04 dezembro 2017

Frederico Füllgraf - A selvagem da motocicleta


Marie-Therese von Hammerstein: uma intrépida contra o nazismo

Ensaio

São nove da manhã, e a BMW de setecentas cilindradas cospe fogo na estrada. Annete Rosenbauer sente o escapamento esbraseado morder-lhe as canelas. A cento e vinte por hora, apesar do capacete de couro encaixado na cabeça, o vento metralha com rajadas geladas e afiadas como estiletes em seus ouvidos.
Depois de deixarem para trás Dresden, rumo à fronteira da Tchecoslováquia, a piloto faz um giro de vinte e cinco graus, para trás, e berra um aviso de que vai parar. Então a máquina resvala com marcha desacelerada para o acostamento.  

- Não aguentava mais! – diz Marie-Therese, desfazendo-se do capacete e das luvas, enquanto apeia. – Se não tiver a mesma pressa, fique de guarda, que eu volto já! – ela ajunta para sua passageira, divertida, já desaparecendo atrás de uns arbustos. 

Escrutinando a paisagem em busca de intrusos, e rindo, porque a única intrusa, ali, é ela, Marie-Therese desprende o cinto e arria a calça de couro, que arrasta consigo a calcinha até abaixo dos joelhos, e se agacha. 

Passarinhos saltitam e cochicham na galhada. Ao longe, ela divisa uma grande cegonha branca circunvoando um grupo de agricultores na seara – como é deslumbrante aquele vale do Elba! 

Quando retorna à moto, cujo motor crepita enquanto esfria, e ainda ocupada com afivelar o cinto da calça, Annete a contempla e se pergunta, intrigada, por que essa jovem, tão bonita, decidiu meter-se nessas aventuras mais que perigosas, ao invés de investir num “bom partido”.
Annete é descendente de judeus. Isto quer dizer que, desde 30 de janeiro de 1933, ela pertence a uma minoria acusada nos discursos do Reichs-Propagandaminister, Dr. Joseph Goebbels, de “raça odiosa e conspiradora”. Mas se ela, Annete, se sente como alemã, ora essa! Militante da Juventude Comunista, ainda por cima, agora ela também corre perigo de vida.
Nestes primeiros vinte dias de fevereiro de 1933, milhares de socialdemocratas e comunistas foram presos. Suas bancadas parlamentares, completas, no Reichstag, foram abduzidas para um novo tipo de prisão, cuja abreviatura é KZ, de Konzentrationslager – campo de concentração. Era uma invenção inglesa testada na África do Sul, mas os nazistas a tinham aperfeiçoado. 

Findo o mês de janeiro, estava morta a Democracia, enterrada a República de Weimar. O congresso do Reichstag, fechado; todos os partidos políticos, menos o nazista, declarados ilegais; a imprensa, amordaçada. Tudo temperado por uma avalanche de discursos ultranacionalistas e xenófobos.
Há vinte dias, na Alemanha o terror estava desatado, e o inacreditável em tudo aquilo era que as pessoas pareciam felizes, aplaudiam aquelas hordas vestidas de marrom, sempre marchando ao som de estrepitosos hinos marciais. Por isso, Annette e sua família tinham recebido o aviso para cair fora. 

Mas na Alemanha também era comum aquele adágio que dizia, “quem avisa amigo é!”. 

O bem informado pai de Marie-Therese não era propriamente um amigo de Annette. Mas sendo inimigo de seus inimigos, tornara-se seu amigo. Ela tivera apenas dois dias para organizar-se e cair na estrada. Então Marie-Therese, aquele anjo loiro da nobreza que não se vexava em fazer xixi na capoeira, lhe dissera, “junte sua tralha, que eu a levo pra fora do país!”.
Tudo o que Annette leva em sua mochila são duas trocas de roupa, o nécessaire e, bem..., alguns endereços, escondidos sob suas roupas íntimas, onde não teriam a audácia de a apalparem.
Enquanto fumam seus cigarros e bebem um gole do café ainda quente, da garrafa térmica, Marie insiste no último ensaio da conversa que elas deverão desfiar no momento em que cruzarem a fronteira. Ato contínuo as duas mulheres voltam a montar a moto, que dispara entre os grotões do Elba, estrada afora.
E tudo correra como mandara o figurino: passaram a fronteira como duas amigas a passeio de compras, em Praga. “Sabe como é, seu guarda, ver o sol sangrar sobre a Cidade Velha, e depois morrer... - Veneza não tá com nada!”.

A bandeira com a suástica drapejando ao vento, o oficial sapecara mesmo uma continência às duas, com um sonoro Heil, Hitler! Que Marie respondeu com um Scheiss Hitler! Mas aí a moto já estava longe da cancela.
Cinco horas mais tarde - cinco horas cravadas, porque na ida, quando a moto assomara ao campo de visão de sua guarita, com reflexo nele completamente involuntário, mas religioso, toda vez que se aproximava um veículo, o guarda consultara seu relógio de pulso, e eram onze da manhã - a BMW de Marie-Therese voltava a aproximar-se de sua cancela. 

O policial surpreendeu-se porque no lugar da passageira, apenas a embalagem de uma loja de departamentos ocupava a garupa. 

Então Marie-Therese inventou uma desculpa de família, obrigações imprevistas de sua amiga, coisas assim. Folheando o passaporte, por mero protocolo, tão inócuo quanto consultar o relógio toda vez que se aproximava algum veículo, desta vez o guarda de fronteiras não se conteve: - Quer dizer que a senhora., ... - ou devo dizer Fräulein? – insinuou, perscrutando a mão direita da jovem mulher em busca de alguma aliança.

- Quer dizer que estou diante da filha do preclaro General Von Hammerstein? Afinal, não é todo dia...
E percorrendo com um par de olhos vulgares aquele corpo que apesar dos couros pretos, todos, não conseguia esconder curvas e compleições que pediam, sempre, um segundo olhar de admiração, o milico lhe devolveu os documentos, teimando em uma prosa pegajosa. Por isso, Marie-Therese saltou para a BMW, e o Heil, Hitler!... o vento levou.
Tinha duzentos quilômetros de estrada pela frente; bastante chão para pensar. 

Uma coisa era certa: a partir daquele dia, ela não deveria mais transportar fugitivos, cruzando o mesmo ponto da fronteira. Logo chamaria atenção. Se fosse para Praga novamente, tinha que estudar alternativas no mapa rodoviário. A máquina roncando entre suas pernas, abocanhando vorazmente o alcatrão, negro, que se insinuava como risca de fuligem na paisagem incendiada pelo poente, ela lembrou-se daquele tarde, do final de verão, fazia cinco anos. Tinha recém completado dezesseis anos de idade quando aquele homem de estatura mediana e seu bigodinho, que o vulgo chamava de “freio de nhaca”, conversava com seu pai na varanda de sua casa. 

