09 setembro 2010

Frederico Füllgraf - Lili Marleen, os 95 anos de um mito (parte 2/3)

Fotos: divulgação
Acima - fotos 1 e 2, da tomada de Belgrado;
Meio - blindados no deserto da Líbia, emblema do Afrikakorps de Rommel;
Embaixo - as cantoras Lucie Mannheim e Marlene Dietrich.

“Lilli”, 1937



Em1937, Leip - que por vezes adotava o pseudônimo Li-Shan Pe, nome de sonoridade "chinesa", mas na verdade um anagrama de Hans Leip – lança a antologia poética "Die kleine Hafenorgel / Pequeno realejo do porto", que incluía a "Canção de um jovem sentinela", agora acrescida de mais duas estrofes:


Deine Schritte kennt sie, Deinen zieren Gang. Alle Abend brennt sie.Mich vergaß sie lang.

Und sollte mir ein Leid geschehn, Wer wird bei der Laterne stehn mit dir, Lili Marleen ?

Aus dem stillen Raume, Aus der Erde Grund Hebt mich wie im Traume Dein verliebter Mund.

Wenn sich die späten Nebel drehn, Werd ich bei der Laterne stehn Wie einst, Lili Marleen.


(Na falta de versão brasileira, melhor, continuo com minha própria):


Teus passos ela intui Teu gracioso caminhar Brilha em todas as noites E se demora em deslembrar.

Mas se o infortúnio me acontecer Quem à lanterna irá atender Te rever Lili Marleen?

Do universo silencioso Da terra mais entranhada Me soergue feito sonho Tua boca enamorada

Quando remoinharem as névoas tardonhas Junto à lanterna tristonha Estarei como dantes, Lili Marleen...

Após duas tentativas fracassadas, de Leip e do compositor Rudolf Zink, entra em cena Norbert Schultze, de 26 anos. Rudolf “Rudi“ Zink, era amigo da cantora Lale Andersen, e autor de grande parte de seu repertório, no cabaré "Simpl“, de Munique, cujas melodias, segundo Schultze, tinham um quê de chanson, demasiadamente poéticas, com fraco apelo comercial.


E embora a versão original de Zink dialogasse bem melhor com o romantismo da letra, sua “Lilli” foi preterida pelo ritmo marcial da composição de Schulze, já sintonizado com o Zeitgeist militarista da época. Exilados os compositores judeus da Alemanha, o oportunista Schultze faz fama com marchas militares, tais como a pérola, "Bomben auf England" (Bombas sobre a Inglaterra).


Faltando menos de um mês para o assalto nazista à Polônia, em agosto de 1939, Schulze vence as resistências da gravadora Electrola, e Lale Andersen grava a música. Cautelosa, a Electrola manda imprimir apenas 700 discos, depois encalhados nas prateleiras das lojas, amargando longa hibernação.


Trama paralela: Rádio Belgrado


Tomada pelos alemães, a Rádio Belgrado fora rebatizada de "Soldatensender [emissora dos soldados] Radio Belgrad”. Mas seu novo diretor, o Ten. da Wehrmacht, Karl-Heinz Reintgen, vinte e cinco anos mal completos, literalmente estava no mato sem cachorro: tinham-lhe encomendado uma programação 24-horas-no-ar, mas ele só dispunha de 54 discos, velhos, para encher o ar de linguiça.


É quando entra em cena o alferes Richard Kistenmacher. Enviado por Reintgen a Viena, em missão de aquisição para a discoteca desfalcada, Kistenmacher desvia seu curso para "bivaquear" no apartamento de uma "potência amiga" (Der Spiegel, 19/01/81); uma amizade colorida que alimentava de noites movimentadas, anteriores à guerra. Dilapidando a discoteca de sua anfitriã, retorna leve e solto para Belgrado, carregando o butim musical, que protocola como "doação da Rádio de Viena".


"Tudo disco proibido!", recorda Reintgen, que a exemplo de Kistenmacher no pós-guerra tomaria gosto pelo rádio: ele empossado como redator-chefe da Rádio Saar, e aquele como repórter da SFB, da mesma rede, em Berlim. Mas naquele butim das baquelitas de 78rpm, contrabandeado de Viena, um título em especial chama sua atenção: a "Canção de uma jovem sentinela", ou simplesmente "Lilli Marleen”; até ali, ilustre música desconhecida.


Grande sacada! - vaticina Reintgen, pois sua melodia terminava com um acorde marcial estrondoso; tema para fechar com chave-de-ouro seu programa “Saudamos nossos ouvintes!”, produzido para o front. Durante toda uma semana, Reintgen enfeitiça o ar com aquelas “névoas tardonhas”, mas, enfastiado, em seguida retira as trovas melosas da programação. E chovem protestos e estrugem palavrões: milhares de cartas, a maioria delas do front africano, de Rommel, cobram o retorno de "Lilli"! É quando cai a ficha de Reintgen, que não imaginara que as ondas de seu programa transcendiam as fronteiras de Belgrado.


