14 setembro 2010

Frederico Füllgraf - O chulé de Penélope Cruz

 
Fotos: divulgação

Crônica

Esta é uma crônica de percepções muito íntimas, que me arrisco a revelar, vividas no  gozo estético da sétima arte, tornado interrupto. Democrata convicto, concedo o direito à réplica a quem duvidar das minhas aptidões olfativas, mas – excluídos os portadores de deficiências como nariz empinado e outras empáfias do sistema psico-otorrinóide, característico dos maus administradores da coisa pública - desafio qualquer cinéfilo a submeter-se à mesma experiência naso-perceptiva. Admitido o próprio espanto, ninguém se esquivará em dar-me a mão à palmatória.

Preciso advertir que as estranhas sensações olfativas e fantasias daí decorrentes, têm sua própria geografia do cheiro - estão circunscritas às salas de projeção do circuito de cinemas da Fundação Cultural de Curitiba. Suspeito (suspeita à qual associar-se-á o leitor no final da presente), que o fenômeno tem raízes políticas, e deleitar-me-ei em partilhar algumas ilações teóricas sobre o trinômio “cinema-de-arte-administrações municipais-& impactos olfativos na transição neoliberal declarada, para a disfarçada”; ou vice-versa...

Por menos desenvolvido que seja seu domínio dos sentidos, qualquer cinéfilo que adentra a sala escura haverá de concordar  que o choque entre os holofotes da Fox (com sua luz branca e dura das lanternas dos torturadores) e nossas pupilas dilatadas (de “interrogados”,  acossados  contra o encosto das poltronas), lança-nos num buraco negro, sem moldura, infinito, aniquilando nosso sentido de orientação espacial e nossa capacidade de localizar qualquer foco irradiador de cheiros.

Contudo, é exatamente esta blitzkrieg hipnótica nos teatros globalizados de operações audiovisuais, chamados “salas multiplex”, que me fez suspeitar imediatamente de um ato de sabotagem perpetrado por uma dessas distribuidoras hollywoodianas contra a rede de cinemas públicos de Curitiba – suspeita reforçada após assistir a meia dúzia de reportagens da série “Conspirações” do canal People + Arts. Lembrando-me vivamente do extraordinário quebra-cabeças que vincula o assassinato de Marilyn Monroe pelo FBI, aos ETs acidentados no Arizona, elucidado e escondido pela  “brava CIA”, teci minha teoria da conspiração e saí do cinema convicto de que o chulé de Penélope Cruz e a catinga do sovaco de Humphrey Bogart não passavam de ovos podres escondidos pela Universal debaixo das poltronas dos cinemas de arte curitibanos...

Quem duvidar, olfatará!
Minha primeira experiência ocorreu há seis anos, no ex- Cine Ritz, vitimado pelas obras de ampliação de uma dessas marcas de roupa barata, de consumo de massa. Denúncia desdenhada, atualizo e re-publico a presente pela terceira vez, agora em cadeia global... Ansioso para rever Greta, paixão inalcançável, fatal, da minha juventude, fui assistir Flesh and the Devil, no qual la Garbo contracena com John Gilbert ao piano. Na vida real, Gilbert era caidaço por Greta e foi, como tantos outros pretendentes, cruelmente esnobado por ela; minha fantasia inclusive. Embora já na abertura sensuais guirlandas de fumaça dançassem sobre o cachimbo de Gilbert, perturbou-me a sensação de cheiro milimetricamente sincronizado de mictório masculino, do acre odor de latrina sem descarga, ao invés do buquê achocolatado de tabaco “Half & Half” usado por Gilbert. No escuro, passei em revista panorâmica o auditório na tentativa de flagrar a repentina palidez, o surto de tosse simulado, o cínico olhar blasé, típico dos réus-autores de “puns” flagrados em elevadores, mas nenhum rosto suspeito com o olhar de soslaio dos réus confessos, cruzou minha perspectiva...

O desconforto aumentava com cada tragada de Gilbert, cujo fumo emanava os odores de palha de milho molhada. Cheguei a sentir-me acuado quando percebi que as ondas de catinga invadiam furiosamente a sala, de fora para dentro, por trás da tela, por baixo da cortina da entrada, por todas as frestas de luz ! Quando, porém, Greta, bebendo apoiada sobre o piano de Gilbert, abriu o braço esquerdo, numa de suas raras gargalhadas, sacudindo a sala com nova onda de pressão mal-cheirosa (desta vez com aroma de axila mal desodorizada), decidi abandonar, humilhado, a diva à sedução de meu rival-otário. Apressei-me em ganhar os degraus da escada, rumo à liberdade e ao ar fresco, à beira da calçada, que não deixei de perscrutar com olhar severo, em busca do cadáver de alguma ratazana atropelada pelos carros estacionados ao lado do bueiro.