Fazia dez anos que a Grande Guerra tinha terminado, e Kurt von Hammerstein Equord, seu pai, era Comandante do Reichswehr, aquele exército encolhido, minguado, de cem mil homens, imposto à Alemanha mediante o Tratado de Versalhes, dos vencedores.
Do Gal. Von Hammerstein dizia-se que nascera predestinado para a vida militar, porque aos onze anos de idade o rebento de uma muito antiga cepa da nobreza renana fora internado na Imperial Academia Militar, que só teve a virtual permissão de abandonar quando já se diplomara como oficial de estratégia. Mas então já era tarde, porque eclodira a guerra, e Von Hammerstein batera-se nela, sobrevivendo-a como herói fartamente galardoado. Porém, naquela rotina castrense predominava a tal severidade prussiana dos instrutores, que consistia no persistente rebaixamento moral do indivíduo e na punição da tropa; tratamento que Von Hammerstein abominava, quanto mais no âmbito de sua própria família.
Von Hammerstein Equord não fazia o gênero do “tipo alemão”, trabalhador devoto e cidadão consciencioso. Comportava-se como hedonista, tinha estampa de playboy. Do que o general mais gostava era de gente, mas quando as pessoas o enfastiavam, o aporrinhavam além da conta, deixava o trabalho para amanhã e saía para caçar e conversar com seus botões. Casara-se com Maria von Luettewitz, filha de um general, em cujo entendimento lugar de filha bonita era em casa, e não na escola ou nos anfiteatros da universidade. Para compensar os vazios em sua alma de mulher discriminada, por isso Maria von Luettewitz-Hammerstein não vacilou um instante quando suas filhas saíram da adolescência, enviando-as, todas, para a universidade. Marie-Therese, a mais bonita de suas quatro irmãs, escolhera Medicina, mas para sua surpresa o pai-general reagiu com as palavras, “tá doida? Aqueles ferimentos, a sangreira, toda?”
Naquela Alemanha, que aturdida pelo desfecho da Guerra de 1914, e humilhada por escorchantes, porque impagáveis reparações, tentava reinventar-se, os mentores das tradições definidas como perenes pregavam impassíveis a submissão ao velho autoritarismo. Neste território dos incorrigíveis Von Hammerstein estabelecera sua muito particular ilha do liberalismo e do laissez-faire. O general negava-se a submeter seus sete filhos à voz única e ao rebenque da caserna, incentivando neles a natureza rebelde que logo lhes conferiu a má fama de “selvagens”.
Mas voltando àquela tarde de 1928. Kurt von Hammerstein tinha convidado Adolf Hitler para uma tertúlia em sua casa. Queria ver o sujeito de perto, como disse. O encontro fora articulado pelo empresário Bechstein, construtor do famoso piano. Como Winifred Wagner, sobrinha do célebre compositor de óperas, sua esposa era ardente admiradora do líder nazista. Perspicaz, era uma das distinguidas senhoras que se esmeravam em ministrar arguciosas aulas de etiqueta ao austríaco boquirroto: a composição de um smoking com os tecidos adequados, como beijar a mão de uma dama, a forma correta de abordar uma conversa, como destrinchar um salmão com os respectivos talheres, como brindar, e assim pro diante; cerimoniais e culto ao estilo que não raras vezes aproximavam de um ataque de nervos o ex-cabo austríaco. Sua tropa de choque migrara desde Munique, instalando-se na capital do Segundo Reich, mas com seu comportamento torpe, jargão bronco, e seu insuportável fedor a sovaco fazendo torcer os narizes da nobreza. Cujas reuniões de gala e jantares tornara-se necessário freqüentar, porque da simbiose entre nobreza e grande indústria saíam os apoios, principalmente as doações em dinheiro.
Há séculos instalada nos postos de comando das forças armadas, e embora enxergasse nos nazistas um bando de caipiras, estúpidos, uma notável fração daquela nobreza sentia-se irresistivelmente atraída pelo rude charme das falanges hitleristas, porque teimavam em reverberar até tornar verdade um insidioso boato: a tal lenda do “apunhalamento pelas costas”. Traduzida para os não-entendidos, a lenda afirmava que, sem perder a guerra em campo, a tropa fora “apunhalada pelas costas”, quer dizer: em casa, no instante em que o novo governo social-democrático assinara o termo de rendição.
Agora, Marie-Therese se lembrava das palavras do seu pai, à mesa do jantar, sobre a conversa com Hitler na varanda, queixando-se de que o líder nazista “falava demais e de forma confusa”, motivo pelo qual o deixara falando sozinho. Apesar do desprezo do general, Hitler se despedira não sem lhe presentear uma assinatura de um pasquim nazista que Von Hammerstein desdenhou, visivelmente enfastiado. Para sua surpresa, em 1930, o velho presidente, Von Hindenburg, o nomearia Chefe do Estado Maior das forças armadas, oportunidade em que o New York Times o elogiou como “um dos [homens] mais capazes e inteligentes” que naqueles dias vestiam farda.
Naqueles dias, como grande refúgio acolhedor de judeus perseguidos no Leste Europeu, Berlim se tornara palco de enorme efervescência do jovem movimento sionista que sonhava com o “retorno à terra prometida” - o desembarque na Palestina. Algumas jovens alemãs, entre elas Magda Ritschel, futura Sra. Goebbels, freqüentavam aqueles círculos sionistas. Outra delas era Marie-Therese von Hammerstein. Como Magda, ela se sentira seduzida em emigrar para a Palestina. Trancando a matrícula de seu curso de Medicina, começou a trabalhar como aprendiz de jardinagem: “me sentava no meio de uma plantação de batatas, e com meu microscópio eu contava cromossomos”, ria-se de seu repente.
General Von Hammerstein
Então o inevitável aconteceu: Marie-Therese se apaixonou por um jovem judeu, de nome Werner Noble, e engravidou. Mas a Alemanha, ela ruminara com seus botões, não era um lugar onde as pessoas devessem criar filhos. E sem que o futuro pai pudesse reclamar direitos, do jeito que engravidara, Marie-Therese abortou. O relacionamento se esfarelou, mas logo em seguida a filha do Comandante do Estado Maior encetava novo romance. A escolha recaiu mais uma vez ditada, não por seu coração, mas por sua cabeça, teimosa: Joachim Paasche tinha um não se sabia quantos avos de sangue judeu. O comportamento da moça começou a chamar atenção, parecia birra. Liberada aos seus vinte e um anos de idade sabia-se que Marie-Therese tinha um fraco por homens vigorosos e determinados. E Paasche era tudo, menos a encarnação do macho que não vacila numa encruzilhada e dá o norte. Era neto do antigo vice-presidente do Congresso, e filho de um intelectual e fazendeiro, pacifista, recém-assassinado em sua própria fazenda por mercenários dos Freikorps; milícias revanchistas que aderiram majoritariamente ao partido nazista.
Joachim Paasche não conseguia ou queria recuperar-se do choque da morte brutal do pai, tornando-se enfermiço, fraquejando pela vida, odiando a política. Amava Marie-Therese, sentia-se perdidamente atraído por sua “força primal, amazônica”. Por outro lado, resistia a depender dela emocionalmente, porque “ela é única, e é provável que me machuque muito, caso venha a perdê-la. Por isso é melhor nem pensar em atar-me a ela”, resignou-se o neto indisposto do antigo vice-presidente do Reichstag. Nas entrelinhas, aquelas palavras ecoavam uma tolerância ditada pelo medo do abandono, com homens malhados e determinados na vida e na cama de Marie-Therese.
Do modo como surpreendeu muitos alemães, que só se descobriam “judeus” à medida que eram perseguidos, Paasche teve seu curso de Direito interditado pelos nazis, e resolveu mergulhar no aprendizado de línguas exóticas para a época; o mandarim e o japonês. Marie-Therese, em contrapartida, tornara-se sionista convicta. Em seguida, os dois resolveram casar-se. Registros da crônica familiar atestam que o Gal. Von Hammerstein sentia-se muito pouco entusiasmado com a figura do genro, não comparecendo à cerimônia das bodas, realizadas em março de1934. Por que, diabos, então, a filha do general insistia naquele casamento? Seria para contrariar Maria von Luettewitz-Hammerstein, sua mãe, sabidamente anti-semita? Ou porque Joachim era filho e neto de dois alemães tão dessemelhantes daquela choldra que acabara de tomar o poder?
Marie-Therese, ao que tudo indica, ansiava em inscrever sua biografia numa outra História, talvez fosse isso.
Em outubro de 1934, o casal Paasche-Von Hammerstein deixava a Alemanha, rumo à Palestina. Nos kibutz que proliferavam nas recém-criadas colônias sionistas, os judeus europeus se obstinavam em subjugar as areias do deserto, arrancar leite de pedras. Poucos meses depois, o delicado Joachim Paasche admitia que o forcejar literalmente bíblico era um custo alto demais para converter-se em judeu, e o casal retornou à Alemanha. Mas então Marie-Therese foi detida e interrogada pela Gestapo. Novamente grávida, desta vez resolvera dar à luz, mas não na Alemanha nazista. Foi quando Joachim se lembrou que já sabia falar japonês, e os dois embarcaram para o distante Japão. Logo para o Japão? As decisões do casal faziam pouco sentido para quem estava alinhado no campo da resistência antifascista. Mas despedindo-se de seu pai, no final de 1935, Marie-Therese apostava que o nazismo duraria mais dois anos no máximo, e ela estaria de volta.
Enganava-se mais uma vez, e nunca mais voltaria a ver seu pai. Não fosse ele, e ela jamais teria desembestado pela geografia a bordo de sua BMW de setecentas cilindradas, comprada com uma parcela da herança deixada por uma tia.
Apesar de empossado na chefia do Estado Maior das forças armadas era segredo público que Kurt von Hammerstein Equord detestava os nazistas, que não raras vezes taxou de “bando de criminosos” ou de “porcos imundos”. Logo após a sua vitória nas eleições de janeiro de 1933, o general alertara o Presidente Von Hindenburg ao perigo que Hitler representava para a democracia. A resposta do marechal de campo, relapso e senil, foi liberar o general de suas atribuições, mas mantendo-o na ativa. Von Hammerstein percebeu que estava isolado no corpo de oficiais e resolveu aproveitar suas prerrogativas para agir em surdina. Respeitado apesar de suas posições excêntricas, mantinha excelente relacionamento com os serviços de inteligência, que começaram a abastecê-lo com relatórios sobre oposicionistas ameaçados pelo regime.
Criativo, mas ardiloso, como quem não queria nada, durante o café da manhã, o general infiltrava conversas de intenções eloqüentes: - Vocês conhecem fulano de tal? Pois eu soube que o sujeito está sendo observado. São favas contadas que vão prendê-lo....”. E mirando firmemente nos olhos cada um de seus filhos, estes não vacilavam em decifrar o código, terminando de servir-se e deitando mãos à obra. O que queria dizer, correr para alertar os ameaçados, ou até mesmo transportá-los para lugar seguro.
Por isso Marie-Therese era conhecida como a “selvagem da motocicleta”.
Menos de dez meses após a tomada do poder por Hitler, Kurt von Hammerstein Equord renunciava a todos os seus cargos, tentando preservar algum espaço que lhe permitisse ajudar os perseguidos. Fez isso durante seis anos, mas não aderiu à resistência ativa. Reativado em suas funções, em setembro de 1939, e delegado para o comando de tropas no delta do Reno, chasqueou entre amigos que sentia vontade de deitar as mãos em Hitler. E escreveu um convite ao Führer, pretextando que sua visita ao seu quartel-general serviria para estimular o moral da tropa. Vaidoso, Hitler aceitara o convite, mas depois, desconfiado, comunicara súbito impedimento. A História não explica se Hitler temia algum atentado, mas garantiu-se, sumariamente demitindo o respeitado general de suas novas funções. Desde então Von Hammerstein caíra no ostracismo.
Gravemente afetado por um câncer, no início de 1943, subitamente Kurt von Hammerstein Equord sentiu-se assaltado por seu velho espírito de justiceiro: - Se me dessem uma divisão eu conquistaria até mesmo o inferno, para arrastar lá de dentro o demônio encarnado em Adolf Hitler!“ Um mês depois, o egrégio general morria. Para evitar seu sepultamento com o esperado, mas hipócrita cerimonial nazista, sua esposa decide antecipar-se, enterrando-o rapidamente. Não conseguiu evitar a insistente coroa enviada por Hitler, mas a bandeira com a suástica, que deveria cobrir o caixão, foi desleixadamente “esquecida” num saco de papel, encontrado numa estação de metrô.
Conta a crônica que os filhos Kunrat e Ludwig deram prosseguimento à resistência encoberta do pai, participando da “Operação Valquíria“, o frustrado atentado à bomba de 20 de julho de 1944, para matar Hitler, no qual estavam envolvidos o Mal. Erwin Rommel e alguns oficiais do Estado Maior; todos condenados à forca, à decapitação, ou ao suicídio, como o de Rommel. Kunrat e Ludwig escaparam, mantendo-se na clandestinidade, o primeiro escondido por algum tempo no porão de uma farmácia, em companhia de um grupo de judeus, e Kunrat, fugindo para a Renânia. Em represália, o regime deitou mãos em Maria von Luettewitz-Hammerstein e seus dois filhos mais jovens, que são atirados nos campos de concentração de Buchenwald e Dachau, de onde foram libertados pelos americanos, um ano depois.
Sessenta e cinco anos após sua morte, feito um Chico Xavier tedesco, o escritor Hans Magnus Enzensberger “fala” com Kurt von Hammerstein Equord no além (Hammerstein oder der Eigensinn. Eine deutsche Geschichte. Frankfurt, 2008)



