27 maio 2021

Frederico Füllgraf - O dia em que a V-2 de Hitler caiu em Ciudad Juárez

Excerto de "O caminho de Tula"
romance em construção

Naqueles dias de deambulações de Albert George pelas ruínas de Nassau, ocorria um episódio insólito no deserto do Novo México, do outro lado do mundo.
Porfírio Contreras, capataz de uma herdade localizada junto à fronteira com o Texas, tem a prova de que foi o dia 29 de maio de 1947, porque se percebendo a distância segura, apeara de seu cavalo, e com a ponta de seu punhal, que levava embainhado às costas, entre o cinturão e as ceroulas, no lado esquerdo inferior da cela de couro gravara a data daquela aparição, para que no futuro nem seus netos duvidassem do que vira!
Contou-me Contreras que, enquanto cavalgava de volta à estância, vaquejando mil e quinhentas cabeças de boi com seus peões, foram surpreendidos pelo bramido ensurdecedor de um objeto voador com forma imprecisa, mas apetrechado com aletas, e que a baixa altura, estimada em quatrocentos pés, descrevera uma elipse sobre suas cabeças, desaparecendo por trás de uma quebrada, de onde logo os alcançara o estrépito e a restolhada de ferros retorcidos. 

Ajuntou o mayoral que a primeira reação de seus homens foi perguntarem-lhe se depois de roubarem o Texas, o Novo México e o Arizona, desta vez os americanos invadiriam a capital do país - tal seu pavor e indignação! 


A notícia fizera eco em toda a região fronteiriça, mas instruído por um despacho recebido pelo telégrafo, com a advertência, “ultra-secreto!”, o cônsul americano em Juárez reunira os diretores do único jornal e da única estação de rádio da cidade (obviamente estranhando que fossem da mesma família), ordenando-lhes you guys shut up!, o que traduzido queria dizer "em boca fechada não entra mosquito!" - enfim, que seus repórteres calassem suas matracas sobre o sucedimento impronunciável.




Este era “o mais infame lançamento”, nas palavras de Wayne Mattson, antigo pesquisador dos esfíngicos movimentos ocorridos no deserto de White Sands desde a rendição da Alemanha, referindo-se ao incidente internacional causado pela estranha "arma voadora" que despencara sobre os jazigos de um cemitério de Ciudad Juárez.
Ainda bem que no México não sabiam do que ocorrera do outro lado da fronteira, uma semana antes – sairiam correndo de suas casas para não mais retornar!
Trama paralela. 

Em sua edição de 22 de maio de 1947, o "Alamogordo News" alardeara o susto da população da localidade de mesmo nome, “tocada por incipiente pavor”, quando uma sorte de objeto voador irrompeu em voo errático nos céus sobre a pequena cidade encravada no deserto, explodindo estrepitosamente ao chocar-se contra as montanhas de Sacramento.



Seu lançamento ocorrera às 4h08 da tarde, no Complexo 33 de White Sands. O propelente líquido fora programado para queimar durante 63,6 segundos, acelerando o foguete, com 9.827 libras de peso, à velocidade de 4.696 pés por segundo, ou 3.202 milhas por hora, elevando-o até uma altitude de 76 milhas nos céus do Novo México. Subitamente, porém, o engenho começara a cambalear, a pressão partindo ao meio o míssil, cujos destroços despencaram nas proximidades da 13ª. Rua com a Cuba Avenue, e também sobre os trilhos das Ferrovias da South Pacific.
Mas do que, diabos, estavam falando?
Alguns malucos saltaram em seus carros, relatava o jornal, apressando-se em alcançar o local do choque, localizado a mais de trinta milhas da base do disparo. 

Bob Calloway, que jogava bola com alguns garotos entre a Avenida Michigan e a 15ª. Rua, conta que os fios elétricos estendidos entre os postes naquelas ruas começaram a vibrar violentamente.
Montados num caminhão, ele e seus amigos acudiram ao local da queda, onde apanharam alguns destroços como troféus. Eram fiações e tanques metálicos que usaram para montar aeromodelos, merendeiras e caixas de ferramentas portáteis.
Eis o fim do misterioso "lançamento" ocorrido no dia 15 de maio, estranhamente noticiado apenas no dia 22, uma semana depois.
Os tais "lançamentos" eram top secret.
Por isso, poucas horas após o bombardeio do cemitério em Ciudad Juárez, um destacamento do ministério do ar americano cruzara a fronteira para inspecionar o local do sinistro, encontrando-se com uma turba de mexicanos já empenhada em saquear e vender a sucata que caíra do céu.

