26 maio 2012

Frederico Füllgraf - Joana em Tordesilhas

Ilustrações: divulgação Valladolid


Fragmento para palco

Derrubada ali no chão empedrado, olha para o canto escuro de sua cela e transfixa o negrume; a percepção do tempo esboroada. Tenta remir-se: dezenove, vinte... – há quantas invernadas estou aqui? Divaga, perde-se. Ouve como se fosse ontem, a melodia de Falai miña amor, que, ainda menina, lhe ensinaram a acompanhar com o al-ahud. Oh, Felipe, falai, falai! Não, não... - Muy triste será mi vida ...



Chora. E não se detém quando a porta se abre e se aproximam as criadas: – Señora, estais fedendo, faz três semanas que não vos banhais e trocais a roupa imunda!

Sacodem-na, tentam devolvê-la ao mundo, mas La Reyna está absorta. Com o dedo indicador direito cruzando os lábios cerrados, pede que façam silêncio. - Ouçam: Mille regretz – ah, como é doce Joaquín Desprez!...


As serviçais desistem. Irritam-se, agridem-na: ¡Reyna cochina!

Com os pés empurram à “porca” o tabuleiro com o grude do almoço e retiram-se. Antes que alcancem novamente a porta, ela lhes atira a assadeira às costas: - ¡Perras insolentes - vejam como me queimaram os braços e os peitos com a água sempre escaldante!


A pesada tranca cai na fechadura, o ruído ferroso e mecânico estruge nas rudes paredes.


- ¡Ai, Felipe, mein Lieber, amor meu! Soubesses o que El Rey, teu sogro, meu pai, me fez, ¡mí vida!


Reincorporada, geme o queixume de todos os dias. Chora, desamparada. ¿Y tu, por que te fuíste así nomás, por que me abandonaste, Muy Señor mío? Durante cinco dias ninei-te em meus braços e desalentei minhas lágrimas ao vento da aurora, para arrefecer as tuas febres...


Agora apenas sussurra: - Ai, invejosa Senhora de Castela, minha mãe severa e alheada: por que sempre me chamastes de vossa “sogra”? Acaso, porque tive semelhança e a beleza de doña Juana Enríquez, minha avó? E agora estais, todos, passados...


Levanta-se, vai até a porta, bate com os punhos até rachar-lhe a pele ressequida, brotar-lhe o sangue das mãos descarnadas: - Desalmados, tragam-me pelo menos tinta e papel, quero escrever à minha filha, a Rainha de Portugal!


Partiu para Lisboa, Catalina, a caçula, a única que lhe restava, ali no calabouço. Tornou-se rainha após quinze anos de degredo ao lado da mãe. “Degredo”, não: proteção! Defende-se: lá fora a menina corria risco de assassinato.


Restituída à solidão, fica ali amuada durante três dias; as lembranças sangrando nas emendas do pedral. Recordações incertas, fora de ordem. Passado sem conserto, dilacerante. Útero viçoso, ela sabia, sim, que não deveria ter deixado a cama naquele 24 de fevereiro de 1500. Mas Felipe estaria cercado de muitas mulheres da corte naquele sarau, por isso insistiu em acompanhá-lo; apesar de que afirmem que o fazia para vigiá-lo... E de súbito aquele mal-estar..., e pensaram que era um “apertão”. Daí a corrida para a pequena retrete do salão, mas tinha-lhe estourado a bolsa. E ali mesmo, na latrina, nasceu-lhe Carlos – uma vergonha, ¡vaya! Mas estava possessa de ciúmes...


Uma réstia de sol esgueira-se pelas grades da janela da fortaleza, tingindo de amarelo o domo das paredes arqueadas, alcançando-a no chão, aquecendo-lhe a barriga da perna esquerda. O prazer acende em sua memória uma imagem picaresca: a perna!


