04 novembro 2014

Frederico Füllgraf- A bela e o matador

Ivette Vergara, animadora de Mega TV, Chile

Santiago do Chile                                                                                                               Exclusivo para Jornal GGN 

Ivette Vergara é um dos mais belos rostos do Chile, e os fotógrafos indiscretos costumam registrar closes de suas pernas cruzadas, não menos esculturais. Faz parte do tititi, Ivette gosta.
Ex-modelo, “Miss Paula 1990” (organizado pela revista homônima) e animadora do programa de variedades "Mucho Gusto", no canal privado Mega TV, nestes dias de outubro estourou uma bomba nos meios de comunicação, salpicando com seus destroços a imagem do símbolo sexual chileno: a Corte Suprema sentenciou a três anos e um dia de reclusão o capitão reformado do exército, Aquiles Vergara Muñoz , como autor de homicídio qualificado, perpetrado em 1973 no interior de uma delegacia de polícia de Puerto Aysén, na Patagônia. Além deste, o ex-militar pinochetista foi indiciado por outros dois assassinatos de simpatizantes do então presidente Salvador Allende, fuzilados a sangue frio e enterrados clandestinamente em valas anônimas. A falta de sorte de Ivette Vergara: o militar sentenciado é seu pai. Sua primeira reação à notícia foi: “Estamos tranquilos, porque sabemos que meu pai é inocente”.
Retronarrativa: fuzilamentos na Patagônia
Outubro de 1973.
Poucas semanas após o golpe militar contra o governo Salvador Allende, chega a Puerto Aysén – que à altura mal contava 5.000 habitantes, mas hoje é o principal núcleo de aquicultura de salmão do Chile, localizado 2.300 quilômetros ao sul de Santiago - um batalhão de artilharia comandado pelo capitão do exército Aquiles Vergara Muñoz, “para contribuir à manutenção da ordem interna ante eventuais insubordinações e violações do toque de recolher”, segundo a linguagem eufemística da ditadura Pinochet.
Acima: Presos executados em Aysén
Abaixo: Capitão do exército (R) Aquiles Vergara Muñoz
Fotos: divulgação