Mas será o Benedito! Como é admissível que nunca acertaram o Hitler! lhe cobra Enzensberger. 

Será que não havia um único oficial naquele pomposo exército, bom de pontaria? 

A “psicografia” preenche páginas e mais páginas, numa penosa tentativa de garimpar conhecimento dos bastidores daquele corpo de oficiais engessado, de seus pensamentos, planos. 

A propósito: existia mesmo um plano de golpe e instauração de um governo militar, com Hitler fora de circulação? 

Sim, confirma Von Hammerstein, mas confessa sua imensa letargia. Por vezes a questão era “ter saco”. 

Era perfeitamente admissível, deduz Enzensberger, que a queda de Hitler não se efetivara mediante um golpe de seus generais, devido a atitudes insólitas como a preguiça. Atitude que não consta das páginas da História, mas que é capaz de escrevê-la.
Naqueles dias da conspiração, tardia e desencontrada, Marie-Therese vivia no Japão em companhia do marido, Joachim, e dos quatro filhos, nascidos um a cada ano. 

Apesar de súditos de um país aliado do Eixo, os Hammerstein-Paasche eram encarados com desconfiança no Japão. Em 7 de novembro de 1944, os japoneses tinham levado à forca Richard Sorge, jornalista alemão e espião da NKWD, que em 1941 alertara os soviéticos a dois acontecimentos insuspeitos que estavam por vir: que os japoneses não atacariam a URSS, mas que Hitler a atacaria. Para Stálin, Sorge não batia bem da cabeça, mas o Gal. Sukhov resolvera levar a sério seu alerta, deslocando colossais efetivos militares da distante Sibéria para o cinturão de defesa de Moscou, virando o jogo. Fora o começo do fim de Hitler. Por isso, Berlim tinha insistido tanto, pedindo a cabeça do maldito Sorge. Já os alemães residentes em Tóquio eram majoritariamente seguidores do regime, de modo que isolaram os Hammerstein-Paasche. Para não definharem de fome, durante muitos meses, a jovem de sangue azul e o neto do egrégio vice-presidente do Reichstag se alimentaram de plantas silvestres e fungos.
Não há registros de sua reação ao lançamento das bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, em agosto de 1945. Mas é significativo que só em 1948 o casal alemão e seus quatro filhos, que falavam japonês, conseguiram permissão para emigrar aos EUA. Observados na Alemanha, no Japão tratados como suspeitos até aviso em contrário, recém-desembarcados nos EUA, iniciava-se seu fustigamento pelo FBI.
Para os Hammerstein-Paasche a guerra, agora fria, parecia não ter fim: durante quarenta anos afora o casal de alemães e seus filhos vegetaram na mais infame pobreza, só atenuada, na década de 1970, quando Joachim Paasche conseguiu um emprego na divisão de língua chinesa da Biblioteca do Congresso, em Washington. Foi quando finalmente decidiu converter-se ao judaísmo, pelo qual tanto sofrera. “Talvez fosse hora de fazer uma tentativa” disse ao filho, Gottfried. Até então Joachim vegetara seus dias como operário de fábrica.
Inteligente, bonita e generosa; nobre, militante antifascista e democrata convicta, a Marie-Therese von Hammerstein os Aliados, vitoriosos, não dispensaram generosidade maior - ou mais mesquinha, como se queira - do que obrigá-la a gastar o resto de seus dias como reles faxineira e cozinheira do american way of life. 

