”, que naquele 12 de abril também estava embarcada nas balsas de Klingenberg.


No encalço da “SS Germania”


Força especial, recém-constituída em 1939, como brigada da Waffen SS, a trajetória da “SS Germania” começara com sua participação ativa na ocupação de Roterdã, Haia e Liége, depois Cambrai, Lille, Amiens, Calais e Dunquerque, durante a invasão da Holanda, Bélgica e França, primavera e verão de 1940. De lá, a brigada avançou para Lyon, Vichy e Olermot-Ferrand, durante a invasão da França não ocupada. Incorporado na tal “SS Germania”, estava um jovem Oberscharführer, aspirante a oficial, da SS: meu pai.


Preso em abril de 1945, pelo Exército Vermelho, é internado num campo de trabalhos forçados, 150 km a sudeste de Moscou, de onde consegue escapar na madrugada do réveillon de 1946, sob 30 graus negativos, empreendendo uma caminhada em ziguezague através das linhas soviéticas, de três mil quilômetros de volta à Alemanha, em ruínas. Entregando-se às tropas norte-americanas, durante alguns anos colabora com a inteligência militar dos EUA e, devidamente “desnazificado”, emigra para o Brasil no início da década de 1950.


Sua estória inspirou um romance, ainda “em obras”, contratado por uma editora do Rio de Janeiro, cuja narrativa expõe o fascínio exercido pelos uniformes negros da SS em milhares de jovens da República de Weimar, e que setenta anos depois me leva ao encontro dos últimos sobreviventes russos, ucranianos e iugoslavos da 2ª. Guerra Mundial, narrando as invasões nazistas do ponto de vista dos invadidos e das cidades que não existem mais – Belgrado, Charkov, e em parte Kiev – porque sobre suas ruínas foram erigidas urbes completamente diferentes.


Em março de 1941, conta meu pai ao juiz de um tribunal de desnazificação da cidade de Kassel, que o absolveu em abril de 1948, sua unidade fora enviada à Romênia, envolvendo-se em combates nos Cárpatos, onde então recebera ordens para deslocar-se a Sófia, na Bulgária, e de lá para Belgrado; palco da estória de uma canção, cuja centelha literalmente salta de uma trincheira para outra, de exércitos inimigos, durante anos impondo-se como insólito código radiofônico de cessar-fogo.


Os incêndios de Mussolini


Pano de fundo dessas invasões bárbaras é o expansionismo de Benito Mussolini, cujas tropas assaltam os ocupantes britânicos do Egito, em 13 de setembro de 1940, em cuja contra-ofensiva são feitos 25 mil prisioneiros italianos na Líbia. Não satisfeito, Mussolini lança- se em nova aventura estabanada, atacando a Grécia, em outubro de 1940, onde é nova e violentamente repelido.


Aflito, o líder fascista italiano pede ajuda militar em Berlim. Imerso nos preparativos de "sua guerra" muito pessoal, contra a União Soviética, depois de muito hesitar, Hitler sai em socorro da Itália. Em fevereiro de 1941, entra em cena o Afrika-Korps, sob o comando do Gen. Erwin Rommel, que desembarca admirado e invejosamente odiado, nas próprias e nas fileiras inimigas, como comandante da Gespenster-Division, a "Divisão-Fantasma", festejada durante a invasão da França pelo desempenho e os ataques-surpresa de seus blindados.


Mas ao seu nome também adere fama de “befehlsverweigerndes Arschloch” (um “cu insubordinado”), entre outros porque na França desdenhara instruções e se negara a dispensar maus-tratos a prisioneiros judeus. E mais uma vez Rommel desobedece às ordens de Berlim, impondo com todo o rigor o tratamento ético de prisioneiros na África, e ao invés de manter-se na defensiva, passando à ofensiva contra a fortaleza britânica em Tobruk.


Nove meses depois de seu desembarque, o Estado Maior britânico anda às voltas com dois problemas: o primeiro, é o frisson exercido sobre as tropas inglesas pela Raposa do deserto, o novo aliás de Erwin Rommel, decidindo por eliminá-lo. Em novembro de 1941, o Ten. Geoffrey Keyes, de vinte e quatro anos, é morto durante o atentado fracassado de um comando assassino, britânico, incumbido de matar Rommel, mas o Afrika-Korps não vacila e dá sepultamento com todas as honrarias ao inglês, cujo funeral é conduzido pelo capelão pessoal do “galante cavaleiro Rommel”.


Claude "Auk" Auchinlek, general britânico, adverte seus comandantes numa carta: "Existe eminente perigo de que nosso amigo Rommel se torne um mago (...) para nossas tropas, que só falam nele (...) Mas ainda que fosse super-homem, seria muito indesejável que nossos homens o dotassem de poderes sobrenaturais" – escreve Auchinlek, terminando sua carta com a observação (ou ato falho): "PS, I’m not jealous of Rommel" / não tenho ciúmes de Rommel" ²


Já o segundo problema dos britânicos é a transmissão diária, pelo rádio, de certa canção alemã, muito incentivada por Rommel. Cúmulo do vexame para alguns comandantes, é que sob intensa pressão dos recrutas sua recepção nos acampamentos do 8º. Exército é amplificada por alto-falantes; a rapaziada ouvindo-a, abobada... Bacorejam os oficiais de Sua Majestade, que a canção ameaça minar o moral dos praças. Mas não só deles.


21h57 – as armas silenciam!


Oficial do Special Air Service (SAS), unidade de elite para a execução de missões perigosas do 8º. Exército, Fitzroy Maclean, esgueira-se sorrateiro pelo terreno, rumo às instalações portuárias do Eixo, em Benghazi, onde deverá plantar explosivos, e semear a confusão nas fileiras inimigas.


Quando a noite cai sobre o deserto, a temperatura despenca num piscar de olhos, e os homens de Maclean buscam refúgio por trás de uns rochedos. Faz um frio dos diabos, e os tommies acendem uma pequena fogueira, comem bife enlatado e bebem chá e um gole de rum. Enquanto Maclean troca mensagens pelo rádio com seu comando, seus homens, exaustos, já estão estirados na areia, mas intrigados com a charada, se quem gira, são eles, ou o universo, sobre suas cabeças.


