09 novembro 2013

Frederico Füllgraf - Morte de Pablo Neruda: crônica sem fim

Ilustrações: diulgação

Pablo Neruda morreu de câncer, e não por envenenamento”. Foi o que afirmou em coletiva à imprensa, realizada na sexta-feira, 8 de novembro, o diretor do IML do Chile, Dr. Patrício Bustos,ao divulgar o laudo unificado de legistas espanhóis, chilenos e norte-americanos, que desde 5 de novembro último se reuniam a portas fechadas no Hotel Fundador, de Santiago,sobre a causa mortis do Prêmio Nobel de Literatura.

Bustos admitiu, porém, que “há substâncias que desaparecem com rapidez, isso é possível", ao comentar a tese do assassinato de Neruda por envenenamento, defendida insistentemente por Manuel Araya, ex-chofer do poeta, tese que em 2011 motivou o juiz Mario Carroza à abertura do processo de investigação e, em abril do ano em curso, à exumação dos despojos do poeta em Isla Negra, litoral central do Chile.

O diretor do IML – ele mesmo um ex-militante do MIR, preso e barbamente torturado pelos sicários da DINA – detalhou os exames realizados em amostras ósseas de Neruda, assinalando que várias regiões de seu corpo apresentavam lesões metastáticas, que permitiam confirmar, “através de diversas técnicas complementares entre si”, uma correspondência com a doença.


O Judiciário chileno não poupou recursos, contratando perícias de doze legistas, alguns internacionalmente respeitados, como o espanhol Francisco Etxeberría – autor do relatório que confirmou o assassínio do poeta Federico García Lorca, mas que abriu polêmica, afirmando que o presidente Salvador Allende se suicidou - e a toxicóloga norte-americana, Ruth Winecke, da Universidade da Carolina do Norte.


Trabalhando separadamente, as universidades do Chile, da Carolina do Norte e Múrcia confirmaram em suas análises a ocorrência de resíduos de produtos farmacéuticos para tratamento de enfermidades cancerosas, específicamente do câncer de próstata, empregados à época, mas que “não foram encontrados agentes químicos relevantes que poderiam ser relacionados ao desenlace da morte do poeta”. Ou dito de forma mais elíptica, conforme Bustos, “não se encontrou evidência forense alguma que permita estabelecer uma etimología médico-legal por causas não naturais na morte do senhor Pablo Neruda".


Incongruências



O mais forte motivo do magistrado Mario Carroza ao determinar a exumação dos depojos de Neruda, foi a necessidade de realizar análises toxicológicas, depois que testemunhas e documentos da época – a denúncia do chofer Manuel Araya de uma suposta injeção letal, mas também a notícia de El Mercurio, de 24/9/1973, informando que o poeta falecera por parada cardíaca após aplicação de uma injeção – desmentiram o primeiro laudo oficial da Clínica Santa Maria, segundo o qual Neruda fora vitimado por “caquexia degenerativa como efeito de câncer de próstata” pesando pouco mais de 40 Kg.

Carroza, que não é adepto de teorias da conspiração, aventou todas as possibilidades, começando pela mais inofensiva, como a aplicação de uma injeção com analgésico ou calmantes, pois Neruda sofria também de gota e estava emocionalmente impactado com os efeitos do golpe militar de 11 de setembro de 1973.

Contudo, o que não se entende são dois aspectos: primeiro, por que Carroza não determinou como primeira medida a realização de testes de DNA, para dissipar dúvidas agora semeadas pelo advogado Eduardo Contreras, do Partido Comunista, quanto à autenticidade dos despojos de Neruda. Com certa razão, Contreras alerta para as operações de ocultação e desaparecimento de cadáveres de vítimas da repressão do Terrorismo de Estado. Em segundo lugar, somente em julho, três meses após a exumação, realizada em abril de 2013, Carroza determinou o envio das amostras ósseas ao exterior.

"Não há exames que poderiam ter sido feitos e que não fizemos!”, afirmam os legistas em seu relatório, e o Dr. Bustos sai em sua defesa, esclarecendo, por exemplo, que, “caso tivesse sido empregada toxina botulínica, a morte teria ocorrido com maior rapidez” que a de Neruda, ocorrida ao cabo de 10 horas.

Por outro lado, Bustos admite o que a maioria dos observadores comentava desde a exumação de Neruda: caso o poeta de fato tenha sofrido um atentado químico, “há substâncias que desaparecem com rapidez - isso é possível".


Intrigante volta atrás


Por um lado esperado, porque em relatório ao juiz Carroza, de 8 de março de 2012, o tanatólogo Germán Tapia Coppa, do SML, afirmara taxativamente que Neruda fora vitimado pelo câncer, dispensando qualquer exumação, por outro, o laudo forense unificado de 8 de novembro de 2013 representa uma regressão à estaca zero das investigações.