Lendo essas crônicas, deixei-me apanhar pelo devaneio, imaginando meu futuro pai entre os ouvintes daquela canção, que, preciso confessar, jamais conseguiu arrancar-me qualquer arrebatamento. Trama paralela, cujos meandros extrapolavam a narrativa do referido romance, assim mesmo decidi aprofundar-me e divulgar sua amplitude, porque a estória é virtualmente desconhecida no Brasil.


Rimas ferinas


Advertiu Rudolf Walter Leonhardt, escritor alemão do pós-guerra e especialista em canções de guerra, que ao timbre alto, "áspero, ligeiramente fumeiro", de Lale Andersen, os recrutas projetavam o que mais lhes apetecia: “a boa amiga, a amada casta, ou a garota de programa".


Joseph Goebbels desancou a Rádio Belgrado, com uma leitura acaçapantemente idêntica à do Estado Maior britânico, atribuindo "derrotismo" à composição de Leip & Schulze, taxando-a de "ladainha com cheiro a cadáver”. Mas a rádio da Wehrmacht não sofria a censura do ministério da propaganda, e a balada já estava na boca de milhões de soldados, dos russos inclusive, que a sussurravam às escondidas de seus comandantes.


Então Goebbels ameaça destruir a matriz da gravação de "Lili Marleen", decisão da qual recua, mas vingando-se, ao encomendar uma nova versão, calibrada como marcha nazista, e celebrizada como "trilha sonora" macabra nas campanhas assassinas dos Einsatzgruppen da SS.


Em todas as frentes são rimadas novas versões, cujas improvisações são assaz ousadas, por vezes abertamente pornográficas: "Ich drückt sie an den Pfosten (Apertei-a contra o poste Ela assustada) Mädchen, sei nicht dumm, denn die alte Funzel, die fällt beim Stoß nicht um (Garota, não seja boba, lamparina velha aguenta a estocada) So haben wir zum erstenmal gevögelt am Laternenpfahl mit der Lili Marleen (E assim demos nossa primeira trepada Com Lili Marleen no poste, escorada)"...


E apesar da resistência tardia dos alemães, muito antes da queda do tirano, uma versão escancaradamente política era rimada assim: "Unter der Laterne, vor der Reichskanzlei, da hängt unser Führer und auch der Robert Ley.(Debaixo da lanterna, defronte a chancelaria, está enforcado nosso Führer, e o Robert Ley, fodido) Und alle, die vorübergehn, wolln auch die andern hängen sehn, die andern der Partei" (E todos que passam por ali, querem ver pendurados os demais, o resto do partido"). Ninguém duvidará da poderosa evocação cósmica dessa última versão: apesar de vez por outra ressurgir na Argentina, Hitler cometeu suicídio, e Robert Ley, viripotente chefão da ”confederação sindical” nazista, DAF, ad verecundiam do “Führer”, foi condenado à morte pelo Tribunal de Crimes de Guerra, de Nuremberg, e efetivamente “pendurado”.


"Devant la caserne” e “Underneath the lantern...”


Entre ocupados e resistentes, os franceses também assoviavam a trova arrebatadora de “Lilli Marleen”. Pelo final de 1941, Henri Lemarchand adapta uma versão, fiel ao original de Leip, encomendada por Suzy Solidor, que estréia em janeiro de 1942, no cabaré "La Vie parisienne", em plena ocupação nazista:


Devant la caserne Quand le jour s'enfuit, La vieille lanterne Soudain s'allume et luit.

C'est dans ce coin là que le soir On s'attendait remplis d'espoir : Tous deux, Lily Marlène. :


Para enorme dissabor de Joseph Goebbels, em menos de seis meses foram vendidas 160 mil cópias de "Lilli Marleen”, em 1942, quando a canção sofre adaptações para 48 idiomas. Mas é nas areias do norte africano que ocorre o abracadabrante fenômeno: o estopim "Lilli" salta de uma trincheira para a outra, estabelecendo o curto-circuito lúdico das tropas inimigas.


Porém, depois que muitos recrutas britânicos levam homéricos esporros de superiores e do compositor J. J. Phillips, porque entoavam a canção em alemão, alguém do comando do 8º. Exército lembra-se que um disco da "Lilli" fora encontrado entre os despojos do Afrika-Korps, em Tobruk, indo parar nas mãos do letrista Tommie Connor. Primeiro resultado: em maio de 1943, duas versões de "Lilli Marleen", com letra de Connor e inconfundível swing jazzístico, são lançadas na Inglaterra, pelas vozes de Anne Shelton e Vera Lynn:


Underneath the lantern By the barrack gate Darling I remember The way you used to wait

T'was there that you whispered tenderly, That you loved me, You'd always be, My Lilli of the Lamplight, My own Lilli Marlene..


