30 dezembro 2010

Frederico Füllgraf - Feliz Ano Novo! Crônica politicamente incorreta


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Para Jan Pablo 

Reeditasse sem comentários esta crônica publicada há sete anos, e quem se lembraria? No entanto, o Ano Novo está às portas. Mas as portas aqui referidas são metáfora de tempos sombrios, que meu filho Jan não conheceu. Botafoguense de nascimento, conhece Curitiba e a Ilha do Mel como a palma da própria mão. Contudo, por inusitadas e insolitas razões, Jan é um privilegiado morador de Palermo Viejo, Buenos Aires. E movido não sei por qual intuição, numa quinta feira à tarde de um dos últimos anos, chama um colega da escola, empunha uma velha câmera VHS, atravessa a cidade e – de chofre – entrevista algumas Madres da Plaza de Mayo. Pai, pede-me por e-mail, me ajuda com alguns contatos!  Em janeiro de 2011, Jan completará dezenove anos – o resto era silêncio, mas o leitor associará. 

Pasmado, leio no jornal a confissão de Dr. Henry: sempre desmentida, em 2003 a conspiração é admitida. Fria, burocrática, desata em mim a irrefreável viagem à ré no tempo. Faz trinta anos. Agora alguns rostos são apenas feições embaciadas. O de Cláudio, por exemplo, estudante de engenharia e companheiro da associação de estudantes latino-americanos. Naquele momento o argentino Cláudio é como eu, Ruiz, Alícia, João e Marina: estamos confortavelmente instalados na Alemanha  dos anos 70 e por isso nos sentimos “culpados”, em dívida com “o chamamento”.  Por isso Cláudio se despede à francesa. Meses mais tarde saberemos que trabalha numa fábrica, a 12 mil quilômetros de distância, no labirinto entre La Boca e Avellaneda. É o início de 1976 e depois disso Cláudio Zieschank some do mapa.

Retomo o jornal, mergulho na trama paralela: 7 de outubro de 1976, outono em Nova York. Imagino o cenário. Uma suave brisa toca álamos, carvalhos e castanheiras, despindo-os de sua última folhagem. Enquanto fala com seu interlocutor sul-americano, Dr. Henry levanta-se da poltrona e acompanha pela janela da suíte, a elipse de uma folha em queda-livre, que vai juntar-se ao cintilante e fofo tapete ocre-bordô em formação no Central Park; ali aos pés do Waldorf-Astoria. Absorto, com as mãos cruzadas às costas, por um momento deixa-se cativar pela lerdeza dos elementos. Intui que o ciclo se completa. Reincorporado, volta-se abruptamente para seu interlocutor, disparando seco: “Quanto mais rapidamente vocês agirem, tanto melhor!”. O almirante César Augusto Guzzetti retorna à embaixada argentina em Washington e de lá transmite a senha para seus pares: “Se conseguirmos acabar com eles antes que o Congresso americano volte a reunir-se, em dezembro, eles nos darão as armas e o crédito!”.


Duas semanas mais tarde, madrugada do dia 23 de outubro de 1976 em Buenos Aires, derrubam a porta da casa da família Meijide. Na frente dos pais aflitos agarram Pablo, um garoto com apenas dezesseis anos de idade. É Graciela Meijide, a mãe, que me narra o episódio – faz sete anos, mas sua emoção é de ontem. No vinco das rugas em seu bonito rosto, percebo a falsa velhice de oitenta e cinco meses de vigília.  Enrique Fernández Meijide, o pai, mergulha em duas mil e quinhentas noites de insônia, para dar forma ao choque, ao terror, à náusea, à cólera represados. Troca a arquitetura pela poesia,  para dar um sentido à própria impotência: “Te fuiste por el lado de las sombras / Sin mirar hacia atrás. Juntando el miedo, / que te sobraba, / con todo el nuestro. // Intentando dejarlo a nuestro cargo / porque debías parecer sereno. / Cinco gorilas / y vos en medio…”.

E eles virão sempre de madrugada: primeiro, os paramilitares de uma certa Triple A, depois, tropas regulares; se é que neste ofício de carniceiros se pode falar em “regularidade”… Em deferência à tradição cristã, no final do ano batizam o operativo de “Missão Natal Feliz”.  

Outubro de 1983. Caminho em ziguezague entre as valas reabertas do cemitério de La Chacarita. Somos trinta pessoas que seguem um coveiro errante, guiado por uma bússola falha: segura nas mãos o mapa oficial das covas com nome, sobrenome, data de nascimento e morte dos finados. Neste mapa, não há, contudo, registro de “NNs”, os non nominati varridos da geografia, expropriados de identidade, engolfados pelo anonimato silente. Cláudio, Pablo e os demais vinte e nove mil, novecentos e noventa e oito desaparecidos não existiram – diz a “história oficial”. Por isso, na Praça de Maio as Madres e Abuelas caminham em círculos, repetem há anos o rosário da dor, insistem em devolvê-los à vida.

O Poder se cala e então os fantasmas tagarelam através das frestas desta história adulterada e pervertida, como o personagem do paisano em “La Ciudad Ausente”, de Ricardo Piglia:  (…) Eu vi coisas tais, que preferiria começar outra vida, sem recordações, se já estive a ponto de deixar minha mulher e os filhos, tomar um trem, ir-me a Lomas (…)Fuzilavam-nos a dois metros de distância e atiravam os corpos em poços, depois andavam com topadoras, abrindo valas, e às vezes aos mesmos desgraçados obrigavam a cavar a tumba para matá-los em seguida. Via-os como num sonho, nus, os cristãos cavando a própria sepultura (…). 

Último ato. Há uma estância em Bariloche, aos pés da Cordilheira. Dr. Henry adquiriu-a em troca de sua vilania. Pressionou a Argentina para livrar-se de suas paisagens, após assinar a ata do extermínio de seus filhos. Sugeriu que entregassem a Patagônia para pagar uma dívida mil vezes quitada. Obsceno, aqui instalou seu pouso de guerreiro. Dr. Henry: fugitivo do Holocausto e mago da Solução Final no Prata. Dr Jekill & Mr Hide. Sabotou uma conferência de paz em Paris e meio milhão de vietnamitas morreram em vão; junto com eles, vinte mil norte-americanos. Para garantir o poder a Nixon. Determinou a invasão do Timor Leste e a soldadesca de Suharto perpetrou uma carnificina. E nenhum mea-culpa. Consentiu o assassinato do general Schneider no Chile e preparou o golpe contra Salvador Allende. Disse: “Não vejo por que agüentar um país que se torna comunista devido à irresponsabilidade de seu próprio povo”.

Dr. Henry não sente remorsos. Prêmio Nobel da Paz e Criminoso de Guerra... 


Para o mercado, as bênçãos; para os adversários, o extermínio. O médico e o monstro. 


Para o Village Voice não passa de  “Milosevic do Big Apple”: durante os bombardeios dos EUA morreram 350 mil civis no Laos. No Camboja foram 600 mil; sem contar os mutilados e para sempre aleijados. O indignado Christopher Hitchens dedicou-lhe The Trial of H.K., mas o Império não permitirá que arrastem Dr.Henry (aliás: Heinz Alfred Kissinger) à Corte Internacional.  

Se apesar da neve, todavia o chão esquentar demais em Nova York, a besta encurralar-se-á em seu último refúgio – Natal em Bariloche, mas no céu nenhuma estrela.  

Mas haverá sempre um idiota disposto a abraçá-lo.