Decidido a matar a charada fedorenta, pensei em interpelar a administração da Cinemateca de Curitiba, então coordenada por um amigo de longa data.  Recuei, intuindo  que a notícia balançaria a vaidade do amigo; o que não era uma boa idéia. Pensando melhor, percebi que o mais prudente seria  “dar um tempo”  para o cinema-cabeça... Mas a curiosa notícia de que todos os closes de Nicole Kidman no re-lançamento de Batman Forever eram sincronizados com rajadas irisadas de Kenzo Bambus, doce-amadeirado, sobre o público de certa sala multiplex, re-alojou minha conjetura de que a originalíssima campanha de marketing estava sincronizada simultaneamente com o descrédito dos cinemas-de-arte da nossa administração municipal – yesss !


Resolvi então diluir as lembranças fétidas do filme-de-arte, mas também prevenir-me contra a tentação leviana do consumo do filme-de-ação. Mal sabia eu que minha imunidade estava com os dias contados. Arrebatado pela carne trêmula da escultural Penélope Cruz, em Volaverunt, de Bigas Luna, retornei a um cinema da fundação cultural; desta vez ao venturoso Cine Luz. O aviso à entrada - “Ar condicionado com defeito !” - insinuou-se como o primeiro alerta de que arrastar-se “ao Luz pela Cruz” já estava marcado pela sina do calvário...

Éramos não mais que vinte gatos pingados, distribuídos pelas 150 poltronas de falso couro, pegajoso, mal disfarçado de pele de antílope. Portas fechadas, sala escurecida, bastou a tenra insinuação do primeiro intercurso da fogosa castelhana, e a primeira onda odorífera esbofeteou o rosto dos espectadores, já coberto pela brotoeja da transpiração: cheiro inequívoco de toalete masculino mesclado com lufadas de lingerie feminina, com prazo de lavagem vencido... Com os seis sentidos em estado de alerta máximo, levantei-me da poltrona em plano sincronizado com a imagem do galã com pinta de toureiro, tirando as botas dos pés inchados... – momento em que a sala rangia debaixo de violenta rajada de odor, desta vez de chulé...

Desconfiado do sincronismo, exortei o público para uma busca da fonte geradora da insuportável fedentina, que suspeitei ser de origem criminosa, provocada, sem dúvida, pelo braço audiovisual do Pentágono. Qual não foi nosso estupor, ao perseguirmos à risca, a pista invisível mas indelével dos malfazejos odores, e batermos com os narizes nas portas das latrinas escancaradas! Justificou o bilheteiro que há mais de dois anos faltavam verbas para o material de limpeza e óleo lubrificante para as dobradiças enferrujadas das portas; verba que sobra, multiplicada por milhões, para a contratação de suspeitos consultores de “projetos especiais” da dita fundação, do eixo Rio-São Paulo... Algum espertinho da fundação teria sugerido ainda que, portas assim, vaivém, lembrariam os saloons do velho oeste e confeririam um visual hiper-real aos cinemas...

Estava mapeado, enfim, o foco das malcheirosas emanações em estado gasoso que, a cada dia, tornam a freqüência de um “cinema-de-arte” municipal em experiência desprovida de gozo - para a gozação dos franqueados das salas multiplex e dos pastores do Bispo Macedo! Apreensivo, aguardo a notícia fatal: desinfetado e desratizado, mais um cinema da cidade é libertado da sedução da carne e do bafo do demônio, para dar as bem-vindas ao Senhor... Em que templo, diabos!, voltarei a adorar minhas musas?

Sobre a Lilli Marleen de Frederico

Manoel de Andrade
Poeta e ensaísta

Eu já tinha ouvido “Lilli Marleen” na voz de Marlene Dietrich, mas não imaginava que aquele poema, transformado em música, tivesse uma trajetória tão fantástica e nem que Hans Leip tivesse sido um escritor tão fecundo. Quantos vultos famosos da história europeia estiveram, direta ou indiretamente, relacionados com essa célebre canção!!! A  interculturalidade com que o texto é escrito leva-nos a caminhar pelos fronts históricos e geográficos da Segunda Grande Guerra, bem como pelos seus bastidores,  chocando-nos com o terror da censura nazista sobre a cultura. Era a ironia da própria guerra trazendo, depois do bombardeiro alemão de Belgrado, o som radiofônico de uma canção ouvida e apreciada, a despeito da proibição de Goebbels, pelo prestígio do General  Rommel e seus soldados nas areias da África. Como um rastilho de pólvora a parceria poético-musical Leip&Shultze começa correndo acesa, no idioma de Goethe, pelas trincheiras nazistas e aliadas, mas seu encantamento vai explodir também nos ouvidos dos soldados russos. 