Segundo resultado: em 1944, é vendido meio milhão de cópias na Inglaterra - sucesso estrondoso!


O "efeito Casablanca"


E então ocorre o que estava esboçado num roteiro de filme de ficção, mas atropelado por tiros de verdade: o "efeito Casablanca", ou a retomada daquela cena em que a loira fatal diz ao pianista negro, "play it again, Sam!" E Sam (Doodley Williams) manda ver: It's still the same old story A fight for love and glory A case of do or die... Maio de 1943 é o fim da linha para o Afrika-Korps, no Saara.


Certo dia, depois do estrondoso sucesso de “Casablanca”, um diretor de filmes B, da Universal, surpreende Hal Wallis, produtor de “Casablanca”, com uma sinopse que daria continuidade à narrativa, engatando-se na última cena do filme. Nela, o Cap. Renault (Claude Rains) oferecera um negócio a Rick Blaine (Humprey Bogart), que após matar Strasser (Conrad Veidt), obviamente teria que fugir dos alemães. "Há uma guarnição francesa em Brazzaville. Eu poderia ser induzido a lhe arrumar a passagem”, diz Renault. É quando Rick o abraça, diz a última frase do filme, e fade out,... – THE END.


No novo roteiro, as tropas americanas desembarcam em Casablanca, expulsam os alemães, e Rick Blaine, recrutado como espião americano, é enviado para Tanger, onde deverá destruir um comando de sabotagem nazista. Isto faz, aproximando-se de Maria, outra chica fatal, mas seguidora fanática do Generalísimo Franco. Mata Hari again? Não importa! Ela é o contato dos alemães em Tanger. Que alertados pela chegada do americano misterioso, jogam a Maria em seus braços. O imprevisto: os dois se apaixonam. Já Laszlo, que ajudado por Rick e junto com Ilsa (Ingrid Bergmann) estava a caminho dos EUA, morre em Lisboa. Ilsa não pensa duas vezes, toma o primeiro avião de volta a Casablanca, para também jogar-se nos braços de Rick...


O filme jamais será rodado, porque desta vez a História não podia esperar pelo Cinema: em 8 de novembro de 1942, desembarcam, em Casablanca e Argel, mais de 100 mil soldados norte-americanos e britânicos - recém-banhados, barbeados e perfumados - abrindo a guerra de duas frentes, que em 13 de maio de 1943 obrigará o Gen. Hans Jürgen von Arnim, substituto de Rommel, a capitular em Túnis.


Antes disso, houve um interregno em Berlim: no dia 8 de abril de 1943, Rommel tentara negociar com Hitler as condições de uma eventual rendição, mas o ditador bateu o pé, proibindo-lhe retirar as tropas alemãs de solo africano. Diante de tal estapafúrdio, 130 mil alemães são aprisionados pelos Aliados, e Hitler amarga sua "segunda Stalingrado".


"Lilli", a guerrilheira da BBC


 Exilada em Londres, porque em sua genealogia germânica os nazistas haviam pinçado alguma "ramagem judaica", a atriz alemã, Lucie Mannheim (1899 -1976), ex-parceira de palco de Conrad Veidt (Nosferatu, Casablanca), ameaça roubar a cena a Shelton e Lynn, protagonizando a elégica personagem de Leip no curta-metragem "The True Story of Lilli Marlene", de Humphrey Jennings, e fazendo sucesso como Miss Smith, no thriller "The 39 Steps - Os 39 degraus" (1935), de Alfred Hitchcock.


Casando-se com Marius Goring - ator de cinema como ela, cujo sobrenome era de semelhança insólita com o do ministro nazista, Hermann Göring, e que metido num uniforme do exército, como supervisor dos programas em alemão, da BBC adota o pseudônimo "Charles Richardson" - Mannheim atua como destemida comentarista e intérprete de sua versão anti-hitlerista de "Lilli Marleen", cantada em alemão, na emissora britânica:


“Vielleicht fällst Du in Rußland, Vielleicht in Afrika, Doch irgendwo da fällst Du, So will's Dein Führer ja.

Und wenn wir doch uns wiederseh'n, Oh möge die Laterne steh'n In einem ander'n Deutschland! Deine Lili Marleen

Der Führer ist ein Schinder, Das seh'n wir hier genau. Zu Waisen macht er Kinder, Zur Witwe jede Frau.