Ri-se. Agosto de 1496, mal tinha completado dezessete anos, e casaram-na em Valladolid. Per Procurationem. Quer dizer: Felipe, o noivo, não estava de corpo presente. Em seu lugar tomou-a como esposa Boudewijn, filho bastardo do bisavô do prometido, pela linha materna. Embora simbólicas, foram núpcias com o rigor da lei. No entanto, para tornar-se indissolúvel, o casamento tinha que ser “consumado“ mediante a cópula da defloração; simulada, neste caso. E isto fez o procurador, metendo sua perna direita, nua, debaixo das cobertas da noiva, mantendo-a lá por alguns instantes infecundos.


- ¡Úi, que asco! Lembra-se: era fria, branca e definhada, a perna do velho... Em compensação foi amor à primeira vista, quando finalmente encontrou em Antuérpia o esposo titular, ilustre desconhecido. Que em vez de comparecer ao altar em Espanha, decidira distrair-se com uma caçada nos Alpes... ¿Por qué, Felipe, por qué??


Às vezes assaltam-na os presságios dos quadros de Yeronimus. Había una abuela loca, sim, mas o entorno de sua mãe Isabel, fria e despótica, abatera seu estado anímico. Eram freqüentes suas prostrações, seus desmaios e surtos. Seu amado Felipe era o único naquele nefasto ambiente, que...


- Ai, Felipe, te quería tanto! Naquele santiamém bastava que mirasses no fundo de meus olhos, que me acarinhasses, e eu renascia, ¡mí vida!


Cala-se, o rosto crispa-se, quando pesca na lembrança aquele fatídico 19 de dezembro de 1502. Felipe deixava Castela, retornando a Flandres. Envolvido em mais uma guerra contra a França, mas prudente, preferiu deixar a esposa, novamente grávida, em segurança em Espanha. Ela não suportara a separação, caindo em profunda melancolia; anoréxica e insone. Três meses depois dando à luz um filho sadio: Fernando.


– ¿Pero, quien, al final, era la loca?


Maleva, Isabel espiava todos os movimentos da filha, violando sua correspondência. Impediu-a de viajar, ao encontro do marido, mandando alçar as pontes levadiças do castelo de La Mota. Demorou meses a permissão para a viagem, mas o pequenino Fernando ficou em Espanha. Mais uma separação, novo despedaçamento. E então estourou a relação estremecida entre as duas mulheres. Arrostou aquela mãe-rainha – católica, gorda e feia – e despejou-lhe na carranca todo seu antojo; um mar de fel de filha desabrigada.


Agora, como se estivessem de novo frente a frente, fala-lhe:- No, no, Señora Isabel, não “enlouqueci“ depois das bodas! Com meus irmãos, educação com agasalho, amor, não tive. Em vossas invulgares presenças, Señora, desfilastes dominadora. De pequeninos nos tratastes com castidade, sem esconderdes Vossa cobiça - ¿No Os acordáis? Empunhei a flauta, chamei-vos, Señora, escutai: La Tricotea, Al campo de flores, de Alonso Perez de Alba. Mas Vós não me destes ouvidos. Surda, fanfarronastes: "César, Tácito, Tertuliano, C. Plinii Natvralis Historiae Líber”... - latim aos cinco anos de idade! Fui aluna avantajada: em comportamento religioso, urbanidade, boas maneiras e manejos próprios da corte. E obediência! Refugiei-me na mística, pronta para o convento. Contudo, mal tinha eu dezesseis primaveras, e já vos reunistes com Maximiliano, ofertando-me como óbulo de sangue entre Trastámara e Habsburgo. Castela e León, mais Aragón, Navarra, Mallorca, Nápoles, Sicília e Valencia juntando-se ao sacro império dos germânicos, para submeter a França - eu e Felipe, duas pomba-amargosas a serviço da grande carnagem...



Murmureja a melodia de Paseabase el rey moro.


