05 novembro 2020

Frederico Füllgraf - A visitadeira




Conto


Hoje ela não veio. 

Distraí-me com o mundo durante o dia, mas à noite senti sua falta. 


Não, não é em A. que estou pensando, dela não sinto falta. Libertei-me de seus arroubos frívolos de falsa transparência, suas conspirações e fingimentos. Deve pensar que a forma mais insidiosa de vingança seja meu silêncio, que a oclusão do amor é viver a mortal indiferença do outro. Mal sabe ela, que os que abrem mão do lar, são melhores adivinhos dos pensamentos alheios; os de Deus inclusive. 


Mas onde andará a"outra"? 


Ainda vagará pelas ruas nestas horas do recolhimento? 


Seu desaparecimento me humilha: e se estiver dividindo sua intimidade com outra pessoa? 


Na verdade preocupa-me seu bem-estar: poderia ter sido atropelada, ferida – e se estiver morta? Estou aflito: não há como procurá-la, não sei o seu nome, que deriva de sua compleição e hábitos. 


Vou esperá-la.


Convivemos por várias semanas, e apesar de seus modos discretos, só infra-minimamente perceptíveis, sinto máxima ausência.


Introduziu-se sem aviso, mas com delicadeza. De repente estava.

Não que fosse invasora. Ao contrário, alegrou-me muito sua presença.

Inopinadamente, graciosamente, brindou-me sua companhia, neste refúgio onde não se falava a não ser em pensamento. Obsessiva no início, ela corria desnorteada de um lado para outro, como se estivesse seguindo o traçado confuso do mapa esfarrapado de um tesouro escondido em local secreto. Depois foi se aquietando.

Quase nos tornamos íntimos, afirmação, reconheço, algo leviana, ligeira projeção do meu afeto: era eu quem a saudava, com ela conversava enquanto passava um café. 

Egoísta, não prestei atenção aos seus sinais, dei a tagarelar, confortado pela companhia. 


E então aconteceu aquele terrível acidente, por minha culpa. 


Permito-me reproduzi-lo, com a perspectiva dela: de repente ela perdeu o chão, tenebroso marulho de placas tectônicas. Aflita, agarrou-se à ponta de uma rocha esférica e esbranquiçada, já transbordada por gigantescas ondas de espuma peçonhenta. Sentiu o fim dos tempos, manipulado por garras hiperbólicas, que baixavam dos altos. Só então a descobri suspensa entre a vida e o precipício: a seus pés, o buraco negro aguardando sua queda e a deglutição pelas entranhas da cidade. Aliviado, consegui salvá-la, agarrada a borda de uma xícara, no centro da pia de lavar pratos
. Toquei-a com suavidade e ela desempenou-se com aquela cerimônia da mulher que oferece a face, para atrasar o primeiro beijo na boca, amuando-se em outro canto, mas sem pavor nem histeria. 

Comoveu-me seu respeito por minha solidão eletiva, à qual talvez estivesse associando a sua própria, dando, finalmente, algum sentido àquela genuína oferta do coração, soletrada para apenas duas (sabendo que ela jamais seria a terceira destas) mulheres em minha vida: sinta-se em casa, quero aconchegar a tua solidão. 


Senti genuína compaixão por ela.


Não que este lugar fosse um ermo ou o desterro. Digamos que seja um intermúndio orbital, cuja flamância lembraria aqueles excessos de luz no umbral da criação, embotando-lhe a vista frágil. Evitou a imensa tela rutilante, aberta sobre infinito livro de areia, com incontáveis palavras e línguas dessemelhantes, agrupadas em milhões de páginas, número sem fim de manuscritos conservados em arquivos virtuais. Aleatório, mas íntimo terminal da babélica biblioteca de J.L.Borges, que lhe devolveu a insignificância de sua minúscula estatura. 


Contudo, imenso jardim suspenso entre o passado e o espanto, seus ancestrais já se deslocavam em missões exploratórias de suas raízes, troncos e folhas. Mas elas não têm percepção do tempo, nem consciência da História - simplesmente são. 


Poupada, ela ignora meu horror à metáfora do Angelus Novus de Benjamin: História, como amontoado de ruínas; corpo enterrado vivo, sedimentado em camadas de esquecimento; Vida como tempo esvaído, irrecuperável. Relógios derretidos de Dalí.


Tempo. 


Surpreendo-me contando os dias de sua ausência. 


Abobado, converso comigo mesmo. Suportar a solidão é preparar-se para a partilha da intimidade (como é verdade também, que a solidão sói ser mais intensa em companhia de certos outros: o narcisista egóico oculta, sequestra, foge da angústia alheia).


Às vezes sou Winfried Georg Sebald, que caminha pelo litoral do sudeste inglês, numa pausada meditação sobre fenômenos tão dissimiles como Rembrandt; o acima e o abaixo das guerras aéreas; tempestades de fogo em Hiroshima, Dresden; o ciclo de vida dos arenques; a devastação das grandes florestas do mundo; a imaginação paranoica dos cartógrafos renascentistas e seu cosmo sirênico: peixes-elefante, peixes-coelho, polvos-giganta engolfando galeras nos Mares do Sul. 


Infâmia na Amazônia profunda: é JC Aranã quem pratica o holocausto de Putumayo, mas é Sir Roger Casement, o investigador, que morre na forca em Londres. 