Mistério insondável, parece reinar senão uma guerra, pelo menos uma disputa clandestina no seio da comunidade forense, marcada pela contra-informação.

No dia 23 de setembro passado, data do 40º aniversário da morte de Neruda, a respeitada rede Rádio Biobío mandou ao ar a seguinte notícia:Peritajes de restos de Neruda descartan que haya fallecido producto del cáncer que lo afectaba”. Sem detalhar e citar sua fonte, a matéria continuava: “En cambio, habría sido un paro cardio-respiratorio la causa de su fallecimiento”. O comunicado finalizava: “Durante el 40° aniversario de su fallecimiento, nuevas luces sobre la verdad de su muerte salen a la superficie (o grifo é meu). Según consignó Radio Bío Bío, los expertos a cargo de las pericias y exámenes de los restos del poeta descartaron que haya sido el cáncer el que gatilló su deceso...”. No mesmo dia, a notícia foi reverberada pela esforçada CNN Chile – e ficou por isso.


A rigor, sobre a morte de Neruda há três diagnósticos diferentes e excludentes, todos eles emitidos no dia 24 de setembro de 1973.


Já citado, o atestado de óbito assinado pelo Dr. Roberto Vargas Salazar, médico que acompanhava o câncer de Neruda, aponta uma "caquexia cancerosa" que deixara o poeta reduzido a "40 Kg de peso". Não é o que ilustram as fotos de Evandro Teixeira, clicadas no dia 24 de setembro na morgue da Clínica Santa Maria, que tive a oportunidade de resgatar na reportagem “Crônica de um assassinato presumido”, publicada na edição de nº 70 da revista Brasileiros. Apesar de clicadas de perfil, confirmaram as lembranças de Manuel Araya: Neruda pesava pelo menos 100 kilos, sempre insistiu o ex-chofer.


Curiosamente, no mesmo dia em que Vargas Salazar protocolava como causa mortis o diagnóstico da caquexia cancerosa, o jornal El Mercurio noticiava que Neruda falecera em virtude de um "paro cardíaco por inyección".



Em 5 de junho de 2013, a edição online do Clarin chileno publicou minha redescoberta, no de Janeiro, da matéria de 24 de setembro de 1973 do enviado especial do Jornal do Brasil a Santiago, Paulo César Araújo, acompanhado do fotógrafo Evandro Teixeira, que reproduzia o boletim médico de certo Dr. Sergio Drapper Juliet, segundo o qual Neruda fenecera “vítima de infecção urinária crônica e flebitis”. 

Até junho de 2013, esta versão da morte do poeta era completamente desconhecida no Chile, e alarmou o juiz Mario Carroza.

¿Es la Clínica Santa María un laberinto?”, questionava o semanário Cambio 21 em sua edição de 13/6/2013, lembrando que na mesma clínica, em janeiro de 1982, falecera o ex-presidente Eduardo Frei Montalva, adversário de Allende, depois inimigo de Pinochet. A Justiça acabou provando que Frei foi assassinado com doses homeopáticas de gás mostarda produzido em laboratórios clandestinos da DINA. Identificados e processados, os assassinos cumprem pena.

Reações

Antes mesmo da divulgação do laudo do SML, os advogados Rodolfo Reyes, sobrinho de Neruda, e Eduardo Contreras, do PC, já vinham acenando com a continuidade do processo, virtualmente descrentes de um resultado que confirmasse a tese do envenenamento.

Contreras sugere ao juiz Carroza enviar novas amostras dos despojos de Neruda para especialistas forenses prestigiosos como Bhushan Kapur, do Canadá, mas também para a Suíça, Suécia e Áustria, países considerados de confiança.

Em uma leitura diferente da do IML, o juiz Mario Carroza foi enfático ao advertir que “judicialmente ainda não se pode afirmar se o poeta foi assassinado ou não”. Concordando com os queixosos, garantiu que "se for necessário, serão realizadas novas perícias, sem prejuízo de prazo, porque o processo aberto sobre a morte de Pablo Neruda não se encerrará".

Sepultado pela primeira vez em 25 de setembro de 1973, no Cemitério Geral de Santiago, durante a que foi a primeira manifestação popular de repúdio à ditadura que acabara de se instalar no poder, 17 anos mais tarde, o corpo de Neruda foi transladado para o jardim de sua casa, em Isla Negra, onde repousava ao lado de sua terceira esposa, Matilde Urrutia. Exumado em 8 de abril de 2013, seus despojos foram distribuídos por três continentes.

Há quem se incomode com a nova alegoria que assoma no horizonte, mas pretende a escatologia que, se cumprida a determinação dos parentes e do juiz Carroza, de exigir novos exames forenses, agora o corpo de Neruda derrama-se pelo mundo, como já o fizera sua poesia.