26 janeiro 2016

Frederico Füllgraf - A cicatriz de Balder Olden


Fragmento ficcional

Boletim de ocorrência: “Na manhã do dia 24 de outubro de 1949, foi encontrado o cadáver do sr. Balder Olden, cidadão alemão, exilado na República Oriental do Uruguai. Não há indícios de ferimentos no corpo da vítima, seja por arma de fogo ou artefatos cortantes. O sr. Olden foi encontrado imóvel em sua cama por sua esposa, a sra. Margareth Olden”.


Este seria um bom começo, pensei: a estória de Olden em retronarrativa.

O boletim policial poderia ser uma criação ficcional, mas o caso pertence à História real. Muitas décadas depois, a história do alemão que se encerrava de modo trágico naquela manhã, mereceu apenas alguns ensaios tímidos em gabinetes acadêmicos. Por isso, assaltou-me  a dúvida, se um livro, apenas, seria capaz de traduzir à altura as multifacetárias andanças do escritor e jornalista por mundos há muito esquecidos. As aventuras do alemão morto em Montevidéu esbanjavam tragédias, pediam imagens; quem sabe, um dia um filme.

Contudo, sobre os oito anos de vida de Olden, primeiro, em Buenos Aires, depois, em Montevidéu, pouco é sabido. 

"Ni idea!", Eduardo Galeano respondeu-me, surpreso. Benedetti? Ah, Benedetti com certeza se lembraria, mas desde o final de 2009 fazia companhia a Olden lá, em algum lugar onde repousam os justos, que então se tornam incomunicáveis até que os mortais se lembrem de que o foram.
 
O mutismo das fontes é um desafio para o roteirista, mas também para o policial. Foi o problema do meu personagem, Facundo O´Donnel, detetive da Divisão de Homicídios da polícia de Montevidéu. Ele sabia por leituras tornadas experiência, que desde as errâncias de Ulisses pelos labirintos que separavam Troia de Esparta, as esfinges encenam suas diatribes com os mortais: “decifra-me, ou...”.

Como método, a consulta a um oráculo - em seu caso, o cerco ao suspeito de um crime - não era muito diferente da investigação policial. 

- Exilado, antifascista? 


Como primeira observação, fria, O´Donnel alfinetou que, na qualidade de inimigo do Terceiro Reich, naturalmente a vítima acumulara inimizades não desprezíveis entre os Volksdeutschen, alemães nacionalistas e patrioteiros, residentes no Uruguai e na Argentina. 


- Um atentado vingador contra um traidor da pátria – é isso que a sra. está insinuando? 


Mas a estrangeira do belo rosto sacode ligeiramente a cabeça, mirando o chão. Não, eles não fariam isso - não, quatro anos depois da queda do nazismo; seria um redondo tiro no pé.

A argumentação da mulher fazia sentido, mas então O´Donnel vaticinou que tinha todo o direito de colocar sob suspeita a própria viúva - nome de solteira Margareth-María Kershaw, terceira esposa do morto.

- Então... alguma rival suspeita?


Mas que burrada, que amadorismo! Houvesse rival, haveria sinal de tiro, pelo menos uma bala encravada na parede. As assassinas passionais sempre erravam o primeiro tiro!


O detetive tenta voltar atrás, mas sua pergunta imbecil já reverberava pela sala.


Mais uma vez a mulher meneia a cabeça, agora esboçando um ligeiro sorriso que lhe ilumina os traços abatidos. À medida, porém, que aperta o torniquete do interrogatório, o policial percebe que a esposa suspeita do crime é verdadeiramente apaixonada e grande admiradora da personalidade do marido. 


O laudo pericial do exame de sangue e do conteúdo do estômago demorariam cinco dias, matuta o policial, enquanto sorve a segunda cuia de mate que trouxe na algibeira, e então se dispõe a admitir, mais que hipótese, a certeza expressada pelos belos olhos e as palavras daquela gringa de modos suaves – “suicídio”.

Com toque enternecido, os dedos da mulher roçam a face direita de Olden, e ela diz – Veja! 

Constrangido, porque se limitara a observar a expressão dos olhos e das mãos do morto, só então o uruguaio presta atenção à notável cicatriz que corta na diagonal a face direita do homem estendido sobre a cama, a boca escancarada como a de um peixe agonizante fora d´água.


- Talho de esgrima... - esclarece a mulher, já de costas para a cena, mirando pela janela que descortina o Prata, sujo e buliçoso.

- Duelo? - insinua o tira com ar zombeteiro.

- Exatamente! - Margareth devolve-lhe de chofre.