Só então o cônsul gringo e os nativos ficaram sabendo que a invasão do espaço aéreo do México fora um acidente, pois, como tratara de elucidar Monte Marlin, oficial de relações públicas do campo de provas balísticas de White Sands, "ao invés de obedecer à trajetória programada, navegando para norte, a engenhoca se desgovernara, e sobrevoando El Paso, do outro lado da fronteira, rumara ao sul..."

- Luckily, no one was injured! – tratou de contemporizar o porta-voz diante das carrancas varadas dos hispânicos.

Ao próprio cônsul, pasmado, confidenciou que em meados de 1945, nada menos que trezentos vagões de trem haviam descarregado em Las Cruces o mais fantástico butim de guerra de todos os tempos!

Eram motores das bombas voadoras alemãs V-2, como essa que acabara de espatifar-se nos ermos. Era mais: ali abundavam fuselagens, tanques de propelentes, giroscópios e outros equipamentos com funções a adivinhar.

De Las Cruces, fim da malha ferroviária, as super-armas alemãs seguiram em caminhões - centenas de caminhões! - para a base de White Sands. 

Lá estava funcionando um programa, explicou Marlin, para treinar americanos em operações de lançamento com armas teleguiadas, artifício até ali sobejamente desconhecido na América.

Infelizmente, ajuntara o oficial, apesar de operadas pelos cento e setenta e sete cientistas e técnicos que as tinham desenvolvido na Alemanha, nem todos os disparos com essas armas eram exitosos, embora estimasse que sua margem de acerto fosse de sessenta e oito por cento. Portanto, somente aqueles trinta e dois por cento errantes – ehhmm... restantes!, corrigiu-se rapidamente - explicavam o desvio imprevisto daquela V-2 para Ciudad Juárez.

E arrumando num caminhão militar, fortemente guarnecido, os destroços que restavam da arma futurista, que não deixaram fotografar pelos mexicanos, os americanos retornaram à fronteira e desapareceram.


Fotos: divulgação

20 maio 2021

Frederico Füllgraf - Peregrinações pelas ruínas de W.G. Sebald


Ensaio


Ao invés de sair caminhando, como de costume, para um de seus passeios (muitas vezes tornados demoradas peregrinações) pelas paisagens ermas e entroviscadas da Anglia Oriental, junto ao golfo de Norfolk, neste 14 de dezembro, Max subiu ao seu carro para buscar sua filha em Norwich e não mais retornou: disseram tê-lo visto mergulhar no trânsito em sentido contrário... Sofrera um ataque cardíaco ao volante, bateu de frente, desapareceu entre as ferragens, morte instantânea.  Hospitalizada em estado grave, sua filha sobreviveu. Max morreu justamente quando tinha alcançado o topo. Ia receber o importante prêmio literário National Book Critics Circle por Austerlitz, seu último livro.

A morte de Max, apelido para os mais íntimos, do escritor alemão W.G. (de Winfried Georg Maximilian) Sebald, naquele dezembro de 2001, enredou no luto os entes mais queridos mas também os leitores, do mundo todo. Dos apenas iniciados em sua densa e impenetrável obra, até a crítica, todos  entenderam-se órfãos. Ao ler a notícia do acidente de Sebald, Rui Tavares, crítico português, sentiu "que o mundo físico se comprimira e afunilara momentaneamente, talvez como sinal da aridez que sempre se acrescenta quando desaparece alguém que, como Sebald, consegue pensar e enriquecer o mundo".

"Será possível, ainda, a grandeza literária? Ante a decadência implacável da ambição literária, a convergente ascensão de desengano, a verborreia e a crueldade insensível como assuntos normativos da ficção, o que seria na atualidade um projeto literário centrado na nobreza? A obra de W. G. Sebald é uma das poucas respostas disponíveis aos leitores do idioma inglês", desabafou Susan Sontag, antes de despedir-se, ela também, e fazer-lhe companhia no silente além.