Morreu, pobre, em 2001, numa casa de repouso judaica, em San Francisco, Califórnia. 

Mas só fora admitida porque havia transportado em sua motocicleta e salvado a vida de alguns judeus.

Fotos: em sentido decrescente, Marie Therese, e seu pai,
Gal. Kurt Von Hammerstein Equord


10 novembro 2017

Frederico Füllgraf - Muro de Berlim: o ato falho que o derrubou


Crônica


Berlim, primavera de 1989.


De passagem pela cidade onde havia feito a faculdade, me formado e residido durante dez anos de minha vida, em companhia de Leticia Vota, minha então namorada, celebrei o 1º. de Maio junto à colorida multidão convocada pela central sindical DGB aos gramados do antigo Reichstag, naquela oportunidade ainda funcionando como museu, colado ao Muro. 

Atrás dele, nos saudava o Portal de Brandenburgo, com suas colunas dóricas, em réplica neoclássica, solidamente fincadas em solo da RDA – a República Democrática Alemã, como era conhecida oficialmente a Alemanha Oriental. 

No lugar da quadriga greco-romana, que a encimava desde seus primórdios, a bandeira da RDA, e outra, com o vermelho-sangue da utopia, tremulavam alegremente sob um céu de brigadeiro.

O Muro

Onde nos encontrávamos, a Avenida 17 de Junho, de Berlim Ocidental – que na verdade começa na Praça Theodor Heuss, com o nome de Bismarck Strasse, em seguida mudando para Kaiserdamm, e que até o fim da Segunda Guerra Mundial, mas só depois da Ernst Reuter Platz, se chamava Charlottenburger - ali, pois, a interminável avenida, rebatizada de 17 de Junho – mais uma vez desviada pelo Obelisco da Vitória, que entrou para a história do Cinema com o anjo coruscante eternizado em “Asas do desejo”, de Wim Wenders - era contida por um muro com três metros de altura, sobrecabado com tubos cem por cento esféricos para impedir que mãos o agarrassem. 

Depois desse primeiro muro estava um corredor, chamado Niemandsland – literalmente “terra de ninguém”, também conhecida por “corredor da morte”, com a largura de uma rua estreita, por onde circulavam as patrulhas motorizadas da RDA. Por sua vez, o acesso à terra de ninguém era protegida por uma barreira de obstáculos antitanque, fundidos em aço e cruzados em “x”. E atrás (ou dependendo do ponto de vista, em sentido oeste: à frente) deles, outro muro com medidas comparáveis ao primeiro. 

Uma “linha Maginot” com seus 80 metros de espessura e armada até os dentes – eis a compleição de um “muro”, que muita gente imaginava ser aquele tapume furado dos velhos estádios de futebol brasileiros.

Nesta geografia de Guerra Fria, o Portal de Brandenburgo se situava em “terra de ninguém”, uma ironia que vai se explicar seis meses mais tarde. 

"Tudo o que é sólido se desmancha no ar"

Erguido em agosto de 1961, para proteger a RDA da infiltração pelo fascismo e do assalto pelo imperialismo (aqui explicando que jargões oficiais nunca usam aspas), do outro lado do muro a grande avenida, cortada, retomava seu curso, atravessando boa parte do antigo centro histórico, até a Alexanderplatz, com seu nome original: Unter den Linden. 

Foi ali perto e naquela mesma manhã de 1º. de Maio, que na Karl-Marx-Allee (alameda que os camaradas, depois arrependidos, em 1945 haviam batizado de Josef-Stalin-Allee), um amigo - então Secretário da Agricultura do Paraná e marxista in petto – presenciava a versão de um 1º. de Maio que todo esquerdista que se preze sempre sonhara em passar em revista: a marcha da classe operária, sua juventude vestindo o azul da fidelidade, seguidos pelos Kampfgruppen – unidades paramilitares de defesa das fábricas - tudo coroado pelo desfile das forças armadas de defesa do socialismo. Mas - just in case! - com uma retaguarda de 400 mil soldados soviéticos acantonados nos velhos quartéis nazistas da hinterland da ex-capital do Reich.

Assim me descreveu a apoteose o amigo deleitado, e eu citei seu ingênuo fascínio numa reportagem para o Caderno B do Jornal do Brasil, com uma licença poética maldosamente emprestada do livro de Marshall Bermann: “Tudo o que é sólido, se desmancha no ar” (na verdade uma ironia de Karl Marx, usada por Berman para vender seu livro). 

O que o amigo e eu não sabíamos, é que naqueles dias o povo da RDA já fazia reuniões de protesto nas igrejas do país, o caldo começando a engrossar. Mas se alguém naquele 1º. de Maio do lado ocidental me perguntasse, se o Muro fora construído para ficar, eu teria respondido que sim, apesar de não acreditar na eternidade, 

Verão de 1989: o SED e as fugas em massa da RDA


Detalhe geralmente ofuscado pelo frenesi na cobertura sobre a queda do Muro, é que no verão de 1989 em torno de 100 mil alemães orientais em férias nos países do Leste, não queriam mais retornar, buscando asilo nas embaixadas da Alemanha Ocidental na Tchecoslováquia, Bulgária e Hungria. Milhares, ao alcançarem a fronteira da Hungria com a Áustria, simplesmente ignoraram as barreiras da fronteira, desembestando Áustria adentro; os guardas húngaros apenas bocejando de tédio. 

Esse era o pano de fundo de uma reunião de emergência do Comitê Central (CC) do SED (Partido Socialista Unificado da Alemanha), que decidira liberar viagens aos cidadãos da RDA para qualquer país do mundo. 

A pedido do CC, a autorização fora redigida por oficiais do ministério do Interior e do serviço de espionagem StaSi, a famigerada “polícia de segurança do Estado”. Aprovadas em brancas nuvens, diante dos “fósseis” da velha guarda, Egon Krenz - o novo czar do partido, que um mês antes destronara Erich Honnecker e a velha guarda com um golpe de mestre há muito programado - pediu que o porta-voz Günter Schabowski divulgasse as novas revolucionárias na coletiva à imprensa internacional, programada para o final da reunião.

O lance de Krenz era uma aposta: a dívida externa do país beirava os 25 bilhões de dólares e a Economia da RDA estava há muito pendurada no soro da odiada Alemanha Ocidental. Com a liberação das viagens, Krenz pretendia aliviar a pressão popular, sobretudo ganhar tempo, salvar a RDA do mergulho no abismo.

O ato falho de Schabowski que derrubou o Muro


Mas o que acontece, então? 