- “Sacro Império, Santa Igreja, Devotos Reis”: quantos espanhóis, homens e mulheres, me obrigastes a contemplar, ainda criança, caminhando ao cadafalso, queimando em carne viva nas fogueiras, sob aplausos e hosanas da turba ensandecida, oh Mãe? 1492: tinha eu treze anos quando Vossos exércitos se lançaram sobre Granada, a última alcáçova mosleme em chão de Espanha. E obrigastes a todos os alcoranistas e judeus ao batismo cristão, ou a deixarem o Reino - mudéjares espanhóis incluídos, sangue celtíbero e visigodo correndo-lhes nas veias! E quando partiam rumo a Tarifa, aos que não se renegaram, Vossas tropas os sitiaram e os chacinaram. Marranos, porcos! - gritavam-lhes Vossos caudilhos, antes de degolá-los... E 1492? Colombo Vos descobre as Índias Ocidentais, e suas areias brancas, rutilantes, e palmeiras, seu ouro e esplendor serviram ao Reino de alfaia; um requifife mentiroso, para esconder a desonra, minha Mãe! Respeitei Vosso último suspiro, para só então banir de uma vez a Inquisição de Castela. O Édito veio de Bruxelas, pela mão de Felipe, mas Vos confesso: a ordem foi minha!


        Dirigindo-se a uma segunda pessoa, ali ausente, Joana murmureja: - Eram três da madrugada quando me despertaram subitamente os criados, e me ordenastes, Pai, que me preparasse para partir em seguida. Minha surpresa e minhas objeções não me serviram de nada. Apenas consentistes em dar-me um dia de prazo, pois jurei não mover-me dali sem os restos de Felipe. E não Vos restou outro remédio, pois forçar a Rainha a abandonar o palácio de Arcos de modo tão precipitado, sem o féretro de seu esposo, do qual era notório que jamais me separaria, equivalia a confessar que me abduzíeis, e por meios violentos – como pudestes, Pai? Desde chica admirei-Vos a altivez e a potestade de Aragão. Jamais teria confessado meu arrebatamento, mas enfeitiçava-me Vossa virilidade, ao mesmo tempo ofertada e recolhida, e para mim proibida... El Rey – o pai e seu duplo. No entanto, ou exatamente por isso, sempre guardastes um pedaço de Vós nas sombras; aquelas, das confabulações “diplomáticas”, “estratégicas”... E quanto mais Vos tornastes ausentes, mais Vos desejava, até desaparecerdes nas brumas, que moldaram meu sonho de homem, macho. E não fosse desgraça, meu cativeiro seria uma sátira: à procura do macho velado e turvado, desci ao reino da morte; destino do meu signo alacrão.


        Joana Chora: - Como não hei de querer possuir, se nunca tive? Apesar disso, após a morte da Rainha-Mãe, dei-Vos a regência sobre meus direitos, acordados em Salamanca, e fui parir Maria em Bruxelas. A nova Rainha carecia de avidez pelo poder, apenas estava enamorada; para ser feliz necessitava somente a fidelidade de seu esposo. E o que fizeram meu esposo e meu pai? Mesquinhos, engalfinharam-se, enlamearam-se em uma agre disputa: seus alegados direitos de exercer a regência emanavam de minha pretensa “incapacidade”. Precisei de amparo e me deram o degredo. E a quem devo, Meu Pai, a reputação de “estouvada”? Quem corrompeu a verdade da última custódia de Espanha ao féretro de Felipe? Quem imputou-me a demência de arrastar, sozinha e em noite escura, feita assombração errante, o ataúde do meu esposo por Castela? São favas contadas que foi solífugo o cortejo a Granada, para que o calor inclemente não decompusesse seu defunto, atraindo os abutres! Quem desejava que o povo e as Cortes pensassem que sua rainha é “louca”?


Levantando-se, dá dois passos, detém-se, solta uma apavorante gargalhada e diz: - Mas a vida não vos deu o usufruto, o pleno poder - estais mortos, os dois, meu pai e meu esposo...


Depois, já agastada, passa longas horas em silêncio, diluída em nada.