O terror dos soldados europeus não é o inimigo em armas, mas a ghibli, uma tempestade de areia que sopra do sul e que atinge 60 graus centígrados: "Quando não sopra alguma tempestade de areia (...) é o calor que nos penaliza. Em dias de combate, os enfrentamentos costumam arrefecer à hora do almoço. Nossos ´videntes´ [meteorologistas] já chegaram a medir 75 graus de temperatura (...) Aconteceu que peças de roupa, colocadas para secar sobre a blindagem de um tanque, ficaram carbonizadas. Mais tarde, vi (...) como soldados frigiam ovos sobre os ferros incandescentes de outro tanque (...) Só à noite, quando a tempestade adormece e as moscas se recolhem, a temperatura se torna suportável...“ ³, escreve com o coração apertado, Harald Kuhn, Comandante do 5º. Regimento de Blindados do Afrika-Korps, à luz de uma lamparina, num acampamento alemão, perto dali.


Atrás dos rochedos, o rádio de Maclean continua pipocando mensagens cifradas e, de repente, eis aquela canção, transmitida religiosamente às 21h57, pela Rádio Belgrado, emissora do exército alemão: primeiro, o som de um gongo indica para legiões e mais legiões de combatentes, que mais um dia de batalha chega ao fim. E então uma melodia suave e doce, fácil de memorizar, e impossível de esquecer, desliza pelo éter. E sobre ela incide a voz de uma mulher, algo áspera e açodada, cantando:


Vor der Kaserne Vor dem großen Tor Stand eine Laterne, Und steht sie noch davor, So wolln wir uns da wiedersehn, Bei der Laterne wolln wir stehn Wie einst, Lili Marleen.


Em frente ao quartel, diante da portada Pendia de um poste uma lanterna iluminada E se ainda estiver por lá É lá que vamos nos re-encontrar À lanterna nos encostar Como dantes, Lili Marleen...


Com os ouvidos pregados na melodia, Maclean - reencarnação virtual do agente secreto “by appointment to Her Majesty´s”, tantas vezes incorporado durante suas andanças pelo Oriente, por sir Richard Francis Burton, e já suspeito como inspirador do personagem James Bond, de Ian Fleming - parece intrigado com a distante Iugoslávia, de onde o alcançam aquelas sonoridades e onde nova missão secreta, dele e de uma pára-quedista-guerrilheira judia, chamada Hanna Senesh, o levará ao encontro dos partisans de Joseph Broz Tito, que resistem contra a invasão da “SS Germania”, de certo Oberscharführer. 4


A música é o código de confraternização dos exércitos de Hitler, mas o pelotão de Maclean, como, aliás, todo o exercito britânico, se põem na escuta. Os Tommies entendem pouco dos versos dos Fritz, encharcados de saudade melosa, e apesar disso, algo nesta canção a torna irresistível ao coração dos inimigos. Certamente, como a maioria de todos os soldados, Fitzroy Maclean acreditava piamente que aquela canção melíflua brotara em solo nazista. Mas estavam enganados.


Retro-narrativa - Berlim, 1ª. Guerra Mundial


Madrugada do dia 3 para 4 de abril de 1915, Kessel Strasse, Berlim. No passeio em frente ao quartel do corpo dos Fuzileiros da Guarda, o recruta Hans Leip, 21 anos, natural de Hamburgo e filho de um estivador, faz sua ronda de sentinela, contando as horas para o embarque ao front dos Cárpatos, na Hungria - guerra! O soldadinho sente o coração apertado, as unhas cravadas na coronha do fuzil. Nisso, lembra-se de Betty, codinome Lili, e também de Marleen: a primeira, filha de um verdureiro e sobrinha da dona da pensão onde Leip reside, e a segunda, enfermeira, filha de um médico da cidade de Rostock.


Dando suas passadas, rimas soltas vão brotando de seus lábios, e Leip se detém, retirando da jaqueta do uniforme um bloquinho de notas e um lápis, se apressando em esboçar os versos à luz embaçada de um facho. E esta é a versão que ganhará o mundo, narrada nas memórias de Hans Leip 5 , publicadas décadas depois. Nelas conta que, terminado seu plantão, correra ao quartel, e sobre o colchão do catre completara o poeminha romântico, "Canção de uma jovem sentinela”, com apenas três estrofes, que diziam (Versão improvisada - Frederico Füllgraf):


Vor der Kaserne Vor dem großen Tor Stand eine Laterne, Und steht sie noch davor,

So wolln wir uns da wiedersehn, Bei der Laterne wolln wir stehn Wie einst, Lili Marleen.
Unsre beiden Schatten sahn wie einer aus: Daß wir so lieb uns hatten, Das sah man gleich daraus.
Und alle Leute solln es sehn, Wenn wir bei der Laterne stehn Wie einst, Lili Marleen.

Schon rief der Posten: Sie blasen Zapfenstreich; Es kann drei Tage kosten ! Kamerad, ich komm ja gleich.

Da sagten wir auf Wiedersehn. Wie gerne wollt ich mit dir gehn, Mit dir, Lili Marleen.


Em frente ao quartel, diante da portada Pendia de um poste u´a lanterna iluminada E se ainda estiver por lá É lá que vamos nos re-encontrar À lanterna nos encostar Como dantes, Lili Marleen...
Nossas duas sombras eram uma só Era grande o nosso amor Paixão sem nó nem dó

Que os passantes nos vejam ali Juntos da lanterna a sorrir Como sempre, Lilli Marleen...

Avisa a sentinela Atrasaste a formação Três dias de castigo! Já vou, camarada, digo, sem afobação

E então dissemos adeus Quisera tanto ficar nos braços teus - só teus, Lili Marleen!


Ferido, em 1917, Leip é dispensado da tropa, retomando sua profissão de professor, em Hamburgo, onde se inicia nos ofícios de artista plástico e escritor, e tenta se reencontrar naquela Alemanha, cujo Kaiser fugira para a Holanda, e que da noite para o dia se tornara uma república, ao mesmo tempo conturbada e instigante, pois em Weimar florescem o gênio criativo e a ousadia, mas também viceja a conspiração revanchista.


Em 1925, Leip consagra-se como autor do romance "Godekes Knecht" / O criado de Godeke, enredo de pirataria, em gênero de capa e espada, premiado pelo jornal Kölnische Zeitung, e segundo ele, muito elogiado por Thomas Mann.


O artista e o nazismo


Em janeiro de 1933, os nazistas vencem as eleições do Reichstag, formando um governo, ditatorial, que fechará o Congresso e jornais da imprensa livre, e proscreverá os partidos políticos e sindicatos democráticos. Em Hamburgo, Hans Leip assiste à proscrição da "Associação nacional de escritores alemães" e do "Círculo Hanseático do Pen-Club“. Seus associados são perseguidos, e quem - como os grandes nomes da Literatura Alemã, de Brecht a Thomas Mann, de Stefan Heym a Alfred Döblin - não opta pelo exílio, é preso e sofre agressões físicas.