Und wer an allem schuld ist, den Will ich an der Laterne seh'n! Hängt ihn an die Laterne! Deine Lili Marleen... ”


Quem sabe caias na Rússia Talvez lá na África Em algum lugar vais morrer com certeza Pois o Führer quer ver você tombar.

E se apesar disso tudo voltarmos a nos reencontrar Quisera essa lanterna plantada em outra Alemanha! Tua Lilli Marleen

O Führer é um carrasco O que mais que você quer? Faz das crianças, órfãos E viúva de toda mulher.

E quem tiver a culpa em tudo isso Quero ver pendurado no facho! Pois o pendurem feito cacho! Tua Lilli Marleen...


Mannheim faz furor na Alemanha, e Goebbels institui a pena de alta traição para os ouvintes clandestinos da BBC.

Em cena, "O Anjo Azul"


Marlene Dietrich

Underneath the lantern era mesmo uma versão muito
 exitosa, sobretudo fiel ao romance do soldadinho, mas as tropas americanas atribuíam a maternidade àquela "Marleen", em carne e osso, com sua voz lânguida, de sotaque inglês concupiscente, e nada menos que nascida em Berlim – la Dietrich!


Capitaneado pelo exército americano e protagonizado por Marlene Dietrich, a partir de 1944 tem início um terceiro ciclo de recepção do fenômeno "Lilli Marleen". Midiatizada pela Paramount, como "réplica alemã" a Greta Garbo, e cultuada como diva de "O anjo azul" (1932) e "Marrocos" (1935), dirigidos por Josef von Sternberg, Dietrich também tinha convicções firmes, jamais tergiversando com o nazismo, que fez das tripas coração para cobrir seu "passe", de volta à Alemanha, de onde se ausentara em 1931.


Entre 1942 a 1943, já se apresentara a 250 mil tropas dos EUA, no Pacífico, e recrutada pelo projeto "Musac", lançado em 1944 pelo Departamento de Serviços Estratégicos (OSS), para desmoralizar as linhas inimigas com música, Dietrich sai a campo.


Mochila às costas, ela parte em turnê às linhas do front aliado, na Argélia, Itália, Inglaterra e França, incentivando a luta contra o nazi-fascismo, com um repertório que incluía "The boys in the Backroom" (do filme "Destry rides again" / O grande blefe), e a indefectível "Lilli Marleen", numa versão de sua própria lavra:


When we are marching in the mud and cold, And when my pack seems more than I can hold,

My love for you renews my might, I’m warm again, My pack is light, It’s you Lili Marlene, It’s you Lili Marlene...


“Lilli” na campanha da Itália


Mussolini fora derrubado e subitamente a Itália, sempre surpreendendo, mudara de lado...


“Ma che cazzo succede!" - indignam-se os moradores das primeiras cidades liberadas da Sicília, quando os soldados do 5º. Exército dos EUA subiam os morros escarpados, cantando e assoviando "Lili Marleen". A primeira reação foi de pânico, e o Gen. Mark W. Clark ficou visivelmente encabulado, quando lhe disseram: "Olha aqui ó, durante meses tivemos que suportar os alemães, que não paravam de cantar essa melodia, e agora chegam vocês e continua a mesma ladainha?"


De queixo caído, em seguida os sicilianos presenciaram o desembarque dos ingleses, que saltam dos barcos, cantando "The Ballad of the D-Day Dodgers", sobre a mesma odiosa melodia de "Lilli Marleen":


We landed in Salerno, a holiday with pay Jerry brought the band out to cheer us on our way
Showed us the sights and gave us tea We all sang songs, the beer was free
To welcome D-Day Dodgers To sunny Italy…


"Seria realmente divertido", observou John Steinbeck, escritor arrebatado pela música, "se depois de toda a tonitruência e os berros de Heil!, se depois das marchas e toda aquela doutrinação, a única contribuição dos nazistas para o mundo teria sido 'Lili Marleen´". Já Ernest Hemingway babava com a voz (obviamente não com ela, apenas), de Marlene Dietrich: "Se ela não tivesse nada além, bastaria a voz para romper teu coração".


Luis Fernando Moreno Claros (Letras Libres, 2009), observou que Dietrich "expressa[va] os ideais politicamente corretos dos Aliados”. O que fez, rejeitando o caráter mórbido da versão original, na qual o soldadinho morre, promovendo sua ressurreição. A ironia dessa vivificação é que, com intenções opostas, a crítica de Goebbels se insurgira exatamente contra aquele "sabor a cadáver". Contudo, quem efetivamente “desnazificou” "Lili Marleen", foi Lucie Mannheim, e Marlene Dietrich a massificou; a OSS e Hollywood tinham mais bala na agulha do que a brava, mas limitada BBC.


Youtube - Lucie Mannheim, "Lilli Marleen"

Nenhum comentário: