18 junho 2018

Frederico Füllgraf - Diário da Namíbia

Reinhard Maack, Schutztruppe, 1914

Crônica de viagem


Quando meu guia Siegphried - prenome hilário, grafado com “ph”, mais para Otelo que para personagem de Wagner – com sua estampa de rastafari, parou à entrada de uma gruta informativa, colada às paredes rochosas ao pé do Monte Dâures, intuí que estávamos próximos dela. 

Caminhando pelas trilhas do vale, ao lado do bravo Siegphried, eu tentava aprender o estalo de língua (simbolizado por exclamação que antecede certas  palavras, característico dos idiomas bosquímanos), para pronunciar corretamente seu sobrenome (“!Karuchab”), quando ele acenou para um painel redigido em Inglês, advertindo os caminhantes para a transcendência histórica e a imperativa preservação daquele patrimônio da Humanidade, que a poucos passos dali costuma desafiar olhos e mentes, extasiados, com silente beleza milenar.

À sombra do anteparo rochoso, bebi o resto da água mineral prestes a ferver no fundo da garrafa aquecida pelo sol, acendi um cigarro e despistei minha ansiedade. 

Fazia um ano que iniciara minha pesquisa sobre ela, e me preparara para este encontro. Mas, qual o significado de “Don’t pour / spray liquid on them” ? 

Quando o guia aludiu aos atentados de turistas ocidentais contra as pinturas rupestres, com restos de Coca Cola, para “realçar” cores consideradas esmaecidas demais para suas máquinas fotográficas canibais, não me contive e, pela primeira vez desde tempos imemoriais, as pedras avermelhadas do vale de Tsisab ecoaram um sonoro palavrão em Português.

Segui os vinte passos do guia até o refúgio de pedra, como quem ingressa em território sagrado e, de repente, ela se desvelou muito maior e bonita do que eu havia imaginado: a mitológica White Lady. 

Exultei, tremi dos pés à cabeça. 

Obstinado, eu tinha conseguido alcançá-la! Apesar dos obstáculos, da pressão de agenda e do orçamento de produção apertado demais para aquela travessia de Curitiba até o deserto de Namib; via Congonhas, caos aeroportuário, enchente na Marginal, Cumbica, Johannesburgo e Windhoek...

Os quatrocentos quilômetros de estrada da capital até a incandescente Omukuruwaro, Dâures ou Brandberg (“montanha incendiada”, em dialeto Herero, Damara e Alemão, respectivamente), em parte rodados debaixo de sol com 45 graus, foram motivos para festa. Eu não os sentira mais, já estava sob o efeito do transe do deserto, a alma entregue à trilha sonora de certa ancestralidade que transpira da paisagem esculpida; ora doce, ora inclemente. Mas, com uma intrigante sensação de “Walt Disney was here!” Depois, enquanto caminhávamos pela paisagem tórrida, subitamente me lembrei: claro, “Rei Leão”! Como o castelo de Neuschwanstein, do doidivanas Ludwig, plagiado integralmente para cenário de Cinderela, passaram o scanner em toda a Namíbia - dos bichos, pelas montanhas, ao céu, sempre azul - para o storyboard de um filme hollywoodiano que faturou bilhões em todo o mundo.

Mas preciso alertar que eu não viajara até aqui por interesse arqueológico e, sim, por obstinação cinematográfica, a tudo decidido para fechar uma estória – a aventura do topógrafo, dublê de geógrafo e geólogo, alemão, Reinhard Maack, iniciada aqui, entre o Namib e o Kalahari, na África Austral, durante a 1ª. Guerra Mundial, e concluída na década dos anos 60 nos sertões do Paraná; agora reconstruída fragmentariamente em filme para o DOC TV.

Homem, cuja biografia sinaliza a passagem de várias mulheres por sua intimidade, parece ter dormido sempre com seu teodolito ao lado – tão forte sua atração por montanhas; e por quedas, no sentido mais metafórico da palavra. 

Suas conquistas mais famosas estarão sempre contextualizadas por situações extremas: enfrentamentos, prisões, fugas. Teimoso, já vivendo no Brasil, em 1941 duvidou que o Pico Marumby fosse o ponto orográfico mais elevado do Paraná e enfrentou uma escalada de dezesseis dias com chuva, espinheiras, a vertigem das escarpas, barro e tombos, até conquistar o pico por ele batizado de Paraná; o “Kilimandjaro do sul” na acepção de “Vitamina”, o “papa” do montanhismo paranaense. 

A epopéia de Maack custou-lhe três anos de prisão na Ilha Grande, acusado, segundo o prontuário policial paranoico da época, de “espionagem para o 3º. Reich", mediante a “transmissão de sinais de lanterna de mão para submarinos alemães, na baía de Paranaguá”. Convenhamos, uma teoria da conspiração muito pobre em figurinos e contra-regra.