Nascido em 18 de maio de 1944 em Wertach, distrito do Allgäu, região alpina alemã, Sebald levou a vida viandante e perscrutativa do personagem central, o alter-ego que conduz a narrativa em todos os seus livros. Filho de um ex-combatente alemão nas fileiras da Wehrmacht de Hitler, deixa a terra natal para estudar Literatura em Freiburg/Breisgau, curso que abandona após o segundo ano, transferindo-se para a Suíça francesa, onde se habilita com uma licenciatura em 1966. Da Suíça migra para Manchester, onde atua como docente até 1969, quando retorna à Suíça. Depois de um ano como professor em escola secundária em St. Gallen, volta à Inglaterra, para tornar-se professor-assistente de literatura comparada na Universidade de East Anglia, em Norwich; desde 1984 como professor - titular.

Autor de refinada prosa ensaística que dialoga virtuosamente com a literatura universal (O mito da destruição na obra de Döblin, 1980; Descrição do acidente – sobre a literatura austríaca de Stifter a Handke, 1985; Pátria Mal-Assombrada, 1991; Hóspedes em uma casa de campo – perfis autorais de Gottfried Keller, Johann Peter Hebel, Robert Walser ee.oo, 1998; Guerra aérea e Literatura, 1999 – todos inéditos em Português), é no Romance, contudo, onde irrompe seu inerrante e melancólico olhar sobre a História e o desgarramento humano na geografia dos sonhos e dos acidentes de percurso individuais.

Sebald começa a escrever tarde, aos 47 anos. Em menos de dez anos, porém, consegue construir uma obra tão consistente e de esmeradas traduções para o Inglês (inspecionadas pelo autor), que seus livros repercutem primeiramente no universo cultural anglófono antes de seu reconhecimento na própria Alemanha. A revista The New Yorker o aclama como o mais importante escritor europeu da virada do milênio e a crítica norte-americana arrisca propô-lo ao Nobel de Literatura.

Durante a leitura de seus textos, duas inevitáveis associações impõem-se: o parentesco espiritual, fatalista, de seu olhar sobre a História, com a fatalidade histórica codificada na metáfora do Angelus Novus de Walter Benjamin – História como tragédia, amontoado de ruínas, que insiste em ser decifrado pelo contemplador, e uma Humanidade incorrigível que insiste em ser devorada. À obsessão pelo esquecimento, Sebald opõe o imperativo da memória; lembrança como didática da tomada de consciência. História como corpo enterrado vivo, sedimentado em camadas de esquecimento, não-resolvido. E História como tempo derretido, simbolizado pelos relógios moles de Dali, lava que abre feridas na paisagem, que não cicatriza; a dor que persevera.

Primeiro livro de Sebald, Nach der Natur (Do natural, 1988) é um tríptico sobre o amor e o temor à Natureza, na forma de "poema elementar", como o legendou o autor. Pérola de linguagem, nela Sebald discorre sobre a vida de três homens que experimentaram dolorosamente o conflito com a Natureza.


No primeiro painel desfila Matthias Grünewald, pintor de santos, crucificações, eclipses e catástrofes, que viveu os horrores de um tempo em que já se perseguia aos judeus e nas guerras se arrancava os olhos aos vencidos. O segundo traça o perfil do botânico W. Steller, que se une à malfadada expedição russa de Vitus Behring em busca do Alaska. No último, Sebald empreende uma viagem à Pinacoteca de Munique, com o único objetivo da contemplação  do quadro "A batalha de Alexandre", de Altdorfer. A intenção de Sebald é induzir uma reflexão sobre a condição humana e a História – fábula que nos encara através do olhar desconcertante de alquimistas convertidos ao cartesianismo e de suas criaturas quiméricas em corpos de peixes-coelhos, unicórnios e ornitorrincos.