Hans Leip justifica sua permanência naquela Alemanha onde se apagavam as luzes da razão e da dignidade, porque não consegue pagar o tal "imposto sobre evasões do Reich". Não se filia ao partido nazista, mas para sobreviver como escritor, curva-se às exigências do ministro da Propaganda, Joseph Goebbels, inscrevendo-se na Reichsschrifttumskammer, a "Câmara de Letras do Reich".


Mais tarde, com o 3º. Reich em ruínas, tenta explicar-se, afirmando que nos doze anos de trevas nazistas tentara sempre ajudar os amigos em apuros. É digressão também usada em sua defesa, por Lei Riefenstahl, a "cineasta do Führer".


Leia mais: http://fuellgrafianas.blogspot.com/2010/09/lili-marleen-os-95-anos-de-um-mito_09.html

Frederico Füllgraf - Lili Marleen, os 95 anos de um mito (parte 2/3)

Fotos: divulgação
Acima - fotos 1 e 2, da tomada de Belgrado;
Meio - blindados no deserto da Líbia, emblema do Afrikakorps de Rommel;
Embaixo - as cantoras Lucie Mannheim e Marlene Dietrich.

“Lilli”, 1937



Em1937, Leip - que por vezes adotava o pseudônimo Li-Shan Pe, nome de sonoridade "chinesa", mas na verdade um anagrama de Hans Leip – lança a antologia poética "Die kleine Hafenorgel / Pequeno realejo do porto", que incluía a "Canção de um jovem sentinela", agora acrescida de mais duas estrofes:


Deine Schritte kennt sie, Deinen zieren Gang. Alle Abend brennt sie.Mich vergaß sie lang.

Und sollte mir ein Leid geschehn, Wer wird bei der Laterne stehn mit dir, Lili Marleen ?

Aus dem stillen Raume, Aus der Erde Grund Hebt mich wie im Traume Dein verliebter Mund.

Wenn sich die späten Nebel drehn, Werd ich bei der Laterne stehn Wie einst, Lili Marleen.


(Na falta de versão brasileira, melhor, continuo com minha própria):


Teus passos ela intui Teu gracioso caminhar Brilha em todas as noites E se demora em deslembrar.

Mas se o infortúnio me acontecer Quem à lanterna irá atender Te rever Lili Marleen?

Do universo silencioso Da terra mais entranhada Me soergue feito sonho Tua boca enamorada

Quando remoinharem as névoas tardonhas Junto à lanterna tristonha Estarei como dantes, Lili Marleen...

Após duas tentativas fracassadas, de Leip e do compositor Rudolf Zink, entra em cena Norbert Schultze, de 26 anos. Rudolf “Rudi“ Zink, era amigo da cantora Lale Andersen, e autor de grande parte de seu repertório, no cabaré "Simpl“, de Munique, cujas melodias, segundo Schultze, tinham um quê de chanson, demasiadamente poéticas, com fraco apelo comercial.


E embora a versão original de Zink dialogasse bem melhor com o romantismo da letra, sua “Lilli” foi preterida pelo ritmo marcial da composição de Schulze, já sintonizado com o Zeitgeist militarista da época. Exilados os compositores judeus da Alemanha, o oportunista Schultze faz fama com marchas militares, tais como a pérola, "Bomben auf England" (Bombas sobre a Inglaterra).


Faltando menos de um mês para o assalto nazista à Polônia, em agosto de 1939, Schulze vence as resistências da gravadora Electrola, e Lale Andersen grava a música. Cautelosa, a Electrola manda imprimir apenas 700 discos, depois encalhados nas prateleiras das lojas, amargando longa hibernação.


Trama paralela: Rádio Belgrado


Tomada pelos alemães, a Rádio Belgrado fora rebatizada de "Soldatensender [emissora dos soldados] Radio Belgrad”. Mas seu novo diretor, o Ten. da Wehrmacht, Karl-Heinz Reintgen, vinte e cinco anos mal completos, literalmente estava no mato sem cachorro: tinham-lhe encomendado uma programação 24-horas-no-ar, mas ele só dispunha de 54 discos, velhos, para encher o ar de linguiça.


É quando entra em cena o alferes Richard Kistenmacher. Enviado por Reintgen a Viena, em missão de aquisição para a discoteca desfalcada, Kistenmacher desvia seu curso para "bivaquear" no apartamento de uma "potência amiga" (Der Spiegel, 19/01/81); uma amizade colorida que alimentava de noites movimentadas, anteriores à guerra. Dilapidando a discoteca de sua anfitriã, retorna leve e solto para Belgrado, carregando o butim musical, que protocola como "doação da Rádio de Viena".


"Tudo disco proibido!", recorda Reintgen, que a exemplo de Kistenmacher no pós-guerra tomaria gosto pelo rádio: ele empossado como redator-chefe da Rádio Saar, e aquele como repórter da SFB, da mesma rede, em Berlim. Mas naquele butim das baquelitas de 78rpm, contrabandeado de Viena, um título em especial chama sua atenção: a "Canção de uma jovem sentinela", ou simplesmente "Lilli Marleen”; até ali, ilustre música desconhecida.


Grande sacada! - vaticina Reintgen, pois sua melodia terminava com um acorde marcial estrondoso; tema para fechar com chave-de-ouro seu programa “Saudamos nossos ouvintes!”, produzido para o front. Durante toda uma semana, Reintgen enfeitiça o ar com aquelas “névoas tardonhas”, mas, enfastiado, em seguida retira as trovas melosas da programação. E chovem protestos e estrugem palavrões: milhares de cartas, a maioria delas do front africano, de Rommel, cobram o retorno de "Lilli"! É quando cai a ficha de Reintgen, que não imaginara que as ondas de seu programa transcendiam as fronteiras de Belgrado.


Lendo essas crônicas, deixei-me apanhar pelo devaneio, imaginando meu futuro pai entre os ouvintes daquela canção, que, preciso confessar, jamais conseguiu arrancar-me qualquer arrebatamento. Trama paralela, cujos meandros extrapolavam a narrativa do referido romance, assim mesmo decidi aprofundar-me e divulgar sua amplitude, porque a estória é virtualmente desconhecida no Brasil.