Estória virtualmente desconhecida no exterior, e até há pouco tempo mal contada, o Muro de Berlim caiu como efeito-dominó numa cadeia de conspirações, armações, mas também de um imprevisto. 

Quando Schabowski, mais tropeçando no texto do que realmente lendo o bilhete para a imprensa internacional, que resumia as deliberações do CC sobre a permissão de viagens, subitamente o jornalista Ricardo Ehrman, correspondente da agência italiana, ANSA, o interpela, perguntando (veja o vídeo ao final do presente texto): - Já está valendo a permissão?

- Perdão? - replica Schaboswki. E quando Ehrmann repete a pergunta, insistindo no prazo para a entrada em vigor das novas medidas, Schabowski procura a resposta no bilhete, e não a encontrando, responde: “Olha....que eu saiba, é pra já!”. 

Foi a bomba! 

Mas de seu efeito Schaboswki apenas tomaria conhecimento em casa, acomodado diante da TV, onde assistia, atônito, ao assalto e à abertura do Muro, depois que a população havia recebido a notícia pelas TVs ocidentais.

Eram pouco mais de nove horas da noite, e a notícia tinha se espalhado aos quatro ventos.

Sacudido por telefonemas, reclamações e ameaças, foi quando Schabowski se dá conta da tremenda burrada que cometera, porque o bilhete levava um aviso explícito: “Divulgação vetada até às 4 da manhã de 10 de novembro de 1989”. 

O porta-voz simplesmente atropelara a instrução, provocando a corrida ao Muro.

Ato falho ou armação?

Rosto crispado, em uma entrevista gravada um ano após a queda do Muro, Günter Schabowski admite que recorrera a um psicólogo para tentar explicar (-se), o que lhe tinha dado nos miolos naquele final de tarde de 9 de novembro de 1989. 

Nesta altura já expulso do SED, e vagueando desempregado pelas ruas da Berlim, sem muro, diz, sem vergonha alguma: “Vá saber, talvez foi mesmo um ato falho, porque um regime daqueles não merecia outro desfecho”. 

Hoje, o comunista de carteirinha Günter Schabowski é filiado ao CDU - o partido democrata-cristão, conservador, de sua ex-arqui-inimiga na RDA, a Chanceler Angela Merkel. 

Mais de vinte anos depois, novos fatos sobre aquele fatídico e delirante 9 de novembro de 1989 emergem dos bastidores da História. 

Um deles é que o jornalista Ricardo Ehrman foi efetivamente “cutucado” por Günter Pötschke a interpelar Schabowski. Pötschke, que não pode mais confirmar o lance, porque morreu recentemente, era editor-chefe da agência oficial ADN, da RDA, e também membro do comitê central do SED. 

Uma cópia do bilhete que resumia as novas instruções de liberação de viagens descansava sobre o tampo de sua escrivaninha, mas também vetada para divulgação antes das 10 da manhã do dia 10 de novembro. Sendo velho conhecido de Ehrman, Pötschke o encorajou para furar o bloqueio noticioso, com isso abrindo espaço para sua própria divulgação.


Mas a noite prometia outros imprevistos.

Uma equipe de TV da Alemanha Ocidental, não identificada, mas a serviço do canal a cabo da revista Der Spiegel, embrenhara-se “território adentro”, em Berlim Oriental, tomando conhecimento da notícia dada por Schabowski, num boteco do bairro rebelde de Prenzlauer Berg. 

E “seguindo o povo, para onde o povo vai”, os documentaristas subvertem aquela máxima do partido, captando cenas dignas de um Moisés dividindo ao meio as águas do mar bravio, para dar passagem ao povo escolhido.

No posto Bornholmer Strasse, de entrada (mas nunca de saída) da RDA, a multidão já se aglomerava, cobrando em coros altissonoros “Wir wollen raus!” (Queremos sair!) e “Macht auf das Tor”! (Abram os portões!). 

E diante da câmera deslinda-se a História.


Com movimentos ainda imperceptíveis na guarita de controles, oficiais das tropas de fronteira e da temível StaSi estão confusos. Ligam para seus superiores, que não conseguem dar-lhes instruções objetivas, porque não estão menos desnorteados. 

Sentindo-se protegida pela presença da mídia ocidental, a massa começa a levantar o tom de voz, o caldo atingindo o ponto de fervura. É quando entra em cena outro “traidor” daquela noite: Tenente-Coronel Harald Jäger, da Stasi, que reúne os subordinados em sua sala, para calçar-se na decisão que vai tomar. Vinte anos depois, diz em entrevista: - Eu queria saber deles, o que deveria fazer. E eles responderam: ´Você é que tem que saber, ora essa, o chefe é você!´ E eu respondo: ´Devo permitir que os cidadãos da RDA saiam? Ou devo abrir fogo? – pelo amor de Deus!” (...) Depois pensei: "já encheu o saco, agora vou agir por conta própria."


E Jäger toma sua decisão, sozinho, sem ordens superiores: manda erguer a cancela, melhor: a eclusa – e sem qualquer controle a torrente humana desembesta rumo a Berlim Ocidental.

 Naquele momento, diz Stefan Aust, diretor do documentário, com o Muro cai também a RDA, e desfaz-se em frangalhos um sistema autoritário que reinava de Berlim a Moscou, de Vilna a Bucareste, declarando página virada da História aquela ordem mundial, obsoleta, do pós-guerra – instante histórico em que, quarenta e quatro anos após o silêncio das armas, a 2a. Guerra Mundial termina de fato.


Centro de uma trama até hoje só parcialmente explicada, Schabowski e seu bilhete ganharam a aura do mitológico. 

Schabowski sabia mesmo o que estava lendo para os jornalistas? E os jornalistas: quantos tinham aceitado fazer perguntas previamente combinadas? Um baralho marcado para atropelar a “turma” de Egon Krenz, recém-chegada ao poder? Por acaso Schabowski tentou jogar seu próprio jogo, entrando para a História como o herói que detonou o Muro? E se Krenz sabia do bloqueio da notícia até as 4 da manhã - por que insistiu em divulgá-la? Aquilo, tudo, foi mero “acaso”, ou uma traição coletiva do inconsciente também coletivo?


Um ano mais tarde, o cáustico, esquerdista e saudoso dramaturgo Heiner Müller, empossado como diretor do teatro Volksbühme, me convidaria para participar do primeiro aniversário da queda do Muro, com um programa assaz irônico.

Ao escolher a leitura dramática de “A missão”, para celebrar à sua maneira o evento, Müller estava interessado em discutir o lado trash, a nota de rodapé verdadeiramente esdrúxula, hilariante, da História. 

Personagem central da peça “A missão”, Dubuisson é enviado ao Caribe para exportar a revolução de 1789. Mas quando seu barco se aproxima da costa exuberante, bordejada por aquele mar cor de esmeralda, Dubuisson, que também é dono de engenho de açúcar e de escravos africanos, muda de idéia; perpetuando-se como novo governador da ilha. Daí a frase corrosiva de Muller: “Onde a paisagem é bonita, espreita a traição!”.


Como paisagem bonita, o cartão-postal coruscante de um “supermercado” chamado Berlim Ocidental certamente exerceu fascínio inconfessável em não poucos camaradas da liderança da RDA. 

A ironia dessa noite, já na Kurfürstendamm – a rebrilhosa Champs Elisées prussiana – é que os orientais não correram atrás das roupas de griffe, mas das ordinárias bananas da marca Chiquita, exportadas pela famigerada United Fruit. - para Muller e outros, prova ilustrativa de que a fome dos orientais era por uma sórdida “República de Bananas” (algumas pessoas não gostaram da comparação).