Mas é comovido que o alter-ego narrador se aproxima de seus anti-heróis, desgarrados, todos, e desmemoriados como Austerlitz; a maioria constitui-se de judeus que não se sabem... Em Schwindel Gefühle (Vertigem, 1990, inédito em Português), o narrador na primeira pessoa deambula pela Áustria, Itália e pelo Sul da Alemanha "na tentativa de preencher o vazio que de mim se apodera, toda vez que chego ao final de uma grande jornada de trabalho". Perde e recupera o juízo,  reflete sobre o amor, garimpa vestígios da passagem de Kafka pela Itália e tenta resgatar e dar sentido à sua própria infância no seio de uma família pós-nazi, quando o manto do silêncio dos anos 50 cobriu a memória da negra noite da guerra e do holocausto – matéria-prima do ensaio Die Unfähigkeit zum Trauern (A inaptidão para o luto) do psicanalista Alexander Mitscherlich; obra epistolar da Escola de Frankfurt sobre a sublimação coletiva do 3º. Reich.

No intrigante Os Anéis de Saturno (Record, 2004), o narrador caminha pelo litoral inglês, entre Norfolk e Suffolk, numa pausada meditação intercalada por breves ensaios tão dessemelhantes quanto impagáveis sobre Rembrandt, o caráter das guerras, o ciclo de vida dos arenques, a melancolia e a destruição das grandes florestas do mundo – numa tradução rasa de Lya Luft, desprovida de enlevo e uso criativo da palavra, que o autor muitas vezes vai buscar em densos e melodiosos arcaísmos germânicos, e que têm sua correspondência no riquíssimo léxico luso-brasileiro de Camões por Machado a Guimarães Rosa; incompreensivelmente desprezado pela autora e tradutora gaúcha.

Em Os Emigrantes (Record, 2002), Sebald sai no encalço de parentes emigrados no pós-guerra dos Alpes para os EUA, de um professor primário para a Suíça e de um artista plástico para Manchester. É com desmedida compaixão, que o narrador tenta reanudar a saga negativa de sua família, alfinetando com sarcasmo, que a toda genealogia adere a fantasia e o mito dos seus contadores. Sebald garimpa na subjetividade de seus personagens e nas razões da História, o ímpeto irrefreável da imigração, da partida para territórios desconhecidos – cujo pano de fundo é aquela "pátria mal-assombrada" descrita em seu ensaio, e mãe de todo os medos, que fez do próprio autor um viandante, saltador de cancelas. São exílios do corpo, pois a alma, mortificada, carrega seu sofrimento para além-fronteiras, em evocações magistrais e copiosas que transportam e arrebatam. E sobre os exilados soe pairar o espectro da perda irreparável; das posses materiais, do juízo e da vida. Para alguns a colônia psiquiátrica é estação terminal, para outros, o suicídio.

Ao mesmo tempo noir e luminoso é o conto que encerra o volume d´Os Emigrantes - a estória do artista plástico Max Aurach, que desembarca em Londres em 1908, para estudar arte, passando a morar na mesma casa antes ocupada pelo filósofo austríaco Wittgenstein, e que mais tarde se refugia, anônimo, em Manchester. Magistral é o imbricamento de dois grandes temas, construído pela imaginação de Sebald: para falar da "solução final" de Hitler, ficciona um diário escrito pela mãe do já famoso pintor e, simultaneamente, infiltra a história de Manchester que,  de grande centro do comércio mundial, agora jaz em escombros; História como escavadeira e moto-niveladora, galera ciclópica afundada pelo tsunami das tecnologias e do desperdício.

Enquanto nossas narinas inspiram o odor fétido e aziago das águas do decadente porto, que penetra pelas frestas das docas onde o pintor instalou seu ateliê (toda boa literatura é olfativa!), Sebald, cauteloso, vai ao encontro de Aurach como uma zoom de aproximação, até trazê-lo ao primeiro plano e apresentar-se. Enquanto conversam, Aurach trava dilacerante luta com sua obra, aplicando formas e cores, logo raspadas rudemente com a espátula, ao ponto de ferir a tela que lhe serve de sustentação. O olhar do narrador recai sobre o monte de tinta raspada que vai se acumulando, da manhã até o entardecer, ao pé do cavalete – metáfora de Sísifo, o herói trágico do mito sobre a eterna repetição do esforço vão, e alegoria da busca obsessiva de Aurach pela "imagem ideal", descartada, de sua própria identidade ainda não aceita; a de um judeu, mas sobretudo alemão, cuja memória continua grudada à terra natal.