Rimas ferinas


Advertiu Rudolf Walter Leonhardt, escritor alemão do pós-guerra e especialista em canções de guerra, que ao timbre alto, "áspero, ligeiramente fumeiro", de Lale Andersen, os recrutas projetavam o que mais lhes apetecia: “a boa amiga, a amada casta, ou a garota de programa".


Joseph Goebbels desancou a Rádio Belgrado, com uma leitura acaçapantemente idêntica à do Estado Maior britânico, atribuindo "derrotismo" à composição de Leip & Schulze, taxando-a de "ladainha com cheiro a cadáver”. Mas a rádio da Wehrmacht não sofria a censura do ministério da propaganda, e a balada já estava na boca de milhões de soldados, dos russos inclusive, que a sussurravam às escondidas de seus comandantes.


Então Goebbels ameaça destruir a matriz da gravação de "Lili Marleen", decisão da qual recua, mas vingando-se, ao encomendar uma nova versão, calibrada como marcha nazista, e celebrizada como "trilha sonora" macabra nas campanhas assassinas dos Einsatzgruppen da SS.


Em todas as frentes são rimadas novas versões, cujas improvisações são assaz ousadas, por vezes abertamente pornográficas: "Ich drückt sie an den Pfosten (Apertei-a contra o poste Ela assustada) Mädchen, sei nicht dumm, denn die alte Funzel, die fällt beim Stoß nicht um (Garota, não seja boba, lamparina velha aguenta a estocada) So haben wir zum erstenmal gevögelt am Laternenpfahl mit der Lili Marleen (E assim demos nossa primeira trepada Com Lili Marleen no poste, escorada)"...


E apesar da resistência tardia dos alemães, muito antes da queda do tirano, uma versão escancaradamente política era rimada assim: "Unter der Laterne, vor der Reichskanzlei, da hängt unser Führer und auch der Robert Ley.(Debaixo da lanterna, defronte a chancelaria, está enforcado nosso Führer, e o Robert Ley, fodido) Und alle, die vorübergehn, wolln auch die andern hängen sehn, die andern der Partei" (E todos que passam por ali, querem ver pendurados os demais, o resto do partido"). Ninguém duvidará da poderosa evocação cósmica dessa última versão: apesar de vez por outra ressurgir na Argentina, Hitler cometeu suicídio, e Robert Ley, viripotente chefão da ”confederação sindical” nazista, DAF, ad verecundiam do “Führer”, foi condenado à morte pelo Tribunal de Crimes de Guerra, de Nuremberg, e efetivamente “pendurado”.


"Devant la caserne” e “Underneath the lantern...”


Entre ocupados e resistentes, os franceses também assoviavam a trova arrebatadora de “Lilli Marleen”. Pelo final de 1941, Henri Lemarchand adapta uma versão, fiel ao original de Leip, encomendada por Suzy Solidor, que estréia em janeiro de 1942, no cabaré "La Vie parisienne", em plena ocupação nazista:


Devant la caserne Quand le jour s'enfuit, La vieille lanterne Soudain s'allume et luit.

C'est dans ce coin là que le soir On s'attendait remplis d'espoir : Tous deux, Lily Marlène. :


Para enorme dissabor de Joseph Goebbels, em menos de seis meses foram vendidas 160 mil cópias de "Lilli Marleen”, em 1942, quando a canção sofre adaptações para 48 idiomas. Mas é nas areias do norte africano que ocorre o abracadabrante fenômeno: o estopim "Lilli" salta de uma trincheira para a outra, estabelecendo o curto-circuito lúdico das tropas inimigas.


Porém, depois que muitos recrutas britânicos levam homéricos esporros de superiores e do compositor J. J. Phillips, porque entoavam a canção em alemão, alguém do comando do 8º. Exército lembra-se que um disco da "Lilli" fora encontrado entre os despojos do Afrika-Korps, em Tobruk, indo parar nas mãos do letrista Tommie Connor. Primeiro resultado: em maio de 1943, duas versões de "Lilli Marleen", com letra de Connor e inconfundível swing jazzístico, são lançadas na Inglaterra, pelas vozes de Anne Shelton e Vera Lynn:


Underneath the lantern By the barrack gate Darling I remember The way you used to wait

T'was there that you whispered tenderly, That you loved me, You'd always be, My Lilli of the Lamplight, My own Lilli Marlene..


Segundo resultado: em 1944, é vendido meio milhão de cópias na Inglaterra - sucesso estrondoso!


O "efeito Casablanca"


E então ocorre o que estava esboçado num roteiro de filme de ficção, mas atropelado por tiros de verdade: o "efeito Casablanca", ou a retomada daquela cena em que a loira fatal diz ao pianista negro, "play it again, Sam!" E Sam (Doodley Williams) manda ver: It's still the same old story A fight for love and glory A case of do or die... Maio de 1943 é o fim da linha para o Afrika-Korps, no Saara.


Certo dia, depois do estrondoso sucesso de “Casablanca”, um diretor de filmes B, da Universal, surpreende Hal Wallis, produtor de “Casablanca”, com uma sinopse que daria continuidade à narrativa, engatando-se na última cena do filme. Nela, o Cap. Renault (Claude Rains) oferecera um negócio a Rick Blaine (Humprey Bogart), que após matar Strasser (Conrad Veidt), obviamente teria que fugir dos alemães. "Há uma guarnição francesa em Brazzaville. Eu poderia ser induzido a lhe arrumar a passagem”, diz Renault. É quando Rick o abraça, diz a última frase do filme, e fade out,... – THE END.


No novo roteiro, as tropas americanas desembarcam em Casablanca, expulsam os alemães, e Rick Blaine, recrutado como espião americano, é enviado para Tanger, onde deverá destruir um comando de sabotagem nazista. Isto faz, aproximando-se de Maria, outra chica fatal, mas seguidora fanática do Generalísimo Franco. Mata Hari again? Não importa! Ela é o contato dos alemães em Tanger. Que alertados pela chegada do americano misterioso, jogam a Maria em seus braços. O imprevisto: os dois se apaixonam. Já Laszlo, que ajudado por Rick e junto com Ilsa (Ingrid Bergmann) estava a caminho dos EUA, morre em Lisboa. Ilsa não pensa duas vezes, toma o primeiro avião de volta a Casablanca, para também jogar-se nos braços de Rick...