Vinte e três anos antes, Maack fugira de um campo de prisioneiros inglês, na então colônia, que antes de "Namíbia" se chamava “África Alemã do Sudoeste”, assumindo a identidade falsa de “Hans Ritter”, passando à clandestinidade, e no final de 1917 entrincheirando-se no Monte Brandberg, que esquadrinhou em seus mínimos detalhes, com a pachorra de agrimensor das Schutztruppen do Kaiser.

Durante o mapeamento desta montanha mais elevada do sul da África, descrita pelos bushmen como milenar “montanha dos deuses”, ocorre o imprevisto: uma patrulha inglesa topa com Maack e três companheiros armados, balas dançam e ricocheteiam pela garganta do Tsisab. Os alemães conseguem escapar e, entre tombos e rachaduras de chapas fotográficas, ao pé da montanha incendiada, Maack depara-se com a gruta misteriosa.

Sem nenhuma chapa fotográfica inteira para seu lambe-lambe, o topógrafo esboça a lápis o gigantesco painel de 5,5 m de largura por 2,0 m de altura. 

Em seu diário de campo especula intensamente sobre o significado desta mais exuberante pintura rupestre de toda a África. Seus desenhos inspirarão uma editora alemã a publicar, em 1930, o primeiro livro sobre arte rupestre bosquímana. 

Em 1947, o abade francês Henri Breuil visita a já então famosa « Gruta de Maack » e batizará seu personagem central com o controvertido nome de «Dama Branca ». Breuil identifica traços « egípcios » e até « cretenses » (minóicos) na técnica do painel, sabichando que a pintura só poderia ser de origem "extra-africana", talvez da mão de « pintores-viajantes » - eurocentrismo rasteiro, fácil de entender, pois Breuil atuava como perito a convite do Apartheid sul-africano, capaz de negar a existência de uma alma em corpo de africano negro.

Sítio característico de cerimônias sagradas dos bosquímanos, com uma idade estimada entre 4 mil a 2 mil anos, a «Dama Branca » é uma vibrante coreografia. Seu centro é ocupado por uma figura dançante, rodeada por um círculo de três caçadores e vários animais. Seus realces em branco contrastam as cores básicas do ocre, vermelho e preto, utilizadas na fase ainda monocromática da pintura rupestre. Na mão esquerda segura um arco e um punhado de flechas, mas na direita, em atitude de invocação, ostenta uma espécie de cetro – o cálice do enigma jamais desvendado...

Em uma cena ficcional, por mim escrita e gravada para o DOC TV, Maack, já vivendo no Brasil, ironiza o abandono de sua dama : «intocada, luxuriante mulher fatal... ». No entanto, através de leituras prévias à expedição ao deserto, eu já desconfiava que tinha que experimentar a desilusão in situm e transferir a decepção ao espectador excitado, rasgando o véu de mistério, que encobre a desejada africana: é que a « dama », apesar de teimosas fantasias europeias, é um cabra macho!

A mortificante revelação é um detalhe observado por arqueólogos mais atentos que Breuil: um discreto cinto, cuja parte frontal sustenta uma bolsa de proteção escrotal. 

Concorre para a desmistificação da burla (Dama Branca, uma Drag Queen do deserto??) o imperativo histórico, segundo o qual, mulheres não eram toleradas no centro dramático de um ritual de caça (aqui explícito), tido, durante milênios, como enclave exclusivamente masculino. Já, na periferia, também da « Dama Branca », abundam seios fartos, de mulheres em papel de meras figurantes da ação.

De volta do deserto, mas ainda intrigado, leio que « damas brancas », como as de Castle Huntly, Branch Brook Park, Durand-Eastman Park, Willow Park e a esfinge de Metedeconk, são todas e, literalmente, miragens femininas para inglês ver. 

Até desenlaçar-se um cinto viril, que não é o da castidade...

(Fotos:  Frederico Füllgraf; divulgação)

6 comentários:

MÓNICA disse...

BUENAS NOCHES FREDERICO

FELIZ POR TENER NOTICIAS TUYAS Y PODER ACOMPAÑAR UN POCO DE TU MARAVILLOSO TRABAJO.

FELICIDADES

MÓNICA QUIROGA

Frederico Füllgraf disse...

Gracias a vos, Mónica, muy amable! Si a las notícias de "Fuellgrafianas" te referís, sí es cierto que a veces nos hacemos o generamos notícias, como por ejemplo el ensayo sobre la escritora Sibylle Berg que, reproducida por la pagina de Luis Nassif, leída por 100 (cien) mil personas todos los días, generó la publicación de nuestro texto en más de 300 (trecientas) publicaciones en Internet - eso es gratificante. Mucho gusto con recibir notícia tuya, manténte cerca. Saludos afectuosos.

Luiz Ernesto disse...

Preciso de publicar foto de Renhard Maack. Posso usar a de seu site. Depois mando-lhe um exemplar

Frederico Füllgraf disse...

Sem problemas, Luiz Ernesto, depois, envie,sim, sua publicação. Abraços.

Anônimo disse...

Voltarei sempre por aqui.

Luna

Frederico Füllgraf disse...

Obrigado Aracelis, beijo!