O mundo sem Max ficou mais pobre e desolado, mas W.G. Sebald, o alter-ego, "ou ainda um homem sem nome, um molde de gesso vazio, mas pensante, um fantasma solitário e sensitivo, que caminha quase sem rumo e que é o eixo que une o leitor ao mundo" (R. Tavares), sobrevive nas nossas próprias peregrinações às praias dos nossos próprios naufrágios, às  ruínas das nossas genealogias, aos territórios da ancestralidade onírica, onde mora a melancolia.

A obra

1) Nach der Natur. Ein Elementargedicht (Sobre a Natureza, um poema elementar, 1988, inédito em Português);
2) Schwindel.Gefühle (Vertigens,1990, inédito);
3) Die Ausgewanderten (Os Emigrantes, 1993, Record, 2003)
4) Die Ringe des Saturn (Os Anéis de Saturno, 1995, Record, 2004)
5) Austerlitz, 2001 (inédito)
6) Unerzählt 33 Texte, 2003, inédito)
7) Campo Santo, Prosa, Essays, 2003, inédito).
Premiações
- Prêmio de Literatura de Berlim, 1994,
- Medalha Johannes Bobrowski, 1997,
- Prêmio Möricke da cidade de Feldbach, 1997,
- Prêmio Joseph Breitbach, 2000,
- Prêmio Heinrich Heine, 2000 (Gov. Federal),
- National Book Critics Circle Award, 2002
- e Prêmio de Literatur da Prefeitura de Bremen, 2002.



03 fevereiro 2021

Frederico Füllgraf - Matou a família e foi p´ro motel, ou: Suzanne e as duas mortes do Barão Vermelho

 

(Fotos - Bundesarchiv, divulgação)

Ensaio


Quando a barra de ferro, pétrea e fria, golpeou a cabeça de Manfred von Richthofen, matando-o, naquela madrugada de novembro de 2002, um outro Manfred, também Von Richthofen, sentiu uma fisgada em sua própria cabeça, percebeu sangue brotando da cicatriz do tiro de raspão que o atingira em 1918, e revirou-se no caixão, em sua terceira cova; a de Wiesbaden. Afinal, heróis não morrem, apenas descansam, ensina a mitologia... Assim imaginei, quando li, pela primeira vez, a notícia do duplo assassinato do engenheiro alemão e sua esposa Marísia, pelas mãos de sua própria filha, Suzane von Richthofen.


Ao matar seus próprios pais, Suzane teria também assassinado a tradição cavalheiresca que adere à linhagem paterna ? Talvez Suzane estivesse farta da prosápia, contada e recontada pelo pai, que exibia suas azuladas origens na reprodução do galhario de uma frondosa árvore genealógica pendurada em uma das paredes da sala da casa do Brooklyn. Talvez Susane jamais se interessara pela estranha saga do pai, talvez lhe tenha sido ganz egal – “completamente indiferente”, como se diz em Alemão. 

Talvez...

E, se o alegado parentesco com o lendário Barão Vermelho tivesse sido apenas um delírio do pai homônimo ? Uma farsa, uma “cripta” ? Logo após o crime, a imprensa alemã – incluindo o investigativo e cáustico Der Spiegel – apressou-se em tomar por palavra final o desmentido oficial na Alemanha: “Um estudioso da saga dos Richthofen declarou que toda essa história seria uma trama urdida pela imprensa ´sensacionalista´do Brasil", escreveu, perplexo, o jornalista Cláudio Julio Tognolli, do Jornal da Tarde. Perplexo, porque, entre 1996 e 1997, árvore genealógica em punho (noblesse oblige !), o engenheiro convencera Tognolli de que, apesar de habitante da paulicéia empedrada, era sobrinho-neto do lendário e homônimo ás da aviação e pertencia de berço e de jure ao clã dos Von Richthofen, surgidos no séc. 16 nas planícies do Báltico.