O filme jamais será rodado, porque desta vez a História não podia esperar pelo Cinema: em 8 de novembro de 1942, desembarcam, em Casablanca e Argel, mais de 100 mil soldados norte-americanos e britânicos - recém-banhados, barbeados e perfumados - abrindo a guerra de duas frentes, que em 13 de maio de 1943 obrigará o Gen. Hans Jürgen von Arnim, substituto de Rommel, a capitular em Túnis.


Antes disso, houve um interregno em Berlim: no dia 8 de abril de 1943, Rommel tentara negociar com Hitler as condições de uma eventual rendição, mas o ditador bateu o pé, proibindo-lhe retirar as tropas alemãs de solo africano. Diante de tal estapafúrdio, 130 mil alemães são aprisionados pelos Aliados, e Hitler amarga sua "segunda Stalingrado".


"Lilli", a guerrilheira da BBC


 Exilada em Londres, porque em sua genealogia germânica os nazistas haviam pinçado alguma "ramagem judaica", a atriz alemã, Lucie Mannheim (1899 -1976), ex-parceira de palco de Conrad Veidt (Nosferatu, Casablanca), ameaça roubar a cena a Shelton e Lynn, protagonizando a elégica personagem de Leip no curta-metragem "The True Story of Lilli Marlene", de Humphrey Jennings, e fazendo sucesso como Miss Smith, no thriller "The 39 Steps - Os 39 degraus" (1935), de Alfred Hitchcock.


Casando-se com Marius Goring - ator de cinema como ela, cujo sobrenome era de semelhança insólita com o do ministro nazista, Hermann Göring, e que metido num uniforme do exército, como supervisor dos programas em alemão, da BBC adota o pseudônimo "Charles Richardson" - Mannheim atua como destemida comentarista e intérprete de sua versão anti-hitlerista de "Lilli Marleen", cantada em alemão, na emissora britânica:


“Vielleicht fällst Du in Rußland, Vielleicht in Afrika, Doch irgendwo da fällst Du, So will's Dein Führer ja.

Und wenn wir doch uns wiederseh'n, Oh möge die Laterne steh'n In einem ander'n Deutschland! Deine Lili Marleen

Der Führer ist ein Schinder, Das seh'n wir hier genau. Zu Waisen macht er Kinder, Zur Witwe jede Frau.

Und wer an allem schuld ist, den Will ich an der Laterne seh'n! Hängt ihn an die Laterne! Deine Lili Marleen... ”


Quem sabe caias na Rússia Talvez lá na África Em algum lugar vais morrer com certeza Pois o Führer quer ver você tombar.

E se apesar disso tudo voltarmos a nos reencontrar Quisera essa lanterna plantada em outra Alemanha! Tua Lilli Marleen

O Führer é um carrasco O que mais que você quer? Faz das crianças, órfãos E viúva de toda mulher.

E quem tiver a culpa em tudo isso Quero ver pendurado no facho! Pois o pendurem feito cacho! Tua Lilli Marleen...


Mannheim faz furor na Alemanha, e Goebbels institui a pena de alta traição para os ouvintes clandestinos da BBC.

Em cena, "O Anjo Azul"


Marlene Dietrich

Underneath the lantern era mesmo uma versão muito
 exitosa, sobretudo fiel ao romance do soldadinho, mas as tropas americanas atribuíam a maternidade àquela "Marleen", em carne e osso, com sua voz lânguida, de sotaque inglês concupiscente, e nada menos que nascida em Berlim – la Dietrich!


Capitaneado pelo exército americano e protagonizado por Marlene Dietrich, a partir de 1944 tem início um terceiro ciclo de recepção do fenômeno "Lilli Marleen". Midiatizada pela Paramount, como "réplica alemã" a Greta Garbo, e cultuada como diva de "O anjo azul" (1932) e "Marrocos" (1935), dirigidos por Josef von Sternberg, Dietrich também tinha convicções firmes, jamais tergiversando com o nazismo, que fez das tripas coração para cobrir seu "passe", de volta à Alemanha, de onde se ausentara em 1931.


Entre 1942 a 1943, já se apresentara a 250 mil tropas dos EUA, no Pacífico, e recrutada pelo projeto "Musac", lançado em 1944 pelo Departamento de Serviços Estratégicos (OSS), para desmoralizar as linhas inimigas com música, Dietrich sai a campo.


Mochila às costas, ela parte em turnê às linhas do front aliado, na Argélia, Itália, Inglaterra e França, incentivando a luta contra o nazi-fascismo, com um repertório que incluía "The boys in the Backroom" (do filme "Destry rides again" / O grande blefe), e a indefectível "Lilli Marleen", numa versão de sua própria lavra:


When we are marching in the mud and cold, And when my pack seems more than I can hold,

My love for you renews my might, I’m warm again, My pack is light, It’s you Lili Marlene, It’s you Lili Marlene...


“Lilli” na campanha da Itália


Mussolini fora derrubado e subitamente a Itália, sempre surpreendendo, mudara de lado...


“Ma che cazzo succede!" - indignam-se os moradores das primeiras cidades liberadas da Sicília, quando os soldados do 5º. Exército dos EUA subiam os morros escarpados, cantando e assoviando "Lili Marleen". A primeira reação foi de pânico, e o Gen. Mark W. Clark ficou visivelmente encabulado, quando lhe disseram: "Olha aqui ó, durante meses tivemos que suportar os alemães, que não paravam de cantar essa melodia, e agora chegam vocês e continua a mesma ladainha?"


De queixo caído, em seguida os sicilianos presenciaram o desembarque dos ingleses, que saltam dos barcos, cantando "The Ballad of the D-Day Dodgers", sobre a mesma odiosa melodia de "Lilli Marleen":


We landed in Salerno, a holiday with pay Jerry brought the band out to cheer us on our way
Showed us the sights and gave us tea We all sang songs, the beer was free
To welcome D-Day Dodgers To sunny Italy…


"Seria realmente divertido", observou John Steinbeck, escritor arrebatado pela música, "se depois de toda a tonitruência e os berros de Heil!, se depois das marchas e toda aquela doutrinação, a única contribuição dos nazistas para o mundo teria sido 'Lili Marleen´". Já Ernest Hemingway babava com a voz (obviamente não com ela, apenas), de Marlene Dietrich: "Se ela não tivesse nada além, bastaria a voz para romper teu coração".