Aos vinte anos de idade, conta-lhe, Olden fora caluniado como “judeu imundo” por um colega de faculdade, em Freiburg, Alemanha, que então desafiara para o tal duelo. E para o resto de sua vida aquela cicatriz afligira com insuportáveis dores sua face direita, semi-paralisada por ligamentos seccionados. E isto apesar de seu pai, o escritor Rudolf Oppenheim, ter mudado o sobrenome da família para Olden, deixando para trás suas origens judaicas. Por sua natureza, atitude semelhante à de Alfred Döblin, ao afastar-se do judaísmo, em 1912, ajunta a mulher.

- Döblin?


- Oh! - desculpa-se a mulher, ela tinha pensado em voz alta.

Aquele homem ali, ela sussurra, assombrada - ela que por muito tempo rejeitará a nova identidade de viúva - aquele homem de inteligência febril e coração generoso, estudara Literatura, História e Filosofia, esforço que completara com aulas particulares de interpretação, pois desejava atuar no palco. A cicatriz, contudo, o incomodara além da conta, e ele desistira da carreira de ator, que trocara pela de jornalista. Apesar de todo o tempo que já lá ia, aquele corte de lâmina de florete jamais cicatrizara, quase cochicha a mulher com uma entonação na qual por momentos a palavra cicatriz vibra como alegoria, discreta e fugaz, da completa odisseia do desterro: em 1933, a fuga para Praga, de lá para a França, em 1940, com a ocupação da França pelos nazistas, a terceira etapa da fuga, para a Argentina e, de lá, finalmente em 1943, para Montevidéu.

Deslocando-se da sala para o escritório do morto, o policial ordena à mulher que lhe explique o significado da papelada que cobre o tampo da escrivaninha e se esparrama por secretários e cadeiras, sem contar as folhas rabiscadas, derrubadas sobre o tapete. 

Ela abre os braços num gesto vago: são ensaios literários, idéias para reportagens, planos de viagem. Ali, em Montevidéu, ele parecia ter renascido para sua profissão.

“La otra Alemania”, dizia o cabeçalho de um panfleto. 

Sob uma escultura africana espreita uma folha de papel com uma estrela vermelha, a foice e o martelo e as iniciais "KPD". 

- Comunista... E por acaso existe "outra Alemanha"? - cobra-lhe o policial. 


- Ora, se existe! Sempre existiu e sempre existirá! - responde-lhe, determinada, a estrangeira, que alemã não era, mas que o mirava desafiadoramente nos olhos.


Uma foto chama atenção de O´Donnel – Quem é este homem? 

É o próprio Olden, trinta anos mais moço, metido num uniforme das tropas do Kaiser, explica Margareth. Ele estava fazendo uma reportagem na Tanzânia, colonizada pelos alemães, e fora colhido de surpresa pela eclosão da Primeira Guerra Mundial, mas não vacilara em apresentar-se como voluntário. 


Outro porta-retratos ostenta a foto da sra. Kershaw-Olden, mas a assinatura que leva, diz “Primavera”. Por instantes o policial a contempla como se conferisse a estação na qual repousava sua idade. Com seus quarenta incompletos, vinte e oito anos mais moça que o marido, ela vivia o esplendor da fêmea. 


Ela desvia o olhar, mas por um átimo O´Donnel apostaria ter percebido uma ponta de ironia no canto esquerdo daquela boca de traços cinzelados. 


- Ele me chamava de Gretel, e também de Primavera, segreda-lhe Margareth Kershaw-Olden – era como se todos os dias esparramassem flores diante dos meus pés.


O detetive pigarreia, constrangido.

Numa estante Margareth pesca um livro com formato de álbum: “Mdisi-Bibi-Safari”.  As fotos são de Wolfgang Vennemann e os textos de Balder Olden, edição artesanal de 500 exemplares, numerados e autografados. São imagens do cotidiano no nordeste e no Chifre africanos, tangidos pelo véu do Islã, sem o toque do exótico, mas muito inspiradas. 


O tira não se contém: - Por que esse interesse de um alemão pelos negros?  

Na entonação algo crivada - "negros" - Margareth parece entreouvir o preconceito de portenhos e orientais de linhagem européia quando expressam sua ojeriza ao candombe


Então ela retira da estante vizinha a primeira edição de “Paradiese des Teufels”, um esboço de autobiografia do próprio Olden, à qual juntara crônicas, homenagens aos seus companheiros do KPD, o partido comunista, mas cujo título homenageava um personagem tocante, esclarece-lhe a mulher. 


Es una pena que no sepa leer en alemán - diz ela - ¡porque podría llevarselo!

- Como é mesmo o título? 

Margareth Kershaw-Olden explica-lhe que a edição toda desse "Paraísos do Diabo" fora devorada pelas chamas dos autos-de-fé de Joseph Goebbels.

O policial escancara o olhar, engole seco. Para disfarçar, tenta ser engraçado: – Onde o diabo entra nessa estória?