Concluiu, então, Tognolli: “Do exposto, podem racionalmente pairar no ar as seguintes indagações: 1) este repórter inventou a história; 2) Manfed, num acesso delirante, daqueles que os psicanalistas chamam de delusão, inventou a história; 3) a imprensa alemã errou em dizer que a história é mentira e o especialista alemão em Barão Vermelho está mal-informado (ou: propositalmente, semeou contra-informação da família Von Richthofen, envergonhada)”.

Regredindo aos primórdios da Literatura, o psicanalista Sérgio Telles, do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo, foi buscar na matriz trágica do Édipo de Sófocles (e sua metáfora freudiana para o parricídio) elementos para a constituição do sujeito em uma “família disfuncional”. Seria “impossível conceber que a garota Von Richtofen tenha uma patologia mental tão grave, a ponto de quebrar todos os limites e expressar-se num assassinato, sem levantar a hipótese de que sua família também apresentasse grandes e graves disfunções”, argumentou Telles.

Apoiando-se no desmentido do clã, o doutor de almas precipitou-se em defender a teoria da “cripta”, para explicar o provável desvio patológico da parricida Suzane. Isto é: padecendo sob a realidade insuportável da outorga de uma falsa identidade aristocrática do pai (um segredo familiar tornado “falha”, “buraco negro”), a moça teria sido um sujeito/médium da Übertragung - a transferência da patologia paterna, segundo Freud. Telles: “No caso do engenheiro Von Richthofen, poderíamos pensar que não tolerava as próprias origens - talvez humildes, constituída de emigrantes pobres alemães, talvez colonos agrícolas - e delirava com a nobreza teutônica?” ... “Esse pai, com possíveis delírios de nobreza, receberia o fato de ter a filha um namorado pobre e humilde?”.

Da teoria da “cripta” à “apetitosa brecha defensória” para Suzane, o lapso especulativo se ampliaria: supôs Tognolli que, se os estudiosos e imprensa alemães estivessem certos ao afirmar que não havia a mínima possibilidade de parentesco entre “o nosso Manfred” e o Manfred "Barão Vermelho", os advogados da filha do engenheiro e mentora dos crimes, teriam (tido) uma carta na manga para a defesa derrubar o in dubio pro societate da promotoria. Porque, nesse caso, o engenheiro Manfred seria um psicopata, delirante a ponto de inventar uma história de vida que nunca foi sua; trauma, vilanias mentais suficientes para alterar o comportamento da filha...

“Pai com amante, mãe lésbica” ... Mais que vilãs, foram sórdidas as imputações da defesa de Suzane, para justificar o injustificável: as alterações comportamentais da parricida e matricida confessa. Contudo, os dúbios advogados evitaram puxar da carta na manga, porque não a tinham. Condenada a ré, caladas as vozes da indignação, a imprensa recolheu-se à filtragem do varejo e o “caso Richthofen” foi, literalmente, para o arquivo morto. Nele repousam, agora, dois cadáveres, duplamente assassinados, real e virtualmente: o Barão Vermelho, como paradigma da arte cavalheiresca do aviador zen, e seu parente abrasileirado, o engenheiro homônimo, colocado sob suspeita, ofendido post mortem.

No entanto, Tognolli pensou na direção correta: a imprensa alemã errou, ao dizer que a história é mentira. Mas, e o puro-sangue Karl-Friedrich Freiherr von Richthofen, “especialista alemão em Barão Vermelho”, citado por Der Spiegel: estava apenas “mal informado” ou propositalmente semeou contra-informação da família Von Richthofen (envergonhada) ? Contudo, nas praias rasas da Internet, onde apenas é requerido talento medíocre para combinar informações, pousava a esfinge que devorou o jornalismo investigativo: o site com o brasão da dinastia Richthofen (www.richthofen.de/allgemein/startseite.html)

Três anos e meio após o veemente distanciamento do Barão Karl-Friedrich, escrevi uma carta para o livro de visitas do site, perguntando, se Manfred von Richthofen, “o nosso” , era, de fato, parente legítimo da linhagem do brasão. A resposta fez-se esperar, veio de viés. Um dos von Richthofen argüiu-me por e-mail, sobre o motivo do meu interesse; “se para um romance, peça de teatro ou filme ... Menos de duas semanas depois, porém, obtive do administrador do site a confirmação da pertença do engenheiro assassinado à linhagem lendária.