Luis Fernando Moreno Claros (Letras Libres, 2009), observou que Dietrich "expressa[va] os ideais politicamente corretos dos Aliados”. O que fez, rejeitando o caráter mórbido da versão original, na qual o soldadinho morre, promovendo sua ressurreição. A ironia dessa vivificação é que, com intenções opostas, a crítica de Goebbels se insurgira exatamente contra aquele "sabor a cadáver". Contudo, quem efetivamente “desnazificou” "Lili Marleen", foi Lucie Mannheim, e Marlene Dietrich a massificou; a OSS e Hollywood tinham mais bala na agulha do que a brava, mas limitada BBC.


Youtube - Lucie Mannheim, "Lilli Marleen"

Frederico Füllgraf - Lili Marleen, os 95 anos de um mito (parte 3/3)

 

“Nili”, a Marleen judaica



Durante minha solitária pesquisa me deparei com a referência de um autor alemão, sem dúvida surpreendente: a de que Stefan Zweig seria autor de uma versão de “Lilli” para o hebraico 6. Mas a informação tinha dois problemas: não citava sua fonte, e a matéria, publicada há trinta anos, não estava assinada.


Após testar na Internet centenas de combinações de busca, as mais esdrúxulas, e trocar correspondências inócuas com arquivos históricos em todo o mundo, suspeitei que devesse arquivar Stefan Zweig. Mas teimoso, acabei descobrindo a edição de uma caixa com sete CDs de “Lilli Marleen”, pelo selo alemão The Bear Family.


Não tive dúvidas, na janelinha, “fale conosco”, do site da empresa, deixei minha pergunta sobre Zweig. No mesmo dia, Richard Weize, que não é secretária, mas uns dos donos da empresa, respondeu-me, solícito: “Do Zweig não sei nada, mas veja isso aqui” – e me enviou um calhamaço, do qual destrinchei a seguinte estória.


Em 25 de abril de 1944, a rádio A voz de Jerusalém põe no ar uma versão hebraica de “certo letrista, com interpretação de um cantor, ambos desconhecidos”. A reação do público é eufórica, e então a rádio esclarece que do nome “Lilli”, os soldados ouvintes fizeram sua própria versão, a da personagem Nili.


Quem, diabos, era “Nili”? E o enigma foi se desvelando: em primeiro lugar, “Nili” é um acrônimo do verso hebraico que diz: Netzach Israel Lo Jeschaker' – “Deus é fiel a Israel”. E fiel ao Talmud, durante a 1ª. Guerra Mundial, quando inicia o êxodo dos judeus europeus à Palestina, Nili era o nome de um comando judeu, clandestino, que apoiava a luta dos britânicos contra as tropas turcas no Oriente Médio. Já na 2ª. Guerra Mundial, Nili é o nome de honra adotado pela pára-quedista Hannah Senesh (1921-1944).


Nascida em Budapeste, e desembarcando no Oriente Médio, em 1942, Hannah vincula-se à Palmach, unidade da Haganah, que combatia árabes e britânicos, com atos de terrorismo. Como primeira mulher, em 1943, Hannah é admitida pela força aérea britânica, saltando sobre o território do Egito para salvar pilotos derrubados, e praticar atos de sabotagem.


Em março de 1944, Hannah é enviada a Bari, na Itália, onde muda de avião e salta sobre território da Eslovênia, depois se juntando por três meses aos guerrilheiros iugoslavos de Josip Broz Tito. Ao tentar cruzar a fronteira para a Hungria, seu país natal, é delatada e entregue à Gestapo. Levada a Budapeste, durante quatro meses sofre interrogatórios violentos. Julgada por um tribunal fantoche, nazista, é fuzilada em 7 de novembro de 1944, aos 23 anos de idade.


Lembrada como heroína de espantosa coragem, Hannah protagonizará a versão hebraica de “Lilli Marleen” ('Ani socher od Lili'), cujos versos dizem: “Dentre milhares de mulheres na cidade De teus olhos o pálido olhar Eu guardarei, Lili” 'Tenho saudades de ti, Lili... "


Na década dos anos 50, a rádio Kol Jerushalajm grava um compacto dessa versão, que acompanha a mudança dos estúdios da emissora, de Jerusalém para Tel Aviv. O infortúnio: durante uma reforma do prédio, a gravação é danificada, depois se perde definitivamente


Desconsolados, em 2004 os editores daquela versão contratam o musicólogo, regente de orquestra e pianista, alemão, Axel Weggen, que a re-grava, numa versão interpretada pelas cantoras Ariella e Nora Hirshfeldt, executada em julho de 2004, no Palais Aux Etoiles Studio, em Bremen.


Nesse mesmo período, em Berlim, Dan Kahn executa uma versão de “Lilli Marleen” em iídiche, e a cantora judia, Tamara, interpreta-a numa versão acompanhada pelo pianista Vladimir Shalit.


E o mistério da versão hebraica continua: a autoria musical de “Nili”, que homenageia Hannah Senesh, é creditada a Norbert Schultze, mas o nome do letrista judeu continua em branco – seria Stefan Zweig? E se o escritor se sentisse constrangido em assinar a letra de uma música cantada pelas tropas do mesmo regime que o obrigara ao exílio?


Do ocaso de Rommel à "Lilli" trash de Fassbinder


Acima - Winston Churchill e Erwin Rommel (dir.);
Abaixo - Hannah Schigulla em "Lili Marleen", de R. W. Fassbinder

Com a apropriação internacional da canção, em mais de 50 idiomas, termina o ciclo genuinamente alemão de "Lilli Marleen". Findo o ciclo, sai de cena a mulher que incitara o mito - Lale Andersen.


Ridicularizada por intelectuais alemães do pós-guerra como "a choradeira da lanterna", como muitos de seus conterrâneos, contudo, sir Winston Churchill continuava fã devoto de "Lilli Marleen". Certo dia, no pós-guerra, durante um retiro de férias à Riviera francesa, entre uma e outra baforada no inseparável habano, sir Winston pede à banda do hotel que lhe toque a balada dos namoradinhos sob a lanterna.


Pedido prontamente atendido, o almirante viaja a ré no tempo e se emociona. Na noite seguinte, percebendo a presença de Churchill no salão, o maestro da banda não pensa duas vezes, tenta ser gentil, e manda ver a "Lilli" outra vez. Mas Churchill ergue a mão, manda parar a banda, explicando que dormira mal - I dreamed on Rommel! Num pesadelo lhe aparecera Rommel...


