23 setembro 2017

Frederico Füllgraf - Ela tinha um astro no lábio


"Nu deitado", 1917 - Amedeo Modigliani 




Conto

Quando, esparramada de costas, recolhia suas pernas fortes contra os peitos bem-conformados, ainda rijos, com mamilos eriçados, suas ancas simetricamente esculpidas, de fêmea quarentona, alcançavam a plenitude da forma (provavelmente a intenção do Criador): duas grandes peras de alabastro abauladas na base com volúpia, e que limite não tinham, pois (outra intenção do Criador) suas curvaturas eram a abóbada de uma capela, o número 8, a sinuosidade da Via Láctea, uma alegoria do firmamento.

            Assim retesada, empinada para as alturas - posição que poderia insinuar a ascensão da alma, e que na verdade era alçapão do desejo, ou ambas as coisas - sua brotação ostentava um vale em alto relevo: nas cumeeiras, na direção do umbigo, vicejava relva ligeiramente desbastada, espécie de orla para dobras e refolhamentos carnudos, em cuja extremidade superior pulsava uma greta úmida, bordejada por lábios rosados e encimada por um broto, cuja fragrância era de maresia. Na extremidade inferior escondia-se, sombreada, uma espécie de roseta da cor do cacau, entretecida de pregas, que ao mais leve toque latejava e exsudava um buquê almiscarado.

            E assim obsequiosa ela o espreitava, tentando adivinhar a latitude por onde sua geografia seria assaltada e penetrada. Algumas vezes, em espaços como a cozinha, provocava-o, arregaçando a camiseta, como única peça que cobria sua nudez, abrindo suas coxas roliças até o completo desvelo de um pássaro emplumado – que segundo o ângulo da contemplação também poderia ser um às de copas, um ninho de garças, ou ainda o cálice de uma flor, cujos lábios apartados e dobrados para fora, insinuavam uma borboleta em repouso. 

As asas já transbordadas de néctar, ela o montava e cavalgava, arquejando - a fronte crispada, cabelos esvoaçados, os olhos embotados de fúria e prazer. Possuída e posseira, esporava sua montaria, galgando morros imaginários e galopando encosta abaixo, abandonada à vertigem; esvaída até o alagamento.

            Certa noite, quando ele dedilhou suavemente aquela roseta, como fosse a corda de um violino, ela sussurrou-lhe palavras cujo intimismo aqui não pode ser sem mais nem menos franqueado. Disse que ser assim... “tomada”, “embrenhada”, era o que mais desejara desde a leitura daquela luxuriante crônica dele, sobre a apimentada vizinhança da culinária com o erotismo. Então ele a beijou nos lábios e nos seios, retirou-se de sua fenda inchada e viscosa, e pressionou seu bordão contra o broto chocolatado, pulsante. Cochichou meiguices no ouvido dela, e sentiu uma leve dilatação sobre a cabeça de seu membro. À primeira estocada, deteve-se para não machucá-la, mas sentiu um aperto, um insistente abraço por um anel imaginário, carnudo e latejante. Deslizou suas mãos sob as ancas da mulher, e, uma em cada mão, embutiu-se em seu centro; visitando-a, explorando-a, invadindo-a, e a cada cutilada, deflorando-a. Conquistando territórios dela nunca dantes tocados, enrabando-a, arrombando sua intimidade, alagando-a, sentindo o apossamento de cada milímetro de seu báculo ereto e duro, pela flor carnívora dela. E ela aspirando faminta, confrangendo, supliciando, gozando-o. Não pensou até o final a pergunta, se a mulher gozaria, ali possuída, porque ela sacudiu-se num sem número de raptos, espasmos e fonemas arfantes; o tronco enraizado até o âmago de sua fêmea.  E foi então que ele sentiu e, incrédulo, tocou e viu o encharcadiço, o enxurro melado e adocicado transbordando por seus anéis cintilantes, que repousavam feitos coroa sobre seu abismo apaixonado e esbraseado – um prodígio da natureza, o vaso proibido transbordado de desconhecido mel, derramado para o seu pássaro. Mel dela!

            Ela era sua geografia e ele seu cartógrafo. Com a bússola do instinto explorava-a. Com o teodolito do olhar media-a, mapeava-lhe os relevos e concavidades. Dois vagabundos da noite em busca da ilha do tesouro. E ela tinha um astro no lábio...

            Quando ela resfolegava de bruços sobre os lençóis, parecia derramar o território da poesia. E então as formas se invertiam. No sul nasciam e alongavam-se duas colunas simetricamente torneadas, fortemente dilatadas e alombadas ao norte – as tais peras de alabastro, em repouso. Confluindo em sentido oposto, sobre a crista lombar, corria a linha, ao mesmo tempo tributária do vale e das duas colinas contíguas. Agora a relva jazia na extremidade inferior da gruta, suspensa sobre o nada. Acima dela desenhava-se um fruto do mar na vertical; concha entreaberta pelos trancos da maré, entreluzindo folhamentos viscosos, que friccionavam delicadamente um contra o outro, quando ela corrigia a posição das pernas. E coroando o abrigo, o segredo à imagem da teia: um embuço de gruta estreita e sinuosa, apenas separada da concha por uma delicada película, acariciada ora num, ora noutro lado de seu arremate.