No entanto, a melancolia é a prima criativa da depressão, e com as matérias-primas do luto histórico WG Sebald escreve a literatura da compaixão. Não concluiu suas andaduras: no verão de 2001 tem um mal-estar ao volante, o carro mergulha frontalmente num caminhão e WG emerge atônito no mundo do outro lado do mundo. O mundo do lado de cá chora a partida prematura do mais forte candidato ao Nobel, mas eu lhe invejo somente as caminhadas, nas quais trocaria Norfolk e Suffolk, pelo Namib e o deserto patagônico em Sarmiento. 


Mas agora tenho que aligeirar este peso, esta enorme responsabilidade.


E feita salva-vidas da minha borrasca, eis que ela reaparece, dissimulando a reaproximação. 


Quantas avenidas terá percorrido, evitando elefânticos pisantes, escapando da teia de quasímodos aracnídeos, do bico voraz de monstros alados, galgando muros, escalando paredes, não escolhendo outro, senão a mim? 


Ela se aproxima e se detém, alonga as patinhas traseiras, como fosse sinal de saudação e retro-agradecimento por sua salvatagem naquela tormenta: distraído, quase a mandei para o ralo com a sujeira dos pratos - o tsunami na pia!


Caminhando e despencando entre as letras, baixa e perscruta o porão alfa-numérico do teclado, brincando de esconder, bisbilhotando a combinação das minhas palavras, impedindo-me a escritura, sob pena de esmagá-la debaixo de um p de pressão ou um q. Que para sua carnadura grácil é mais que um quilograma: é t de tonelada.



Paciência esgotada, acendo um cigarro e desato o jogo de guerra dos carniceiros, no qual vale tudo: feito lança-chamas em Gaza, sopro a fumaça acre para desalojá-la dos espaços do alfabeto – e nada! 

Ela mimetizou-se, já é parte do teclado. 


Impotente, declaro o cessar-fogo unilateral e abro com delicadeza o arquivo das revelações, tentando adivinhar sua genealogia: há as açucareiras, as caçadoras, as doceiras. Divertem-me as astecas, as cabeçudas e mineiras (quando criança esmagava com o pé as odiadas cortadeiras e as proletárias carregadeiras!). 


Sentem-se irresistíveis a argentina, a cuiabana e a paraguaia. Já a formiga fatal é a saca-saia! A formiga-correição, a guaju-guaju, a morupeteca e a taioca são as guerreiras. O piolho-de-onça é sarna que não pára de coçar, e a feiticeira e a cigana leem a sorte, portanto são alvissareiras. 


E tentando imaginar o som da chiadeira, ei-la, triunfante - Margarida, minha formiga visitadeira - emergindo no canto superior esquerdo do teclado, debaixo da letra q.


Não fosse piegas e eu diria que é de querença. 

Importa que me devolveu a leveza.



28 abril 2020

Frederico Füllgraf - A Nebulosa de Magalhães - Mini-conto etílico-galáxico

Imagem inferior: Estátua à F. de Magalhães, Punta Arenas, Chile.
Frederico Füllgraf

Miniconto

Depois que o fidalgo Fernão, a quem em terras castelhanas chamavam de Hernán, descobriu o Estreito no calcanhar do Novo Mundo, que leva seu nome, aprumou sua nau e tomou o rumo das Ilhas Molucas, das quais, sempre teimosamente, quis tomar posse em nome de El Rey. Mas os nativos não o deixaram – trituram-lhe o crânio com uma borduna. Magalhães não resistiu e nunca mais o viram em Portugal.

Após desencarnar, sua nau tomou direção desconhecida. Assim conjeturou o escrevinhador após seu segundo Vat69, mirando o céu noturno, tentando entender as piscadelas da miríade sideral.

E sentenciou - quatrocentos e oitenta anos mais tarde, Fernão encontrava-se no umbral do Mundo das Luzes. 

Na passagem por Alfa Centauri, seu escrivão genovês, Pigafetta, despencara de estibordo em plena infinitude do Criador. Cheio de dor, a Fernão não restou outra que velejar sozinho. E então registrou em seu diário uma avistagem de tirar o fôlego. 

Distraído não se sabe por quê fenômeno celestial, repousou seu diário sobre o peitoril do convés, e ali o esqueceu. O diário também despencou no Cosmo, serpejando em direção a um grande Buraco Negro.

Captada por um possante radiotelescópio fincado nas escarpas do Valle del Elqui, nos Andes, a mensagem na página aberta dizia: “Este sol brilha mil, multiplicado por mil vezes mais do que nossa velha lamparina da Via Láctea. Sua luz cegou-me. Tudo são brumas”.

“Imagine-se a seguinte imagem”, escreveu ele: “Em Calicuta das Índias alguém suspende uma torrada com geleia diante de uma vela. No mesmo instante, mas em Portugal, mediríamos os restos das chamas da vela, sendo com isso capazes de determinar o tipo de marmelada que em Calicuta fora aplicada à fatia do pão!”

Fernão não sabia que sua velha nau, com rachaduras no madeirame e velas estropiadas, tinha navegado 150 mil anos-luz.

Sempre distraído, como naquela manhã, à entrada do labirinto da Terra do Fogo, agora acabara de descobrir a Nebulosa de Magalhães.

Por fugazes instantes, foi divagação que capturou meu atrevido imaginário, enquanto flanava ao longo da costanera do Estreito, o rosto varrido por ventos errantes no literal fim do mundo.