A rigor, naquelas semanas estava aberta a “temporada de caça” aos simpatizantes allendistas. Realizar prisões arbitrárias, torturar e matar estavam na ordem do dia. Foi em suas rondas ostensivas que no dia 2 de outubro de 1973, o capitão prendeu o jovem Julio Cárcamo e seu amigo apelidado “Cachorro [filhote] Alvarado”, que supostamente teriam insultado e ameaçado o funcionário da polícia, Oscar Carrasco Leiva.
Debaixo de coronhadas de fuzil e chutes em todo o corpo, ambos foram arrastados à segunda delegacia de Carabineiros de Aysén e jogados numa cela imunda.
Madrugada alta, os dois presos foram retirados da cela e conduzidos a uma baia de cavalos, onde os esperava Vergara Muñoz. Primeiro, o capitão descarregou sua pistola nos presos, em seguida formou um pelotão irregular e ordenou fogo, que crivou de balas Cárcamo e o “Filhote” - em flagrante assassinato a sangue frio de dois presos ilegais, sem acusação formal, sem tribunal nem direito à defesa.
Completada a chacina, os corpos das vítimas foram levados para a morgue, onde um médico emitiu o laudo sem qualquer autópsia. Porém, o atestado de óbito de 20 de outubro de 1973 atesta “anemia aguda” e “ferida de projétil” como causas mortis dos dois patagoneses, que foram colocados nus em um jipe, conduzidos até o cemitério local e jogados em uma vala anônima, devidamente preparada.
A selvageria do “Caso Aysén” é emblemática porque tortura, fuzilamento e ocultação de cadáveres foi o modus operandi da repressão não apenas pinochetista, mas da posterior Operação Condor, em todo o continente.
Negando evidências durante 40 anos
Ninón Neira de Órdenes, uma senhora em provecta idade e presidente da Comissão de DDHH da Região de Aysén, protestou em alto e bom som contra a sentença dos ministros da segunda turma do Supremo, por considerá-la tímida: o septuagenário Muñoz Vergara é notório assassino e merecia pena mais drástica do que três anos de liberdade vigiada.
Embora muito mais criativa e eficiente do que a brasileira, a Justiça chilena tem sabido contornar e esvaziar a Lei da Anistia pinochetista ainda em vigor, julgando violadores de DDHH pelo viés dos “crimes comuns”, tais como formação de quadrilha, sequestro e homicídio, contudo, em casos como o de Muñoz Vergara, atropelando a jurisprudência internacional, ao reduzir a pena em primeira instância, alegando “meia prescrição”. Tanto a Corte Internacional de Justiça como a Corte Interamericana de Direitos Humanos estabeleceram que crimes de lesa-humanidade não prescrevem.
Detido pela primeira vez em 2009, o ex-capitão Aquiles Vergara negou tudo. Afirmou que não teve “faculdade legal para determinar nenhuma detenção”, não constituiu pelotões de fuzilamento e que, ademais, sequer teve conhecimento do nome ou da fisionomia dos executados.
“¡Yo no sé de nada!”, insistiu o ex-capitão pinochetista - simples assim.
Inesperadamente, em setembro de 2014, o ministro Sepúlveda Coronado o indiciaria em novo processo, desta vez pelo homicidio qualificado de Elvin Alfonso Altamirano Monje, “detido à margem de qualquer processo legal” e também assassinado em uma delegacia dos Carabineiros de Puerto Aysén.
Como você reagiria, se seu pai fosse condenado por violação de DDHH?
No início de 2014, um caso semelhante ao de Ivette Vergara derrubou a recém-nomeada Subsecretária do ministério da Defesa do governo Michelle Bachelet, Carolina Echeverría Moya. Em 2009, durante a primeira administração Bachelet (2006-2010), a funcionária já articulara o arquivamento de um processo por violação de DDHH, iniciado por ex-marinheiros allendistas, e em janeiro de 2014 omitiu em seu currículo o parentesco com o coronel da reserva do exército, Víctor Echeverría Henríquez, seu pai. Vivendo em liberdade impune, Echeverría Henríquez foi reconhecido por ex-presos políticos como comandante do famigerado Regimento de Infantería N°1 “Buin”, que durante a ditadura Pinochet funcionou como centro clandestino de detenção e tortura.
A sublimação dos crimes paternos por Ivette Vergara e Carolina Moya pode ser considerada uma síndrome.
Indagado sobre a reação de familiares de militares processados por violações de DDHH, o psicólogo chileno Marco Antonio Grez aponta um curiosa racionalização: ”Quando familiares diretos são confrontados com fatos acobertados por mentiras, delitos ou ilícitos envolvendo seus pais, em sua mente costuma ocorrer uma contradição. Quando crescemos, habituando-nos a justificar uma situação que nos faz sofrer, tratamos de dar um sentido às justificativas, inventando o pretexto de que o pai teve que cumprir ordens, deste modo conseguindo restabelecer um estado de equilíbrio".
Somente arrependimento redime imagem dos filhos
Em entrevista ao semanário Cambio21, o sociólogo Manuel Antonio Garretón adverte contra generalizações: “A única solução para estas coisas são sociedades  mais educadas, menos familísticas, menos fechadas em grupos estanques, até mesmo religiosamente, já que a tendência é atribuir aos filhos as características que têm os pais ou parentes”.
Contudo, até quando mulheres como a musa da TV ou a secretária de Estado continuarão a tampar o sol com a peneira, escondendo-se onde não há mas refúgio?
Garretón é taxativo:”A única maneira de superar esta situação é que os que cometeram os crimes os admitam, peçam perdão e deem mostra de seu arrependimento. Só assim ninguém mais poderá insinuar que´tal pai, tal filho´".
Talvez não seja exatamente este o ponto: se o capitão assassino admitisse a verdade, talvez aliviasse a dor de sua filha Ivette Vergara e ela não precisasse mais encobri-lo.
Talvez.

 Publicado originalmente em:
http://jornalggn.com.br/blog/frederico-fuellgraf/chile-condenacao-de-pai-violador-de-direitos-humanos-atinge-apresentadora-de-tv