Diz o e-mail de 24 de abril de 2006: Sehr geehrter Hr. Füllgraf, Bezug nehmend auf Ihre Anfrage möchte ich Ihnen mitteilen, dass Manfred Freiherr v. Richthofen Mitglied unserer Familie ist und somit auch mit dem gleichnamigen Kampfflieger des Ersten Weltkrieges verwandt ist. Den Verwandtschaftsgrad können Sie auf unserer Homepage dem Stammbaum entnehmen. Diese Stellungnahme ist vertraulich zu behandeln. Mit freundlichen Grüßen (...)

Para os incrédulos, a tradução:

“Prezado Sr. Füllgraf, com referência à sua pergunta, tenho a lhe informar que Manfred Barão von Richthofen é membro de nossa família e, com isso, também parente do homônimo aviador combatente da Primeira Guerra Mundial, ...”. E, agora a pérola: “O grau de parentesco o senhor pode deduzir da árvore genealógica que consta em nossa Homepage. A presente informação requer sigilo. Saudações cordiais (...)”.

Decidi manter em sigilo o nome do gentil informante, graduada figura do clã, reproduzir, no entanto, sua própria indicação da árvore genealógica, onde repousa a memória do engenheiro assassinado e que dispensa qualquer dúvida – genealogia por vezes glamurosa, onde figura Frieda von Richthofen, que casou com o autor de O Amante de Lady Chatterley, D.H. Lawrence, e por outras, desconcertante, na companhia do Marechal de infantaria Wolfram von Richthofen, comandante da Legião Condor, a que foi socorrer Franco durante a Guerra Civil espanhola, açougueiro de Guernica, imortalizada pelo horror das imagens de Picasso.

Campeão de equitação artística, Manfred von Richthofen, nascido em Breslau em 1892, viu na aviação do início do século passado, um sucedâneo à altura para seus anseios de glória. Trocou o cavalo pelo triplano Albatroz da Fokker. Em tempos de transição acelerada para a sociedade industrial, nada heróica, a aeronáutica logo tornou-se a arma predileta da juventude aristocrática européia. Repugnava-lhe a imagem da infantaria, do convívio, ombro a ombro, com a soldadesca nas trincheiras, em meio à lama, ao sangue, aos excrementos. Horror dos horrores, era a fantasia da morte anônima, reles número em meio à multidão de cadáveres produzidos em escala industrial.

Se Nietzsche pensou no céu como limite para seu “super-homem” (alegoria da auto-superação, nada nazista, diga-se), então os aviadores da 1ª. Guerra Mundial eram nietzscheanos do “bom combate”; aquela, herdada através das sagas medievais. Descreve um aficionado: “Os Fokker, os Sopwith Camel, os Havilland, os Nieuport que pilotavam, substituíam em definitivo as cavalgaduras. O ronco dos motores faziam com que esquecessem os relinchos. Versões modernas de Lancelote, de Orlando Furioso ou de Götz von Berlichingen, sentiam-se cavalgar Pégaso, o ginete alado”.

Em menos de três anos de guerra, a Luftwaffe do Kaiser derrubaria mais de 400 aviões ingleses. Destes, Lothar, o irmão de Manfred, piloto de um Albatroz amarelo, destruiu 40 aeronaves em apenas 70 dias de combate, por isso condecorado com a cobiçada Ordem Blauer Max (o Max em Azul). A bordo de seu Albatroz pintado de vermelho – fonte de inspiração para o personagem Snoopy e, por tabela, da banda de rock brasileira, Barão Vermelho - Manfred von Richthofen abateu 80 aviões ingleses apenas no primeiro trimestre de 1918. Comandante da esquadrilha Jasta 11 – apelidada de “O Circo Voador” , outra reverência carioca ! - von Richthofen foi idolatrado pela imprensa e o povo alemães, fazendo jus à Grande Cruz Pour le Mérite, a ordem que Frederico o Grande criara para honrar Voltaire.