O bilhete de Schabowski

O ato falho de Sahabowski




Fotos: divulgação

27 setembro 2017

Walter Benjamin - Morte em Portbou


La muerte de Walter Benjamin



FERRAN BONO 27/09/2005, EL PAÍS
 
Un 26 de septiembre, como ayer, murió Walter Benjamin. Corría el año 1940. El pensador alemán, judío y marxista, había traspasado los Pirineos con el objeto de embarcar hacia EE UU. Llevaba varios años de exilio en Francia. Huía de los nazis. Y encontró la muerte en el pueblo catalán de Port Bou. En una fonda de la frontera, bajo la vigilancia de tres policías del régimen fascista que tenían las órdenes de deportarlo en la Francia colaboracionista de Vichy al día siguiente. Un día como el de hoy.

     Sus allegados hablaron de suicidio; el parte médico tipificó el deceso de muerte natural. Nunca se han esclarecido completamente las circunstancias que rodearon la muerte de este pensador, uno de los más influyentes de la primera mitad del siglo XX, el autor de La obra de arte en la época de la reproductibilidad técnica.

     El documental Quién mató a Walter Benjamin... aporta nuevos datos sobre los hechos. Es el fruto del trabajo de investigación de tres años de su director, el francés David Mauas, que se ha entrevistado con personas implicadas en el caso en Alemania, Francia y España. También ha consultado en archivos de Israel, Estados Unidos e Inglaterra.

     "Con la intención de realizar la primera investigación coordinada entre los tres países, complementar los puntos de vista de sus autoridades y explorar a fondo el mito del suicidio, el director creó este film noir, híbrido entre el documental clásico y el video art. El director dice que Quién mató a Walter Benjamin... "no supone sólo la reconstrucción de una muerte, sino el retrato del escenario de un crimen", señala la nota informativa del Instituto Goethe de Barcelona, que ha apoyado la producción del documental junto al IVAM, y otras instituciones como European Association for Jewish Culture. La producción ha corrido ha cargo de Medianimación y Milagros Producción, con la coproducción de Televisió Catalana y Nik Media (Países Bajos).

     El documental se estrenará el 6 de octubre en el Instituto Francés de Barcelona. Luego se proyectará en el Festival Internacional de Cine de Sitges y a finales del mes de octubre, está prevista su emisión en el IVAM. La TVC estrenará una versión televisiva.

     La película pretende responder a las siguientes preguntas: ¿Encubrió el médico la verdadera causa de la muerte? ¿Adónde fue a parar su último manuscrito? ¿Tenían conocimiento las autoridades españolas acerca de la importancia de este "viajero extranjero" que fue enterrado según rito católico y bajo un nombre equivocado? ¿Se trató realmente de un suicidio?

     El documental es, también, un retrato de un pueblo de frontera, anclado entre dos frentes, "testigo de evasiones, persecuciones y falsas esperanzas", añade la nota del Instituto Goethe. Un pueblo en el que el artista judío Dani Karavan, que expuso en el IVAM de la mano del anterior director, Kosme de Barañano, instaló un monumento en memoria de Benjamin, nacido en Berlín en 1891.

     La muerte del gran pensador ha provocado numerosas especulaciones. Incluso el episodio ha sido tratado por la novela El pasajero Walter Benjamin (Igitur) de Ricardo Cano Gaviria, una "elegante y muy sutil recreación de las últimas horas que precedieron a la muerte por morfina del escritor, que oficialmente murió de hemorragia cerebral en aquel hotel de frontera de Portbou", en opinión de Enrique Vila-Matas. El escritor catalán comenzaba así un texto del 26 de septiembre de 2000: "Prefiero pensar que hace 60 años en Port Bou, en las horas que precedieron a su muerte por morfina, Walter Benjamin conoció cierta lucidez mientras sufría las tinieblas y, en la desgracia final, conoció la pasión de no tener nada; una pasión que no deja de ser un buena compañía a la hora de vivir y también a la hora de morir".

Ilustrações: divulgação

Frederico Füllgraf - Walter Benjamin em Ibiza



Nota
Frederico Füllgraf

De 1932 a 1933, Walter Benjamin  viveu na ilha mediterrânea, espanhola, de Ibiza. Naqueles anos, o escritor e pensador berlinense atravessava uma grave crise existencial, defrontando-se com mudanças que pareciam questionar a continuidade de sua obra e de sua vida, pois ali cometeu sua primeira tentativa de suicídio.
Pano de fundo de sua depressão foram o descalabro econômico e a conseqüente eleição dos  nazistas na Alemanha, que agravaram ainda mais sua precária situação financeira e a falta de  perspectivas profissionais.
Sua decisão de estabelecer um interregno em Ibiza, escolher a ilha balear como  uma dos primeiros destinos de seu exílio,  surpreendeu amigos e convivas, e ocorreu sem grandes preparativos. Apesar disso, alguns de seus mais destacados escritos autobiográficos datam exatamente desta estância – o primeiro verão do fatal exílio de Benjamin.

Julia Radt-Cohn despertara em Benjamin sentimentos de raro romantismo, mas do sisudo intelectual dizia a jovem Julia que ele era tão travado e esquisito, que não conseguiria despertar nenhum desejo sexual em qualquer mulher. Apesar da rejeição de Julia, Walter prosseguiu insistindo...
Já Gretel Karplus era uma dinâmica empresária de Berlim, que se casou com Theodor Adorno,  amiga fiel de Benjamin até sua morte.
Dos cartas de Walter Benjamin
(Traducción: Germán Cano)
A Julia Radt-Cohn
San Antonio, Ibiza, 24 de julio de 1933
Querida Jula:

Me ha causado una gran alegría recibir tu carta: apareció justamente el día de mi cumpleaños, y por esa razón, como comprenderás, fue más bonito que si lo hubieras pensado a propósito. Lo que sucedió fue como si tu inconsciente hubiera trabajado en mi honor bajo la mano del servicio postal.

Pero es que además tus noticias han sido gratas, pues es tan loable ver cómo vosotros en estos tiempos trabajáis por enraizaros en las arenas movedizas de la región de Brandenburgo como poco recomendable para cualquier otro. Pero si tú quizá miraras o pudieses mirar por encima de mis hombros mientras te escribo, verías jugar sobre este papel parisino que me gusta utilizar en casa desde hace tiempo sombras de las agujas de los pinos que no serías capaz de diferenciar de las que ves allí, y si miraras delante de ti no verías el mar, aun cuando sólo está alejado apenas tres minutos de mi escondite veraniego.



A un sitio como éste me he trasladado con mi tumbona desde que, tras un comienzo poco afortunado en la orilla edificada opuesta de la bahía, conseguí volver a la parte apenas edificada del año pasado. Hasta llegar aquí, mi forma de vida ha sido más inestable, dividida entre las posibilidades de trabajo insatisfactorias que encontraba en San Antonio y los entretenimientos en cierto modo bastante significativos que podían encontrarse en Ibiza. Pero un viaje de negocios necesario a Palma introdujo una cesura en mi estancia aquí. He conocido Mallorca este año mucho mejor dando largos paseos y viajando en coche. Ahora bien, por bonita que sea la isla, lo que pude ver allí no hizo sino reforzar mi apego a Ibiza que posee un paisaje incomparablemente más reservado y misterioso. Las imágenes más bellas de este paisaje quedan remarcadas por las ventanas sin cristal de mi habitación. Éste es el único espacio por ahora habitable de una casa en estado bruto en la que todavía hay que trabajar durante mucho tiempo y de la que yo seré el único habitante hasta que la finalicen. Al instalarme en este cuarto he reducido a un mínimo difícilmente superable los límites vitales de mis necesidades y gastos. Lo fascinante de todo el asunto es que todo sigue siendo lo bastante digno, y lo que echo en falta aquí no proviene tanto del lado del confort como de la ausencia de relaciones humanas.