Na verdade, suspira Margareth, a mais acabada encarnação do demônio era o próprio Goebbels, mas não era o protagonista do livro e, sim, seu carrasco. 

Aquele título era uma ironia!


- Veja por que! - diz ela, apontando o dedo indicador para a costa mediterrânea sobre o mapa pendurado na parede, atrás da escrivaninha de Olden. 


Antes de escapar clandestinamente de Marselha para Buenos Aires, Balder desfrutara de alguns dos mais belos dias de sua vida em Sanary-sur-Mer, balneário cujas fundações remetem ao séc. XVI: sol os trezentos dias do ano, águas de azul turquesa chapinhando, lentas e sensuais, nas rochas; temperaturas abençoadas; areias brancas e aconchegantes.


Ali tinham se instalado uns quatrocentos refugiados políticos alemães: Lion Feuchtwanger, Stefan Zweig, Thomas Mann, Heinrich Mann...


O´Donnel a fixa, todo ouvidos, distraindo-a, mas ela consegue se lembrar de mais alguns nomes célebres: Bertolt Brecht, Bruno Frank, Walter Hasenclever, Alfred Kantarowicz, Arthur Koestler, Joseph Roth, o poeta e dramaturgo, austríaco, Franz Werfel – tanta gente bonita! 

“Vivíamos no paraíso, sem querer!”, escrevera Ludwig Marcuse - e ironiza o exílio tornado resort turístico, burguês. 


C´est la vie, coisas que acontecem! Mas enfim, o primeiro a instalar-se em Sanary foi Aldous Huxley, comprando uma chácara.

- “Admirável mundo novo”?... – interrompe e surpreende-a, O´Donnel. 

Margareth reincorpora-se: - Pois foi lá que ele escreveu o livro. Mas agora vem a parte onde o diabo entra na estória.


No final da Primeira Guerra, quando estava recluso no campo de prisioneiros inglês na África, Olden soubera da denúncia  das atrocidades cometidas pelos invasores belgas contra os nativos africanos do Congo, feitas por um 
tal Roger Casement. Quer dizer, na verdade, quem o alertara às atrocidades foi Joseph Conrad, que preferiu descrevê-las ficcionalmente em “O coração das trevas”, enquanto Casement, que era cônsul britânico no Congo, foi o autor de um contundente relatório factual para a Coroa, em Londres. 

Com a divulgação do relatório e um esfriamento das relações diplomáticas com a Bélgica, por algum tempo Casement foi tirado de circulação. Poucos anos depois, porém, o governo inglês ofereceu-lhe um novo posto em Santos, e depois em Belém do Pará, lá na desembocadura do Amazonas. Parecia mentira, piada de mau gosto, é o que pensou Casement, quando em Belém o alcançou a notícia de um novo genocídio – desta vez, dos índios do Alto Rio Negro. E lá foi ele, novamente como enviado do governo britânico, investigar os crimes do cauchero Julio Cesar Araña, matador de 50 mil índios, mas cuja empresa, a Peruvian Amazon Rubber, tinha sócios ingleses e sede em Londres.


- Mundo Novo muito pouco admirável! - suspira, enfastiado, o policial.

Margareth Kershaw-Olden dá meia volta, retorna à sala. O rosto coberto de lágrimas, ela acomoda-se ao lado do marido morto. Acende um cigarro, dá uma longa e profunda tragada. Agora, terá que se organizar, informar os amigos, preparar o funeral.

O tira sente vontade de consolá-la, passar a mão na cabeça da mulher, mas detém-se, o manual de procedimentos proíbe gestos descabeçados de compaixão.

Quando O´ Donnel se despede na soleira da porta, entregando-lhe a intimação para a prestação oficial de esclarecimentos na delegacia, Margareth-Kershaw-Olden murmureja:

- A propósito, seu sobrenome por acaso é de origem irlandesa? 


- É, sim - confirma-lhe
O´Donnel, desconcertado.

Pois o dela também era, confidencia-lhe Margareth Kershaw-Olden, interrompendo a despedida.

Retornando às Ilhas Britânicas, depois de cobrir cinco anos em postos consulares no Brasil, Casement comandou uma operação clandestina de transporte de armas alemãs para a insurreição contra os ingleses. 

O policial se contrai, engolindo seco mais uma vez. E despede-se com a sensação de um buraco em seu plexo solar, melhor dizendo: um dead spot na narrativa da emigração de seu avô, el irlandés.

Parada na soleira da porta, Margareth acompanha os passos do detetive, escada abaixo.


Pensa, tortura-se: deveria, ou não, admitir na delegacia, que sobrevivera a tentativa de suicídio duplo, ali na cama, ao lado de Balder?

Aqui, por enquanto, o roteiro se interrompe.

Fotos: Wolfgang Vennemann, Frederico Füllgraf