Tanta idolatria por Tanatos ? Frios, quase tranquilos, Suzane e o namorado acalentaram o assassinato do casal Manfred e Marísia com um mês de antecedência, optando pelos golpes com barra de ferro depois de um teste, barulhento demais, com arma de fogo. Já o Barão Vermelho ancestral, gozou de popularidade por sua ética, traduzindo para a guerra aérea a matriz respeitosa dos cavalheiros. Jamais atirava num rival abatido que saltasse de pára-quedas, em aparelho em chamas ou embicado para o solo, dilacerado; não perseguia o piloto. “Ferido o cavalo”, deixava que o destino cuidasse do cavaleiro. Fez fama de ser leal e generoso adversário.

A “suavidade” do Barão Vermelho estimulou a fantasia no campo do inimigo, a boataria chegou a imaginar uma mulher no comando do manche do Albatroz vermelho... A propósito, um trecho do Der Rote Kampfflieger / The red air fighter, de Manfred von Richthofen, que ilustra a liça como jogo, perigoso jogo com a morte, mas respeitoso, guerra “humanizada” , longe da artilharia pesada, da metralhadora, do lança-chamas e do gás mostarda, praticada sem traição ou perfídia:

“Depois de termos baixado mais de dois mil metros em nossa altitude, o que não mudou nada nossa situação, meu adversário finalmente teve que admitir que já passava da hora escafede-ser, pois o vento favorável me transportava cada vez mais perto das nossas posições, fazendo-me planar quase sobre Bapaume, distante um quilômetro do nosso front. Quando nos encontrávamos já a apenas mil metros acima do chão, meu adversário ainda teve tempo de me acenar, muito divertido, como se quisesse dizer: „Well, well, how do you do?" (Tudo beleza, como vai você ?).

Como questiona Geoffrey Miller, em "Sabretache", the Journal and Proceedings of the Military History Society of Australia, Vol. XXXIX, No. 2, junho de 1998, quase noventa anos após a morte do Barão Vermelho, em 21 de abril de 1818, nos céus da França, os descendentes de soldados ingleses, canadenses e australianos ainda discutem, quem foi o autor do disparo, que derrubou o lendário Fokker Albatroz.

Manfred von Richthofen foi sepultado por seus inimigos. Reservaram uma grande barraca de campanha, em cujo centro ergueram um pedestal e, sobre este, repousaram o caixão do barão, vestindo o mesmo uniforme do regimento l -Ulanen, que trajava quando caiu no buraco negro que o arrancou da vida. Seis oficiais da aeronáutica inglesa, todos capitães de esquadrilha, dinstinguidos por sua bravura diante do inimigo, penetraram na barraca, alçaram o caixão ao ombro e o carregaram até sua primeira sepultura, no cemitério de Fricourt. Seguindo o caixão, marchavam doze homens da guarda de luto, olhos derramados sobre o chão, segurando seus mosquetões com o cano virado para baixo.

Depois desta formação, marchavam oficiais e suboficiais, entre eles cinqüenta aviadores. E todos caminharam atrás do féretro, em silêncio, olhos para o chão. Fechando a coluna, um dos oficiais carregava uma grande coroa com a saudação do quartel-general da aeronáutica inglesa para o barão: „ Ao Cavalheiro von Richthofen, o valente e digno inimigo“. Sobre o caixão, martelaram uma placa metálica, com dístico em Inglês e Alemão: "Aqui, sobre o campo da Honra, descansa o Cavaleiro Manfred, Barão von Richthofen, na idade dos 25 anos, caído em batalha aérea em 21 de abril de 1918“. Enquanto o caixão descia à terra, aviões ingleses fizeram formação de honra, com rasantes sobre o cemitério. Em 1925 os restos mortais do Barão Vermelho foram transferidos por sua família para o aristocrático cemitério dos Inválidos, no coração de Berlim, onde Manfred jazia exatamente debaixo do Muro, erguido em 1961, motivo pelo qual em 1976 seus descendentes o transladaram mais uma vez de morada; desta última, para Wiesbaden, às margens do Reno.

Já a louraça bandida (Alberto Dines) confessou que estava “emaconhada” na noite em que matou a mãe e o pai. Não era cocaína, era uma droga "leve", dessas disponíveis em qualquer festa, não fora a primeira vez. 

Matou a família e foi ao motel...