Las relaciones que constituyen la crónica de la isla son para mí en su mayoría fascinantes, pero algunas veces también decepcionantes e insatisfactorias. Cuando se da esto, el peor de los casos, ellas al menos me dejan más tiempo para desarrollar mis proyectos y estudios. Mi ‘Infancia en Berlín hacia 1900’, de la que tú has entendido desgraciadamente tan poco y en la que hay tanto que comprender, sigue creciendo en escasos pero importantes fragmentos. (…) Sigo leyendo a Bennett, y reconozco en él cada vez más a un hombre no sólo cuya actitud es actualmente similar a la mía, sino que además sirve para reforzarla: un hombre en realidad en el que una absoluta falta de ilusiones y una desconfianza radical respecto al curso del mundo no conducen ni al fanatismo moral ni a la amargura, sino a la configuración de un arte de la vida extremadamente astuto, inteligente y refinado que le lleva a sacar de su propio infortunio oportunidades y de su propia vileza algunos de los comportamientos decentes que competen a la vida humana. Deberías llegar a tus manos la novela ‘Clayhanger’, que ha aparecido en dos volúmenes en la editorial Rhein.

Podrás imaginarte fácilmente que mi correo apenas contiene noticias agradables. Gracias a Dios, lo mejor de todo ello tiene que ver con Stefan, que en este momento hace un viaje en coche con mi mujer que le llevará por Austria y Hungría hasta Siebenbürgen y Rumanía. Las noticias de los amigos de París son desmoralizadoras, pues la situación es tan desesperanzadora por un lado o por otro que ellos han dejado completamente de escribir. Lo que pueda esperarme en París por lo tanto es extremadamente problemático. En cualquier caso, un comienzo no del todo desfavorable es una magistral traducción de Infancia en Berlín que está llevando a cabo aquí un amigo parisino con mi ayuda. Pero ella avanza muy lentamente. Es posible leer entre líneas en tu carta que Alfred aún se mantiene firme al viejo estilo. Me gustaría tenerle aquí; él es uno de los pocos que yo me podría imaginar bajo estas difíciles pero fructíferas circunstancias de la isla. Pero mejor no le digas nada y salúdale de todo corazón, como también a Fritz.

Por lo que respecta a nosotros, las cartas son quizá la mejor oportunidad para estar juntos. Por eso recibe esta afectuosa carta, rogándote la próxima tuya.

Cenas da vida privada - a casa de Puntas des Moli
Abaixo: Benjamin jogando xadrês com B. Brecht


A Gretel Karplus


San Antonio, 19 de septiembre de 1933

Querida Felizitas:



Recibí tu carta del día 13, y ello me ha llevado a pensar que me habría gustado haber tenido al menos otra tuya. En realidad, ya no es mi salud la causante del aplazamiento de mi viaje, sino la situación misma —y desconocida además para mí— de ese lugar parisino en el que esperaba encontrar alojamiento. De hecho han transcurrido ya más de ocho días desde que se me envió un telegrama en el que se me pedía que no viajara sin recibir antes una confirmación del asunto. Como hasta la fecha no he recibido aún esta carta, no sé con qué me encontraré cuando finalmente llegue.

He tenido que abandonar mi cuarto de almacén si no quería contraer un nuevo compromiso a largo plazo y oponerme a la prescripción del médico, quien no esperaba una curación rápida en San Antonio. En realidad experimenté una evidente mejoría ya dos o tres días después de mi traslado. Ahora puedo, aunque con precaución, regresar.



Te doy mil gracias por la foto en Rügen: es cariñosa e incita a reflexionar; pienso, por ejemplo, que ni siquiera en Berlín no te faltan del todo este tipo de momentos. En todo caso, he entendido como mensaje uno de ellos, lo que me escribiste con tanto cariño sobre La luna. Me he sentido muy contento con él. Por mis dolores he perdido para el trabajo dos semanas, tal vez más. Ahora me estoy atreviendo a escribir un fragmento de ‘Infancia en Berlín’ que recree la atmósfera de la escuela. Este trabajo y, más que cualquier otra cosa, el asunto del traslado están absorbiendo todo mi tiempo, por lo que tengo que hacerte la confesión de que aún no he leído la ópera de Wiesengrund. Pero será algo que haga enseguida. ¿Dónde? Probablemente pienso que en París; creo que incluso en el caso de que no reciba pronto ninguna información de allí, viajaré aproximadamente dentro de ocho días para examinar a fondo cuáles son las posibilidades reales que existen. Sumando una serie de papeles oficiales que he logrado reunir, he intentado dejar la puerta abierta en todo caso a la posibilidad de una retirada a mi asilo de aquí, una puerta, dicho sea de paso, que cada vez es más difícil que se abra a los alemanes.



Desde la carta que tú me confirmaste has tenido que recibir, al menos, una nueva. A mí, entretanto, me ha llegado a las manos tu último envío. No puedo sino darte las gracias por todo. Piensa, por favor, en París con perspectivas más convincentes. Incluso en el peor de los casos no pienso salir de allí sin haberte visto antes. ¿Después de Musil has planeado leer algo mejor?

Leo actualmente a la ‘Princesa de Cléyes’, de Madame de Lafayette. Además, mientras esté en Ibiza seguiré alentando la traducción de ‘Infancia en Berlín’. Una traducción muy correcta de Logias está ya casi preparada. Ernst, naturalmente, no ha escrito. Moras, naturalmente, tampoco ha enviado ningún número de la ‘Europäische Revue’. Ça ne fait rien.
Hazme saber cómo te va. Escríbeme pronto; yo por mi parte cuidaré de contestarte. Todo mi cariño.


(’Cartas de la época de Ibiza’, Ed. Pre-textos, 2008)

23 setembro 2017

Frederico Füllgraf - Ela tinha um astro no lábio


"Nu deitado", 1917 - Amedeo Modigliani 




Conto

Quando, esparramada de costas, recolhia suas pernas fortes contra os peitos bem-conformados, ainda rijos, com mamilos eriçados, suas ancas simetricamente esculpidas, de fêmea quarentona, alcançavam a plenitude da forma (provavelmente a intenção do Criador): duas grandes peras de alabastro abauladas na base com volúpia, e que limite não tinham, pois (outra intenção do Criador) suas curvaturas eram a abóbada de uma capela, o número 8, a sinuosidade da Via Láctea, uma alegoria do firmamento.

            Assim retesada, empinada para as alturas - posição que poderia insinuar a ascensão da alma, e que na verdade era alçapão do desejo, ou ambas as coisas - sua brotação ostentava um vale em alto relevo: nas cumeeiras, na direção do umbigo, vicejava relva ligeiramente desbastada, espécie de orla para dobras e refolhamentos carnudos, em cuja extremidade superior pulsava uma greta úmida, bordejada por lábios rosados e encimada por um broto, cuja fragrância era de maresia. Na extremidade inferior escondia-se, sombreada, uma espécie de roseta da cor do cacau, entretecida de pregas, que ao mais leve toque latejava e exsudava um buquê almiscarado.

            E assim obsequiosa ela o espreitava, tentando adivinhar a latitude por onde sua geografia seria assaltada e penetrada. Algumas vezes, em espaços como a cozinha, provocava-o, arregaçando a camiseta, como única peça que cobria sua nudez, abrindo suas coxas roliças até o completo desvelo de um pássaro emplumado – que segundo o ângulo da contemplação também poderia ser um às de copas, um ninho de garças, ou ainda o cálice de uma flor, cujos lábios apartados e dobrados para fora, insinuavam uma borboleta em repouso. 