De repente reincorpora-se, precipita-se até a janela, mais alta que seu corpo. Corre até o catre, arrasta-o até debaixo da janela, sobe e com as mãos agarradas às grades da ventanilha, e grita: - Soltem-me, quero ver o poente sobre o Douro, libertem-me, é a Rainha de Espanha que vos ordena!... (em voz alta descreve o poente, com cores e clima de romper o coração, de tão belo – talvez projetar imagens na parede, como se Joana as estivesse desenhando).


E diante da indolência, do torpor sob os arcos da fortaleza, deixa-se cair; verga-se, encolhe-se em posição fetal, desmancha-se em graves soluços. E feito bólido fantasmal, uma pedra zune pelas grades, pirueteia no chão, cai-lhe aos pés... Vem embrulhada numa folha de papel. Pasmada, a malroupida lê. Levanta-se, anda em círculos, cabisbaixa, pensativa...


Retoma nas mãos a folha de papel enrugada e suja. Lê em voz baixa: “... obrigado pelo Conselho das Índias, o fidalgo Don Hernán Cortez deixou o Vice-Reino do México e retornou a Espanha... Permaneceu nove dias em devoção em Guadalupe, e chegou depois a Toledo com faustoso acompanhamento de senhores e índios mexicanos, magnificamente vestidos, com muito ouro e prata, leões e jaguares enjaulados, aves multicoloridas, das quais diziam, uma delas era a ave do paraíso...


Joana contempla-se, enojada, continua a ler, em voz mais baixa: “Recebeu-o Carlos V em meio à admiração universal, e foi nomeado a 6 de julho de 1529 Marquês do Vale do Oaxaca, no momento de máximo favor, de VSM Carlos I de Espanha, imperador Carlos V da Alemanha...”


         Joana chora. Caminha até uma parede, esbofeteia-a. Soluça: - Karl, Carlito, filho meu, herdeiro: Don Hernán Cortez em Toledo, e não me avisas? Por que enxovalhas assim à tua mãe, Rainha? Quantas guerras pelejou Cortez, quanto sangue vertido, de lado a lado, quantas dívidas contraíste com Don Antonio de Augsburgo? Continuas longe do povo que aguarda seu rei, cuja língua castelhana sequer entendes? Perdoe, hijo mío: sei, sim, que também te fui mãe ausente, mas não por cupidez ou falta de amor; antes por excesso, por teu pai... Tu também, Carlos? Sei que juraste como rei em teu e em meu nome nos foros de Aragão e Catalunha – e por que continuas abandonando-me aqui?


Detém-se, solta uma gargalhada sombria... – Ai, Tordesillas, tinha eu quinze anos, quando dom João II obrigou-Vos, Reis Católicos, a aceitarem um novo tratado: 370 léguas a oeste de Cabo Verde, as Índias Ocidentais da Espanha; zero léguas a leste, o resto do mundo para Portugal – a orbe repartida entre duas coroas, e a filha-herdeira dos Reis aqui, presa! 


Enfurece-se, grita: - Maldito seja, Don Bernardo de Sandoval y Rojas, Marquês de Denia, sois um alcofeta, falsário, biltre cruel! Paga-vos o meu filho, Rei de Espanha e Imperador da Alemanha, para que me trateis à altura, e aqui me abandonais como "Juana la Loca, la cautiva de Tordesillas”! Dejetório, cloaca, cagatório: isto é, o que és, Tordesilhas! Aljôfar, uma albufeira de lágrimas, é no que te fizeste, Espanha!


Lembranças, ancestralidade.


- Ai, formosa Galswintha, briosa Brunegilda: por que, filhas de Toledo, somos há mil anos condenadas a tanta desgraça – dizei-me? Casando-vos, por algum tempo selastes a paz entre vossos visigodos e os merovíngios de Sigeberto – e por acaso o derramamento de sangue cessou? Livrou Atanagildo, vosso pai, das escaramuças com os francos, permitiu-lhe concentrar sua luta contra bizantinos e suevos. Reforçou Sigeberto frente ao invejoso irmão Chilpérico. Mas logo te assassinaram, Galswintha, e a ti também, Sigeberto. E tu, Brunigilda, foste esquartejada entre dois cavalos de Clotário, teu próprio cunhado! Oh, Toledo, Toledo!
 