Mas Churchill não partilhava da maledicência e ciumeira de seu Estado Maior contra o ex-inimigo: He deserves our respect... - "ele merece nosso respeito", disse o almirante, porque "Rommel chegou a odiar Hitler e todas as suas maquinações, depois tomou parte na conspiração para afastar do caminho o maníaco e tirano, e resgatar a Alemanha. Por isso, pagou com a própria vida!” E lamentou: “Nas guerras sombrias da democracia moderna mal sobra espaço para o cavalheirismo.”


Falta de honradez também protagonizada mais tarde por Leni Riefenstahl, com suas "Memoiren", mal rimadas, em plena democracia do pós-guerra, estabilizada na Alemanha, em 1971, a artista quando velha, Lale Andersen, publica sua autobiografia 7, na qual se reinventa, reescrevendo a História de um ponto de vista que lhe permite justificar sua permanência na Alemanha de Hitler.


E é ficção que vai alimentar o roteiro "Lilli Marleen" (1981), de Rainer Werner Fassbinder, que além de preservar as meias-verdades de Andersen, contrabandeia meias-mentiras para a narrativa, como a suposta prisão de Mendelson-Lieberman (o regente e marido judeu de Andersen), torturado nas garras da SS - fatos jamais ocorridos -, ou ainda os audaciosos contrabandos de filmes sobre os campos de concentração, da personagem Willie, de Hanna Schygulla (aliás, Lale Andersen).


A rigor, naqueles dias, foi assaz modesta a vida pessoal de la Andersen, vida despojada de todo glamour barroco, incensado no filme de Fassbinder, porque longe de protagonizar a militante da resistência, a moça que cantava "Lili Marleen" nas ondas da Rádio Belgrado, não passava de Mitläuferin; sem dúvida algo gata-borralheira, insubordinada, mas simples "prosélita" do nazismo.


Inspirada nesta autobiografia, como realismo de cena ou "documento" histórico, a "Lilli Marleen" de Fassbinder derrapa sobre o fio da memória, em acrobacias fascinadas pelos climas soturnos, crepusculares, de "Os malditos" (1969), de Visconti (que justapondo cenas da chacina de Ernst Röhm, ao clima festivo de cervejaria, insinua a teatralidade e as semelhanças entre uma suposta estética nazista e o gênero da ópera); pelo glamour plastificado de "Cabaret" (1972), e pelas evocações demoníacas de Liliana Cavani, em "O porteiro da noite" (1974) - tudo celebrado como orgia panteísta, ou, se quisermos, como genuína viadagem estética (adjetivação aqui sem qualquer conotação sexual), ontem e sempre imprestável, porque mistificadora, do fenômeno nazista. Infelizmente, a décadence marron não se limitou a sessões sado-masô de puteiro de luxo, com direito a couro envernizado, peitos, bundas e fálos a rodo, mas articulando-se como ideologia da exclusão e do extermínio.


"Lilli" e a Discoteca de Babel


E “Lilli” continuou marchando...
“La Biblioteca es tan enorme que toda reducción de origen humano resulta infinitesimal", escreveu J. L. Borges, a meio caminho de sua "Biblioteca de Babel" : “(...) Cada ejemplar es único, irreemplazable, pero (como la Biblioteca es total) hay siempre varios centenares de miles de facsímiles imperfectos: de obras que no difieren sino por una letra o por una coma" - ironia de Borges sobre a historia da escrita, que cai como luva sobre a longevidade de "Lilli Marleen".


Nos primeiros anos da guerra fria, os EUA tentam recuperar os direitos de "Lilli Marleen", agora enviando Lale Andersen em turnê pela Coréia e a Indochina, tentando popularizá-la também nos países do recém-formado bloco soviético, mas a canção enfrenta forte rejeição na RDA e também na Iugoslávia de Tito - justamente o lugar sobre o qual devaneava Fitzroy Maclean naquelas madrugadas sob o céu estrelado da Líbia, enfeitiçado pela voz, “rouca, sensual, nostálgica, doce como o açúcar… que parecia desprender-se para tocar-me, espalhando sobre os acordes tocantes da música, aquelas palavras loucamente sentimentais (...)".


Entre as sonoridades exóticas, estão as versões em japonês e finlandês, e como intérpretes tão dissimiles, figuram Greta Garbo, Edith Piaf e a japonesa Kanashii Michi, sem esquecer a anglo-francesa, Amanda Lear, que em 1978 gravou uma mal-parida versão "discothéque" (álbum "Never Trust a Pretty Face"). Escrita do ponto de vista de um soldado, mas sempre interpretada por mulheres, nas décadas de 1950 e 1960, como sintoma de enorme capacidade de sobrevivência do mito "Lilli Marleen", nas hostes masculinas se somavam ao coro, Bing Crosby, Al Martino, Perry Como, Jean Claude Pascal e outros, aqui esquecidos.


Outro sintoma de teimosa vitalidade, sobretudo como indelével ritual de guerra, é que bastava eclodir um novo conflito - na Indochina, Coréia, em Israel ou no Vietnã - e o faturamento disparava aos altos, em movimento oposto às bombas que caiam dos aviões e massacravam em terra. Não foi por acaso que na década dos anos 1980, a viúva do letrista Hans Leip recebia em média 60 mil francos suíços (à época, aprox. 50 mil dólares) por ano com o recolhimento de direitos autorais pela GEMA. Sem falar que Norbert Schultze, o compositor, já era milionário. Também compositor da marcha nazista, "Panzer rollen in Afrika vor" (Tanques avançam sobre a África), Schultze não teve papas na língua ao comentar o sucesso comercial auto-sustentado de "Lilli Marleen": "A música só podia crescer com a guerra, porque então o desespero é grande."


E "Lilli" continua marchando neste início de terceiro milênio: entre outras versões contemporâneas, conste a da banda Atrocity, de 2000, a do grupo italiano, Camerata Medio Lanese, e outra ainda, da banda de rock alemã, Eisregen Thüringen. Em 2005, para ensejo do 60º. aniversário do desembarque dos Aliados na Normandia, a cantora Patricia Kaas chacoalhou o esqueleto de "Lilli" em transmissão televisiva de Mondovision, mas ainda marcados pelas atrocidades (eis aqui um recado para a banda Atrocity) das Einsatzgruppen da SS, os poloneses rejeitaram a alegoria.


"E a lanterna?"- alfineta o ensaísta alemão, Jan Feddersen, na divertida crônica "526 minutos sob a lanterna“ 8: "a imaginação gostaria que a lanterna fosse algo assim como um luzeiro em tempos sombríos - um guarda-chuva luminoso para alguma sorte de privacidade, incapaz de existir, sobretudo em tempos de guerra e no âmbito dos quartéis“.