As asas já transbordadas de néctar, ela o montava e cavalgava, arquejando - a fronte crispada, cabelos esvoaçados, os olhos embotados de fúria e prazer. Possuída e posseira, esporava sua montaria, galgando morros imaginários e galopando encosta abaixo, abandonada à vertigem; esvaída até o alagamento.

            Certa noite, quando ele dedilhou suavemente aquela roseta, como fosse a corda de um violino, ela sussurrou-lhe palavras cujo intimismo aqui não pode ser sem mais nem menos franqueado. Disse que ser assim... “tomada”, “embrenhada”, era o que mais desejara desde a leitura daquela luxuriante crônica dele, sobre a apimentada vizinhança da culinária com o erotismo. Então ele a beijou nos lábios e nos seios, retirou-se de sua fenda inchada e viscosa, e pressionou seu bordão contra o broto chocolatado, pulsante. Cochichou meiguices no ouvido dela, e sentiu uma leve dilatação sobre a cabeça de seu membro. À primeira estocada, deteve-se para não machucá-la, mas sentiu um aperto, um insistente abraço por um anel imaginário, carnudo e latejante. Deslizou suas mãos sob as ancas da mulher, e, uma em cada mão, embutiu-se em seu centro; visitando-a, explorando-a, invadindo-a, e a cada cutilada, deflorando-a. Conquistando territórios dela nunca dantes tocados, enrabando-a, arrombando sua intimidade, alagando-a, sentindo o apossamento de cada milímetro de seu báculo ereto e duro, pela flor carnívora dela. E ela aspirando faminta, confrangendo, supliciando, gozando-o. Não pensou até o final a pergunta, se a mulher gozaria, ali possuída, porque ela sacudiu-se num sem número de raptos, espasmos e fonemas arfantes; o tronco enraizado até o âmago de sua fêmea.  E foi então que ele sentiu e, incrédulo, tocou e viu o encharcadiço, o enxurro melado e adocicado transbordando por seus anéis cintilantes, que repousavam feitos coroa sobre seu abismo apaixonado e esbraseado – um prodígio da natureza, o vaso proibido transbordado de desconhecido mel, derramado para o seu pássaro. Mel dela!

            Ela era sua geografia e ele seu cartógrafo. Com a bússola do instinto explorava-a. Com o teodolito do olhar media-a, mapeava-lhe os relevos e concavidades. Dois vagabundos da noite em busca da ilha do tesouro. E ela tinha um astro no lábio...

            Quando ela resfolegava de bruços sobre os lençóis, parecia derramar o território da poesia. E então as formas se invertiam. No sul nasciam e alongavam-se duas colunas simetricamente torneadas, fortemente dilatadas e alombadas ao norte – as tais peras de alabastro, em repouso. Confluindo em sentido oposto, sobre a crista lombar, corria a linha, ao mesmo tempo tributária do vale e das duas colinas contíguas. Agora a relva jazia na extremidade inferior da gruta, suspensa sobre o nada. Acima dela desenhava-se um fruto do mar na vertical; concha entreaberta pelos trancos da maré, entreluzindo folhamentos viscosos, que friccionavam delicadamente um contra o outro, quando ela corrigia a posição das pernas. E coroando o abrigo, o segredo à imagem da teia: um embuço de gruta estreita e sinuosa, apenas separada da concha por uma delicada película, acariciada ora num, ora noutro lado de seu arremate.

            E ali jazia ela, ofertando coxas, concavidades e grutas, a meseta de suas costas estendida até seus ombros, que debruçados sobre seu peito, expulsavam para os lados algumas curvas de suas mamas. Lá no umbral da espécie, a mulher descobrira-se femina erecta, e soerguendo-se, recolhera suas retro-eminências, compensando-as na altura do peito com dois frutos - e conta-se que seriam uma réplica fiel, esculpida pelas mãos da natureza, das curvas de um tralalá, ou popô.

            E como explicar, então, este fascínio do macho pelo traseiro de sua amada? Com a catequese velho-testamentária da cópula, o sex between mountains, praticado na sábia e requintada Babel, recebeu o agravo indevido de "sodomização”. Para os abramitas, certamente uma geográfica heresia, porque noves fora o Ararat, na Turquia, naqueles desertos, mountains não havia. E a transição ao Cristianismo deu-se com a mesma pregação, de tabu horripilante, designação de carnalidade demoníaca. Mas isto porque aqueles hebreus fundamentalistas afirmaram ter flagrado alguns homens na indecorosa posição... Todavia, de Babel, pela reprodução do ato nas ânforas helênicas e nos afrescos de Pompéia, a pergunta, há muito respondida, não queria calar: a mera paisagem não enfeitiça o macho, e a incursão ambilátera não faz a fêmea sentir-se poderosa?

Suspenso o ritual milenar de acasalamento pela esfregação das cavidades odoríferas, dela, no nariz do macho, logo enquadrado e punido o livre coito, estabeleceu-se a teoria dos vasos, condenando-se à crispação no fogo eterno a jubilosa (e pela fêmea, ansiada) penetração de seu vaso condenado, mas pedinte. Signo da cruzada hipócrita, indexou-se toda sua melodiosa nomenclatura (coitus more ferarum, coitus a posteriori, coitus from behind), instituindo-se, finalmente, a ditadura e a melancolia do vaso único – Desde então Post coitum triste omni est...

            Mas a desforra da natureza não demorou, pois a libido represada voltou a impor-se através da pintura e de mal-dotadas damas parisinas. É a estória do “traseiro barroco”, por exemplo, sabendo-se que barroco foi sempre um eufemismo generoso para excessos transbordantes, como as bundas das "Três Graças“, do pintor Peter Paul Rubens; bundas, que de tanta fartura jogavam faldas e sulcos, já se confundindo com as dunas do Magreb... Já os faux culs, do final do séc.19, aquela diatribe (sempre francesa!) das falsas bundas, foi um artifício para apreender o olhar masculino pelas tournures; um acolchoado de nádegas, prótese de ancas (em falta), armação de arame afivelada debaixo das anáguas, que conferia à sua usuária aquele porte de cisne, com notável rabo empinado.

            Pois, como dizia, ali jazia ela: bela como a imperfeição dionisíaca... Mas então, como resistir, não desejar penetrar e de-vastar essa paisagem venusina?

            Numa carta escrita em 1909, à sua amada, suspirava o garanhão, James Joyce: ”Minha doce, pequena puta Nora (...) Estou encantado em saber que você gosta de ser comida por trás. Senti tuas grandiosas nádegas banhadas em suor roçando minha barriga, e deparei com teu rosto ardendo febrilmente, e o desvario nos teus olhos”.

Consta que uma mulher que não tem acesso à fantasia da puta, não teria acesso ao gozo. Condição desse acesso seria entregar seu corpo, digamos, “com segundas intenções” – libertinagem reprimida, assaz curiosa... A propósito, James: a palavra “puta” não produz efeitos que vão da excitação à ofensa? Mais que grande mal-entendido, o mito masculino (e feminino) não reside na crença de que a realização de fantasias é prerrogativa da cortesã, fadista ou dadeira? E o pior: estabelecida sobre o primado do dinheiro, que compra pedaços de corpo (quanto mais recônditos e “proibidos”, mais caros), a putaria expulsou do encontro dos corpos a confluência dos sentimentos. E como divisórias entre as almas, espreitam bilhetes usados, numerados pelo Banco Central.

            E ele pergunta-se, sem preconceito algum: o que faria uma "puta", que essa mulher fagueira não fez por entrega, nele aninhada? 

Talvez da geografia brote o amor, como é mais provável ainda que do amor rebente a desavergonhada exploração da geografia.