Sentada no chão, recostada a uma parede, ajeita os andrajos, tira os cabelos desgrenhados do rosto, prende-os na nuca em coque, esboça um sorriso, junta as mãos, e fala, conversando com um fantasma.


- Sabes, meu amor, o céu geralmente estava encoberto em Gante e Bruxelas, faltava-me o sol de Burgos, Valladolid, o céu diáfano de Castela... Nossa corte era sóbria, religiosa, sisuda; já a Vossa, borgonha-flamenga, desinibida e festiva. Assustei-me - perdoe!


Joana apalpa, acarinha o seio esquerdo, levanta a saia, abre as pernas. Sua mão direita resvala ventre-abaixo, na direção de seus pêlos pubianos, mas então se detém. 

Não, melhor não - prazer tão doído!

Joana chora copiosamente.


23 maio 2012

Dalton Trevisan - Em Busca da Curitiba Perdida // Roteiro fotográfico: Frederico Füllgraf

Fotos: Nego Miranda, Rui Carneiro, Lucília Guimarães, divulgação



"O que não me contam eu escuto atrás das portas."
                                                                 Dalton Trevisan     


Curitiba, que não tem pinheiros, esta Curitiba eu viajo. Curitiba, onde o céu azul não é azul, Curitiba que viajo. Não a Curitiba para inglês ver, Curitiba me viaja. Curitiba cedo chegam as carrocinhas com as polacas de lenço colorido na cabeça - galiii-nha-óóó-vos - não é a protofonia do Guarani? Um aluno de avental discursa para a estátua do Tiradentes.
Viajo Curitiba dos conquistadores de coco e bengalinha na esquina da Escola Normal; do Jegue, que é o maior pidão e nada não ganha (a mãe aflita suplica pelo jornal: Não dê dinheiro ao Gigi); com as filas de ônibus, às seis da tarde, ao crepúsculo você e eu somos dois rufiões de François Villon. Curitiba, não a da Academia Paranaense de Letras, com seus trezentos milhões de imortais, mas a dos bailes no 14, que é a Sociedade Operária Internacional Beneficente O 14 De Janeiro; das meninas de subúrbio pálidas, pálidas que envelhecem de pé no balcão, mais gostariam de chupar bala Zequinha e bater palmas ao palhaço Chic-Chic; dos Chás de Engenharia, onde as donzelas aprendem de tudo, menos a tomar chá; das normalistas de gravatinha que nos verdes mares bravios são as naus Santa Maria, Pinta e Nina, viajo que me viaja. Curitiba das ruas de barro com mil e uma janeleiras e seus gatinhos brancos de fita encarnada no pescoço; da zona da Estação em que à noite um povo ergue a pedra do túmulo, bebe amor no prostíbulo e se envenena com dor-de-cotovelo; a Curitiba dos cafetões - com seu rei Candinho - e da sociedade secreta dos Tulipas Negras eu viajo. Não a do Museu Paranaense com o esqueleto do Pithecanthropus Erectus, mas do Templo das Musas, com os versos dourados de Pitágoras, desde o Sócrates II até os Sócrates III, IV e V; do expresso de Xangai que apita na estação, último trenzinho da Revolução de 30, Curitiba que me viaja.

Dos bailes familiares de várzea, o mestre-sala interrompe a marchinha se você dança aconchegado; do pavilhão Carlos Gomes onde será HOJE! só HOJE! apresentado o maior drama de todos os tempos - A Ré Misteriosa; dos varredores na madrugada com longas vassouras de pó que nem os vira-latas da lua.