          O rigor intelectual com que Frederico Füllgraf vasculhou e constatou, pela crítica documental de suas fontes, a autenticidade dos fatos, conduz o leitor pelos estranhos atalhos desse fantástico fenômeno musical, para nos apresentar uma admirável pesquisa sobre quase um século de vida do tão discutido poema-musical alemão. Seu ensaio envolve-nos com a história do um jovem soldado, saudoso da namorada, que lhe inspira, no campo de batalha, seus primeiros versos. Esse romântico enredo de guerra lembra o grande poema “Espera-me” que o poeta e dramaturgo russo Konstantin Simonov, escreveu, em 1941, no front de guerra contra os alemães à sua querida Valentina Serova. Traduzido para muitos idiomas, e para o português, com incomparável beleza lírica, por Hélio do  Soveral, Espera-me  ou Espera por mim é um dos mais conhecidos poemas da Rússia. A sensibilidade de Cleto de Assis escreveu a essência comovente dessa história no seu site Banco da Poesia:
http://cdeassis.wordpress.com/2009/06/19/poema-de-amor-e-guerra/
        Abro aqui um parêntesis, fugindo do estrito significado musical do texto, para considerar as grandes motivações que o fenômeno da guerra tem trazido à criação poética e musical, propiciando produções ou veiculando versos de infinita beleza. Por certo a Ilíada e a Odisseia não existiriam sem a Guerra de Troia, nem a Itália teria seu grande poema épico se o início das Cruzadas não inspirasse Torquato Tasso a escrever Jerusalém Libertada. A Chanson d’Automne, de Paul  Verlaine, não seria tão conhecida se não fosse  enviada também por rádio, como uma senha, à Resistência Francesa anunciando o desembarque aliado na  Normandia e determinando o fim do Terceiro Reich, que pretendia durar mil anos. Que honra maior poderia ter um poema, abrindo com o lirismo e o suave encanto dos seus versos, as portas da liberdade do continente europeu dominado pelo nazismo?  E neste contexto as comparações se derivam para as canções que inspiraram a resistência revolucionária nas guerras civis que abalaram o mundo e se celebrizaram com o nome Marselhesa, na França revolucionária e como  Le chant des Partisans, entoado pela Resistência, na França invadida pelos exército alemão. Com o mesmo ardor  se cantava Se me quieres escribir e Viva la Quinta Brigada, na Guerra Civil Espanhola. E assim foi, ao som da Bandiera  Rossa e Bella Ciao na Itália,  Nicaragua Nicaraguita, cantada pelos sandinista, Venceremos, no Chile socialista, onde Viva Chile Mierda, de Fernando Alegria, foi o poema mais declamado durante o governo de Salvador Allende.  Aqui, no Brasil, a canção Caminhando, de Geraldo Vandré, foi o hino revolucionário com que a nação inteira  protestou, cantando, contra a ditadura militar.

           Voltando à história sentimental do soldado Hans Leip e seu poema, e considerando a amplitude do texto, creio ser interessante repicar, neste comentário, alguns aspectos marcantes no longo artigo de Frederico Füllgraf.  Primeiramente o encanto musical das emissões diárias da “canção de um jovem sentinela” pela rádio de Belgrado, polarizando a longínqua atenção dos soldados alemães no norte da África. A transmissão, captada também na região pelos soldados britânicos, levou o orgulho militar inglês, sob o comando de Montgomery,  a criar uma sarcástica versão política de “Lilli Marleen” ironizando Hitler  e o partido nazista. O autor nos fala da canção na voz radiofônica da BBC e de meio milhão de discos vendidos, em 1944, na Inglaterra e sua versão adaptada para 50 idiomas. Detalha a biografia conturbada e trágica de Lale Andersen e depois sua turnê pela Coréia e Indochina.  A segunda grande intérprete da canção é Lucie Mannnheim, chegando enfim a Marlene Dietrich, que foi a mascote musical dos aliados correndo os Estados Unidos e a Europa com “Lilli Marleen” nos lábios e as grandes platéias aos seus pés. Os intérpretes da famosa canção se sucedem, no incrível caleidoscópio de informações --- que transpiram normalmente por todos os neurônios do Frederico que conhecemos, ---  passando por Edith Piaf e Bing Crosby, e por interpretações contemporâneas  na voz da cantora francesa   Patrícia Kaas, comemorando, em 2005, os 60 anos do Dia “D”.

        O texto, entre outras tantas revelações e curiosidades, traz uma passagem pitoresca envolvendo Winston Churchill e seu pesadelo com o General Rommel, em torno da sua preferência pela canção. Refere-se também a uma misteriosa versão judaica feita por Stefan Zweig. O ponto alto do texto é a referência a uma edição de 2006 do livro em que a autora, Lilly Freud Marlé,  sobrinha de Freud, revela ser a pessoa que inspirou Hans Leip a escrever o poema que gerou a composição musical “Lilli Marleen”, versão reiterada por outros descendentes de Freud.
               Finalmente é surpreendente constatar que as sementes lançadas há noventa e cinco anos por um simples poema que se tornou canção, tenha se aberto em tantas flores musicais pelos idiomas do mundo inteiro, inclusive uma versão judaica de nome Lili, em homenagem à pára-quedista  Hannah Senesh, morta em Budapeste pela Gestapo,  e geram ainda, ano a ano, tantos frutos “saborosos” para a viúva de Leip e mantenham repletos os celeiros amoedados do compositor Norbert Schultze.
                 Parabenizando o autor pela dimensão crítica e historiográfica do seu trabalho,  ressalto as duas ironias genialmente bem colocadas: a primeira que “Lilli Marleen” foi a única contribuição dos nazistas para o mundo”. E a segunda ironizando a primeira: que uma musa judia seria a inspiradora da mais célebre canção nazista.