Epílogo - a sobrinha de Freud


Desde 2006, circula uma sub-lenda do mito, sibilando que Leip estivera apaixonado pela atriz austríaca, Lilly Freud, filha de Marie, irmã de Sigmund Freud, que durante mais de uma década viveu em Berlim, de onde retorna a Viena. Segundo a versão, a atriz resolvera deslembrar-se de Leip em 1917, casando-se com o ator e diretor de teatro, Arnold Marle. Só então Leip teria re-escrito o poema, no qual chorava a perda da namorada Marlé, criando o segundo avatar na trajetória de "Lili Marleen".


Nascida em 1888, Lilly Freud Marle inaugurava carreira muito aplaudida na segunda metade dos anos 20, como intérprete e declamadora, celebrizando-se com textos de Rabindranath Tagore. Mas em 1938, quando Hitler anexou a Áustria, a família Freud, de judeus assimilados, começa a sofrer perseguições. Como lembra Elisabeth Roudinesco, “aferrado à idéia de que somente a civilização, isto é, o cumprimento de uma lei imposta ao poderio absoluto das pulsões assassinas, permitiria à sociedade escapar de uma barbárie ansiada pela própria humanidade", segundo a ótica nazista, Freud era uma aberração, e sua psicanálise, uma “ciência judaica".


Em 2003, o psicanalista alemão, Christfried Tögel, diretor do Sigmund Freud Zentrum, de Magdeburg, faz uma descoberta desconcertante: durante suas pesquisas em partes do acervo de Freud, arquivadas na Biblioteca do Congresso, em Washington, depara-se com os originais intactos de uma biografia do fundador da psicanálise, escrita por sua sobrinha Lilli Freud Marle, referida num artigo de sua irmã mais velha, Margarethe Freud, publicado no “Neue Zürcher Zeitung”, de maio de 1948.


Informação solenemente ignorada pelos pesquisadores de Freud, talvez porque suspeitassem de sua credibilidade, Tögel checa a autenticidade do texto, por ele finalmente publicado na Alemanha, em 2006 9. No livro, Lilly Freud Marle narra os episódios que em agosto de 1939 culminam com a fuga da família Freud para Londres, onde o tio virá a falecer poucos meses depois.


Em conversas espaçadas, ocorridas entre 1945 e 1947, com Martha Freud, sua tia e viúva do psicanalista, ela faz anotações biográficas sobre os aspectos lúdicos e conviviais no cotidiano do clã Freud, em Viena e no exílio londrino, numa espécie de narrativa profana, à margem do consultório e do gabinete científico.


Prefaciando o livro, Tögel detalha o artigo de Margarethe Freud com uma revelação ainda mais desnorteadora: a de que Lilly fora a verdadeira musa inspiradora da letra escrita por Hans Leip, e da música “Lili Marleen”, depois interpretada por Lale Andersen. A versão é reiterada pelo neto de Sigmund Freud, Anton Walter Freud, filho de Martin, o primogênito do psicanalista. Procurado por Tögel, Anton Walter lhe conta que sua prima, Lilly, fora namorada e abandonara Hans Leip, o autor da mítica balada, para casar-se com Arnold Marle.


A traição teria magoado e indignado Leip a tal ponto, que este resolvera marcar indelevelmente seu poema da “puta do soldado”, com o nome da ex-namorada. Já Leip desmentiria categoricamente esta versão, numa carta escrita a Margarethe Freud: ”Escrevi a canção na qualidade de fuzileiro da guarda, na véspera da mobilização para a Rússia, em abril de 1915 – ela não foi dedicada a nenhuma dançarina, nem a qualquer declamadora, e sim, a duas moças simples, das quais uma se chamava Lilli, e a outra, Marleen [...]”. Lilly Freud Marle, porém, jamais se pronunciou sobre a polêmica, dessa forma adensando as brumas do mistério.


Em e-mail que me enviou em 17 de abril de 2010, o Dr. Tögel diz não haver provas documentais do pretextado envolvimento entre o autor da canção mítica e a sobrinha de Freud: “A família Freud, principalmente Walter Freud, com quem mantive longa amizade, sempre repetiu essa estória. Mas eu prefiro admitir que foi alimentada, mais porque se insinua como teoria instigante, do que efetivamente sustentada por fatos”.


A carta de Margarethe, publicada no livro de Lilly Freud, editado por Tögel, foi prontamente reverberada por outros dois livros, "Lili Marleen. Canción de amor y muerte" (Alcantilado, Espanha, 2008), de Rosa Sala Rose, e "La véritable histoire de la plus belle chanson d’amour de tous les temps" (Télémaque, França, 2010), de Jean-Pierre Guéno. Em seu livro, Rose afirma que, exilada na Suécia, Lilly Freud Marle esteve "reducida a la miséria”.. Tögel replica energicamente: “definitivamente, Lilly jamais demorou-se na Suécia”.


O que importa, de fato, é a potencialidade de uma ironia histórica, insólita: se foi mesmo Lilly Freud a musa inspiradora, o fato comprovaria que em sua idolatria da "Lilli", a Wehrmacht e a SS de Adolf Hitler estavam homenageando - quem diria! - uma garota judia...


NOTAS


¹ “The German Campaign in the Balkans (Spring 1941), U.S. Army Center of Military

History Publication 104-4 (1986);

² Joseph Goebbels: "Das-eherne-Herz" -1942; Adrian Stewart: "The Early Battle of

Eighth Army: crusader to the Alamein Line 1941-1942" (2002);

³ Bernd Hartmann: ”Die Geschichte des Panzerregiment 05” - A história do 5º.

Regimento de Blindados - Ed. Bernd Hartmann (2005);

4 Fitzroy Maclean: "Eastern Approaches" (1949);

5 Hans Leip: "Ein halbes Jahrhundert" (1965); "Hans Leip” (1968);

6 Der Spiegel: “Frühling für Hitler und Lili Marleen” (19/01/81);

7 Lale Andersen: "Der Himmel hat viele Farben" / O céu tem muitas cores (1971);

8 Jan Feddersen, "526 Minuten unter der Laterne", Die Tageszeitung (19/11/2005);

9 " Lilly Freud Marle: “Mein Onkel Sigmund Freud. Erinnerungen an eine große Familie" /Meu tio Sigmund Freud - memórias de uma grande família, Aufbau (2006).