Curitiba em passinho floreado de tango que gira nos braços do grande Ney Traple e das pensões familiares de estudantes, ah! que se incendeie o resto de Curitiba porque uma pensão é maior que a República de Platão, eu viajo.

Curitiba da briosa bandinha do Tiro Rio Branco que desfila aos domingos na Rua 15, de volta da Guerra do Paraguai, esta Curitiba ao som da valsinha Sobre as Ondas do Iapó, do maestro Mossurunga, eu viajo.

Não viajo todas as Curitibas, a de Emiliano, onde o pinheiro é uma taça de luz; de Alberto de Oliveira do céu azulíssimo; a de Romário Martins em que o índio caraíba puro bate a matraca, barquilhas duas por um tostão; essa Curitiba não é a que viajo. Eu sou da outra, do relógio na Praça Osório que marca implacável seis horas em ponto; dos sinos da igreja dos Polacos, lá vem o crepúsculo nas asas de um morcego; do bebedouro na pracinha da Ordem, onde os cavalos de sonho dos piás vão beber água.

Viajo Curitiba das conferências positivistas, eles são onze em Curitiba há treze no mundo inteiro; do tocador de realejo que não roda a manivela desde que o macaquinho morreu; dos bravos soldados do fogo que passam chispando no carro vermelho atrás do incêndio que ninguém não viu, esta Curitiba e a do cachorro-quente com chope duplo no Buraco do Tatu eu viajo.

Curitiba, aquela do Burro Brabo, um cidadão misterioso morreu nos braços da Rosicler, quem foi? quem não foi? foi o reizinho do Sião; da Ponte Preta da estação, a única ponte da cidade, sem rio por baixo, esta Curitiba viajo.

Curitiba sem pinheiro ou céu azul pelo que vosmecê é - província, cárcere, lar - esta Curitiba, e não a outra para inglês ver, com amor eu viajo, viajo, viajo.

In: "
Mistérios de Curitiba", Record, 1979.


22 maio 2012

Dalton Trevisan vence Prêmio Camões

Dalton Trevisan em foto não autorizada (de Baiano)


O escritor curitibano Dalton Trevisan, 86, foi anunciado o vencedor da 24ª edição do Prêmio Camões nesta segunda-feira (21), em Lisboa. A premiação, criada em 1988 por Brasil e Portugal, é o principal reconhecimento da literatura em língua portuguesa.
O júri, formado por seis representantes de Portugal, Brasil, Moçambique e Angola, reuniu-se nesta manhã para eleger o ganhador. Dalton Trevisan foi premiado por sua "dedicação ao fazer literário", segundo o escritor Silviano Santiago, um dos integrantes do júri.

"A escolha de Dalton Trevisan foi unânime. Houve uma discussão maravilhosa entre os membros do júri de cerca de duas horas e depois chegamos a essa decisão consensual", afirmou Santiago em nota divulgada pela Fundação Biblioteca Nacional, responsável pelo prêmio no Brasil. "Primeiramente, pela contribuição extraordinária de Dalton Trevisan para a arte do conto, em particular para o enriquecimento de uma tradição que vem de Machado de Assis, no Brasil, de Edgar Allan Poe, nos EUA, e de Borges, na Argentina."
Nascido em Curitiba em 14 de junho de 1925, Dalton Jérson Trevisan é autor de "O Vampiro de Curitiba" (1965), uma das suas obras mais conhecidas. O escritor venceu quatro prêmios Jabuti --por "Novelas Nada Exemplares", em 1960, "Cemitérios dos Elefantes", em 1965, "Ah, É?", de 1995, e "Desgracida", em 2011.

Entre outros títulos notáveis do escritor estão "Vozes do Retrato - Quinze Histórias de Mentiras e Verdades" (1998), "O Maníaco do Olho Verde" (2008), "Violetas e Pavões"(2009) e "O Anão e a Ninfeta" (2011).

* Fonte: Ilustrada, Folha de S. Paulo, 21/5/2012