            E ali jazia ela, ofertando coxas, concavidades e grutas, a meseta de suas costas estendida até seus ombros, que debruçados sobre seu peito, expulsavam para os lados algumas curvas de suas mamas. Lá no umbral da espécie, a mulher descobrira-se femina erecta, e soerguendo-se, recolhera suas retro-eminências, compensando-as na altura do peito com dois frutos - e conta-se que seriam uma réplica fiel, esculpida pelas mãos da natureza, das curvas de um tralalá, ou popô.

            E como explicar, então, este fascínio do macho pelo traseiro de sua amada? Com a catequese velho-testamentária da cópula, o sex between mountains, praticado na sábia e requintada Babel, recebeu o agravo indevido de "sodomização”. Para os abramitas, certamente uma geográfica heresia, porque noves fora o Ararat, na Turquia, naqueles desertos, mountains não havia. E a transição ao Cristianismo deu-se com a mesma pregação, de tabu horripilante, designação de carnalidade demoníaca. Mas isto porque aqueles hebreus fundamentalistas afirmaram ter flagrado alguns homens na indecorosa posição... Todavia, de Babel, pela reprodução do ato nas ânforas helênicas e nos afrescos de Pompéia, a pergunta, há muito respondida, não queria calar: a mera paisagem não enfeitiça o macho, e a incursão ambilátera não faz a fêmea sentir-se poderosa?

Suspenso o ritual milenar de acasalamento pela esfregação das cavidades odoríferas, dela, no nariz do macho, logo enquadrado e punido o livre coito, estabeleceu-se a teoria dos vasos, condenando-se à crispação no fogo eterno a jubilosa (e pela fêmea, ansiada) penetração de seu vaso condenado, mas pedinte. Signo da cruzada hipócrita, indexou-se toda sua melodiosa nomenclatura (coitus more ferarum, coitus a posteriori, coitus from behind), instituindo-se, finalmente, a ditadura e a melancolia do vaso único – Desde então Post coitum triste omni est...

            Mas a desforra da natureza não demorou, pois a libido represada voltou a impor-se através da pintura e de mal-dotadas damas parisinas. É a estória do “traseiro barroco”, por exemplo, sabendo-se que barroco foi sempre um eufemismo generoso para excessos transbordantes, como as bundas das "Três Graças“, do pintor Peter Paul Rubens; bundas, que de tanta fartura jogavam faldas e sulcos, já se confundindo com as dunas do Magreb... Já os faux culs, do final do séc.19, aquela diatribe (sempre francesa!) das falsas bundas, foi um artifício para apreender o olhar masculino pelas tournures; um acolchoado de nádegas, prótese de ancas (em falta), armação de arame afivelada debaixo das anáguas, que conferia à sua usuária aquele porte de cisne, com notável rabo empinado.

            Pois, como dizia, ali jazia ela: bela como a imperfeição dionisíaca... Mas então, como resistir, não desejar penetrar e de-vastar essa paisagem venusina?

            Numa carta escrita em 1909, à sua amada, suspirava o garanhão, James Joyce: ”Minha doce, pequena puta Nora (...) Estou encantado em saber que você gosta de ser comida por trás. Senti tuas grandiosas nádegas banhadas em suor roçando minha barriga, e deparei com teu rosto ardendo febrilmente, e o desvario nos teus olhos”.

Consta que uma mulher que não tem acesso à fantasia da puta, não teria acesso ao gozo. Condição desse acesso seria entregar seu corpo, digamos, “com segundas intenções” – libertinagem reprimida, assaz curiosa... A propósito, James: a palavra “puta” não produz efeitos que vão da excitação à ofensa? Mais que grande mal-entendido, o mito masculino (e feminino) não reside na crença de que a realização de fantasias é prerrogativa da cortesã, fadista ou dadeira? E o pior: estabelecida sobre o primado do dinheiro, que compra pedaços de corpo (quanto mais recônditos e “proibidos”, mais caros), a putaria expulsou do encontro dos corpos a confluência dos sentimentos. E como divisórias entre as almas, espreitam bilhetes usados, numerados pelo Banco Central.

            E ele pergunta-se, sem preconceito algum: o que faria uma "puta", que essa mulher fagueira não fez por entrega, nele aninhada? 

Talvez da geografia brote o amor, como é mais provável ainda que do amor rebente a desavergonhada exploração da geografia.